Questões de estilo II (Friedrich Nietzsche)

Há tempos escrevi sobre o estilo a partir de Charles Bukowski, argumentando em torno de códigos e contra-códigos, vozes comuns e vozes próprias, sociedades e singularidades. Hoje completo essa digressão especulativa com Friedrich Nietzsche, esboçando um ponto de vista, é importante reter isto, podia ser outro, e outro, e outro (mas não suporta qualquer um, como alguns crêem).

Nietzsche sempre se preocupou bastante com o estilo discursivo, não para constituir uma fórmula incontestada, mas querendo adequá-lo às suas condições fisiológicas e existenciais (miopia, doenças prolongadas e intensas, viagens frequentes...). Vemo-lo, pois, experimentar várias possibilidades: o ensaio em O Nascimento da Tragédia e nas 4 Considerações Inactuais; uma espécie de texto evangélico em Assim Falou [Falava] Zaratustra; a descontinuidade aforística, ainda que sem fracturas irredutíveis, em Humano, Demasiado Humano, Aurora, Gaia Ciência, Para lá Bem e Mal e Crepúsculo dos Ídolos; o retorno à forma ensaísta em Para a Genealogia da Moral; o panfletário em Ecce Homo, O Caso Wagner, Nietzsche contra Wagner e Anticristo (ou Anticristão). Nietzsche, que dizia ter feito pela língua alemã mais do que qualquer outro, percebeu logo na juventude que a comunicação deve oscilar entre uma Darstellung e uma Dichtung, uma prosa mais explicativa e uma poesia mais intuitiva.

            Experimentemos aqui uma meditação que se aproxime da Enfermaria 6, habitada em grande parte por poetas e poetisas.

 

Em “Scherz, List und Rache”, um dos acrescentos para a edição de 1887 da Gaia Ciência, escreve Nietzsche:

O meu estilo e a minha linguagem seduzem-te?

 O quê, seguir-me-ás passo a passo?

 Cuida de não seres fiel senão a ti mesmo –

 E ter-me-ás seguido – subtilmente! subtilmente![1]

 

[1]Es lockt dich meine Art und Sprach, / Du folgest mir, du gehst mir nach? / Geh nur dir selber treulich nach: – / So folgst du mir – gemach! gemach!”

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Distância e obscuridade

Não é raro que o fascínio nasça do mistério e da obscuridade, por isso o silêncio é mais erótico do que a tagarelice (o amor cortês, à distância, era pobríssimo em palavras). A máscara nietzscheana (“tudo o que é profundo ama a máscara”), a multiplicação de linhas de vida em Fernando Pessoa, o mais recente estilo hermético da escrita de Lobo Antunes. Um não querer dar-se a entender, porque nos vulgarizamos quando os obstinados pela transparência tomam posse do que somos. Fazer da nossa existência uma obra de arte (Foucault), tão instável e enigmática, instável porque enigmática, quanto inspiradora. O prazer diminui quando se abre o jogo, a alegria da revelação dura pouco, só pode ser fugaz, passa-se a outras coisas quando sabemos tudo. A transparência é anódina, falta-lhe sempre tensão metafísica.

Como refere Byung-Chul Han, “A sociedade da transparência é um inferno do igual”. (A Sociedade da Transparência) Favorece também a morte sobre a vida, porque sem o desconhecido desaparece a atracção e esvai-se a vitalidade da procura. Roçamos uma tirania da transparência, é moralmente obrigatório “ser franco”, “ser claro”, “ser verdadeiro”, “ser previsível”, não fugir ao que se espera de nós. Por isso, o Porto deve jogar “à Porto” e o Benfica “à Benfica”. E com isto, ai de quem se desviar de si, uma sociedade da transparência era para Rousseau uma sociedade de um controlo e vigilância totais, impondo a cada um o que se espera dele.

Pelo contrário, a tautologia quase paradoxal nietzscheana do “torna-te o que és” indica um processo de construção, e desconstrução, de si, de permanente auto-superação, saltando de camada em camada, até chegar à maior das complexidades (maior da aberturas), em que, como diz nas Cartas da Loucura, ele já é “cada nome da história”. Mesmo em Kant, o sublime está além de toda a representação, sentido fiscalizado pelo entendimento, que é o “conheço bem” ou “fiquei a conhecer”.

Byung-Chul Han, citando Baudrillard (Les stratégies fatales), diz que a sociedade se torna obscena “quando já não há cena, quando tudo se transforma numa transparência inexorável.” Ela só é pujante e exuberante enquanto mantém as distâncias entre as subjectividades, a intimidade destrói a sociabilidade. Refere ainda o autor coreano-alemão, “A sociedade íntima é uma sociedade psicologizada, desritualizada. Sociedade da confissão, da nudez e da privação pornográfica de distância.” O pathos da distância que Nietzsche propõe como perfil do homem nobre segue isso, e há o magnífico poema de Paul Celan “Elogio da Distância”. Mas, ao contrário do que pensa alguma vulgata, não é um distanciamento sectário, dos dominantes sobre os dominados. Esse impulso exerce-se em primeiro lugar sobre o próprio indivíduo, ele deve separar-se daquilo que é, do formato social que adquiriu. Distanciamento anti-narcísico, des-subjectivação, morte do homem, nascimento do sobre-homem, o que está para lá da experiência do humanismo antropocêntrico, um ser implacável com a vulgaridade e as alienações. Mas um ser que nunca atentará contra a vida e quererá, por vezes por vias travessas, que os mais fracos se tornem fortes, que todos sejam fortes, embora meigos e educados. Nietzsche, é bom repeti-lo, preferia a astúcia à violência, a paz à guerra. Destruídas as tábuas de valores, bastava renaturalizar a moral para que uma norma sem normatização se instalasse na vida.

Rente à Realidade

Ponto prévio: não acredito numa realidade categórica, composta por leis, coisas, espaço e tempo incondicionados. Vejo-a antes como uma mistura de regularidades e de interpretações, milhares de interpretações que assentam nas regularidades e fazem regularidades, umas mais consistentes (“ciências duras”), outras menos (“ciências moles”), outras quase nada (gostos literários – excepção para José Rodrigues dos Santos, em quem podemos confiar).

É a esta realidade (que, na verdade, devia estar no plural), instável e irónica, que declaro, e trata-se de uma decisão irrevogável, total obediência. Quero viver rente à realidade, numa grande frugalidade discursiva e consumista, feliz pela irrelevância e penúria de ideias e produtos. No sentido em que não invento, como os idealistas, novos mundos, bem mais fáceis de pincelar linguisticamente (daí serem tão exuberantes e moralmente puros).

Por exemplo, quando me chamam “pequeno-burguês” já não saco de dez contra-argumentos vindos da teoria política ou da história das ideias (também os há no Correio da Manhã). Respondo, sem pressa, que meço 1m80, que por isso não posso ser “pequeno”, e se não posso ser “pequeno”, então não posso ser “pequeno-burguês”. Desarmante, não é? É que já não podem emendar a mão e dizer que, afinal, sou um “médio-burguês”, é que às vezes, menos do que devia, infelizmente, o ridículo mata.

Se ao menos fossem idealistas mergulhados no real das calçadas por levantar, viessem para a rua levar porrada da polícia, ou de outras forças opressivas do statu quo dominante, pegassem nos sem-abrigo e os carregassem para as suas casas, enfrentassem corpo-a-corpo os avatares do fascismo salazarento..., em resumo: pusessem as mãos na massa. Mas não, são burocratas do idealismo, fabricam mundos novos, taxando este de espúrio, sentados à secretária (muitas vezes recebendo ordenado). Por isso são simplificadores, o mal actual é simples, o bem futuro também será simples. Reduzem as realidades a slogans, aquelas a encaixar nestes.

Nietzsche dizia que se “dá um passo atrás quando se quer dar um grande passo em frente”. Os idealistas querem, , substituir este mundo, estas realidades, por outro, o que vão inventando à secretária. Passo de gigante frustrado. Bem sei que só com esperança se pode encontrar o inesperado (Heraclito), mas esse “inesperado” será feito, pelo menos sempre foi, de pequenas coisas, de partículas menores, relações em filigrana. Mesmo as ditas grandes revoluções não alteraram, por exemplo, a nossa tendência para o amor-paixão ou a acumulação de capital, eu acumulo livros mesmo sendo bastante crítico em relação ao capitalismo. Por isso, a “esperança” de que falou Heraclito (alguns gregos niilistas consideravam-na o pior elemento da Caixa de Pandora) deve ser mais poética do que burocrática.

Rente à realidade, amo as coisas básicas que nos mantêm vivos, a exactidão dos animais simples, mais do que o nosso racionalismo insatisfeito e sobranceiro, prefiro a exactidão dos operários à feitiçaria dos génios, sou eu próprio um operário, passo mais tempo em pé do que à secretária. E já não vou a missas ideológicas, mistura frenética de história e teologia.

O Caso Heidegger

O “caso heideggeriano” continua aberto, ferida que gangrena uma parte do corpo filosófico, ao mesmo tempo que alimenta um dos temas mais apaixonantes dos “amigos do saber”: será que ao pensar as condições de verdade do mundo e do homem se devem tirar consequências éticas e políticas de circunstância, denunciando horizontes de acção e os respectivos juízos de valor, culturais e morais que os constituem? Noutros termos, deve o pensamento heideggeriano ser lido à luz das escorregadelas que o autor de Sein und Zeit teve em direcção ao Nacional-Socialismo e ao anti-semitismo?

Entre os dias 22 e 25 de Janeiro deste ano decorreu em França o colóquio Heidegger et “Les Juifs” (assim, com aspas, introduzindo logo o tom da polémica, mesmo se a expressão é tomada de empréstimo a J.-F. Lyotard). A organização esteve a cargo de bibliotecas, universidades, centros culturais, televisões, rádios e jornais (nenhuma instituição importante da Alemanha, onde Heidegger é menos conhecido, e reconhecido, do que em França). Recolherei as principais ressonâncias do encontro para sumariar as (poucas) linhas principais do que se pensou nestes 4 dias em torno de um dos maiores filósofos do séc. XX.

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Da impossibilidade de receber Sade

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I

Festejam-se os 200 anos da morte do Marquês de Sade (homem-prisão, 27 anos, 1/3 da sua vida).

Apesar de parecer ter-se transformado num sex-toy para alguns erotomaníacos, mantém-se um marco importante do pensamento dos séculos XIX e XX. Em França, a Bibliothèque de la Pléiade vai republicar Justina ou os Infortúnios da Virtude e outros romances numa edição de luxo, realizar-se-ão várias exposições um pouco por todo o hexágono, destacando-se a vasta mostra do Musée d’Orsay em Março, grande comentário à visão (deturpada?) que Sade teve do humano. Com isto, o “escritor maldito” ascende ao lugar de “clássico do mal” (recordamos que Pasoline, Salò o le 120 giornate di Sodoma, o considerava precursor do fascismo por narrar o estrume humano).

Talvez Pasoline tivesse razão, mas é extraordinário que antes de Nietzsche e da Psicanálise (os Cento e Vinte Dias de Sodoma, escrito na Bastille em 1785, antecipam-na em muito), alguém ponha o “pensamento à prova do corpo”, sem concessões. Deixa-se de raciocinar ao serviço de actividades abstractas, tudo é determinado pelos movimentos e desejos mais pulsionais. Daí a célebre frase na História de Julieta ou as Prosperidades do Vício: “Levantamo-nos contra as paixões sem reparar que é na chama delas que a filosofia acende a sua”. Os heróis sadeanos não reagem a quente, discutem viva e longamente, em prazer, dedicam-se a alimentar o espírito com conceitos e filosofemas. No entanto, o pensar de Sade está sempre incarnado, o corpo fervilhando de desejos trabalha e sustém a razão, os discursos e a moral. Os personagens assumem os seus vícios, sem esbaterem (sublimarem?) o escandaloso, como se desenhassem a acção para além bem e mal. O leitor acompanha-os na vertigem que os acomete, sofrendo com isso, como referiu Georges Bataille, uma intensificação do seu “nervosismo sensual”. Não se veja aí, contudo, um qualquer machismo exacerbado, a História de Julieta usa uma heroína para dominar toda a encenação do deboche sexual (por isso Apollinaire considerava Julieta a “nova mulher”).

Por outro lado, Sade é um autor do iluminismo, pretende erradicar a necessidade da crença e da transcendência, fonte de todas as servidões voluntárias. Não apenas rejeita Deus, como retira daí as consequências, dando ao homem a liberdade total de preencher os desejos considerados mais escabrosos, de convocar o “diabólico” que habita nele. Ao mesmo tempo, denuncia a maldade político-ideológica das Guerras de Religião e da Inquisição. Também se opõe à moral da guilhotina construída pelo purismo robespierreano. Esta disposição sócio-política fê-lo dizer que defender o indefensável e atacar o dominante tinha sido o seu prior inimigo. Sem remissão, como disse, havia “recebido uma alma firme, que nunca se soube dobrar e nunca se dobrará”. (Justina ou os Infortúnios da Virtude). Apesar disso, amou a Revolução, não tanto a ideia de justiça que a envolvia (impondo-se, aliás, cruelmente no absolutismo político-moral do jacobinismo), mas a sua impetuosidade, agitação permanente e as relações extremadas de dominação.

Ao considerá-lo um libertino feliz, como resultado do seu pensamento ultraliberal, escapa-nos que os seus personagens despem a natureza humana da pequena capa de verniz do conveniente, sob a qual está uma violência e paixão sexual incondicionalmente impiedosa para a alteridade. Ele obriga-nos, na condição de o lermos, a olhar esses personagens de frente, mostrando-nos como nos perturbam, porque, de forma mais ou menos sublimada, vivem em nós (vejam-se os contínuos actos de violação, individual ou colectiva, que continuam a suceder por todo o mundo, as decapitações do EI, a violência gratuita de certos adolescentes, a brutalidade de género, que em Portugal tem números assustadores, e mesmo as perversões sexuais expressas nas múltiplas variações pornográficas).

II

Entretanto, esta efeméride permite medir o pulso ao estado da recepção sadeana. Philippe Sollers, especialista reconhecido, conta que quando foi convidado para uma festa no castelo Lacoste em homenagem a Sade, o convite informava que um descendente do Marquês estaria presente (Conde Huges de Sade) e que era necessário doar 50€ para as crianças autistas de Vaucluse. Para Sollers, este aproveitamento de Sade mostra que a obscenidade já não está onde se julgava. O mesmo comentador, recorda que em 1990 a Pléiade Sade se publicitava da seguinte forma: “Sade em papel bíblia”. Ora, passando sobre absurdo do par Sade/bíblia, esta edição regista a legitimidade canónica de Sade (em França a Pléiade marca a entrada simbólica no panteão dos clássicos reconhecidos), mas, ainda segundo esse autor, isso não significa que haja alguém para o ler. Como continua a ser quase impossível citá-lo (pergunta-se se é imaginável ler excertos dos seus livros num telejornal, como se faz com tantos autores), a motivação para o ler cai a pique. Mas o pior, é que hoje se trocou o argumento censurante da perversidade pelos de “entediante” e “repetitivo”. As censuras, sabemo-lo, vão-se transmutando, de puritanas e hipócritas, podem passar a ultraliberais (“se ninguém o lê é porque não presta”). Há ainda o medo da imitação: lendo Sade tornamo-nos sadianos (da mesma forma, a Bíblia pode tornar-nos quase-Deus). Mas dificilmente tal acontecerá, Sade é o pensador da singularidade absoluta (“eu sou eu e a minha perversão”), neste sentido como pode alguém pretender ser sadiano (ou não o ser)? Por outro lado, se é quase impossível não ser transformado pela leitura da sua obra, ele muda-nos sem nos evangelizar.

Por tudo isto, Sade é provavelmente o autor menos passível de ser recebido, podem fazer-se estudos académicos sobre ele (pouco em Portugal), lê-lo em leitura privada, mas não é convocado para uma mesa de café, dificilmente se fará um clube de leitura na Fyodor Books em torno de um dos seus livros, se citará nos órgãos de comunicação social, se aconselhará aos filhos...