António Franco Alexandre: em quanto então obedece

Ao Vasco Oliveira

Publicado originalmente em 1983, A Pequena Face tem como uma de duas epígrafes (a outra é da autoria de Montaigne) o seguinte verso de Paul Celan: “Wahr spricht, wer Schatten spricht” - “Fala verdade quem diz sombra.”, aqui na tradução de João Barrento e Yvette Centeno. 

De entre os possíveis eixos temáticos emergentes em A Pequena Face – veja-se, por exemplo, as referências ao “ouvido” e à audição enquanto veículos privilegiados de contacto com a verdade, aqui entendida numa acepção lata e não-convertível, uma vez que a destreza discursiva e imagética de António Franco Alexandre segrega o que é da ordem do inamovível -, porventura um dos mais férteis ancora-se na ideia de desobediência relativamente a sistemas pré-estabelecidos de conhecimento. Tratar-se-á, porém, de uma perspectiva elástica e cujo vigor da demarcação se apresenta, com frequência, imperceptivelmente. 

Com efeito, há antes de mais um feixe de sinalizações, ora directas, ora suscitadoras de um querer saber, no que tange a revelação de interferências que se vão interligando de modo a desvelarem uma vontade de recusa. Destacamos os seguintes: 

“nenhuma arte, nenhum saber, memórias/nada na manga metálica dos olhos/nada no simples claro contratempo/nas palavras medidas pelo breve/indício do sentido,/venha comigo ver os nunca vistos/ desastres do jamais acontecido” (…) nenhuma arte, veja voz alguma.” (pg. 13); “não desejando as puras, incorruptas/ palavras, mas o sopro/transparente da boca.” (pg. 51); “saberás que a linguagem/ não começou ainda/ o seu passo perdulário, / não há, no mundo, modos/ de dizer o movimento e o imóvel” (pg. 58).

Ora no primeiro exemplo, o recurso repetido de palavras que remetem para o domínio da ineficácia/derrota - “nenhuma”, “nada”, “alguma”, “nunca”, “jamais” - parece, contudo, extravasar a pura negatividade, na medida em que se procura/propõe o alargamento da(s) probabilidade(s). Não sendo meros artifícios literários, ou sequer balizas temporais tão-só indicativas, os termos elencados funcionam simultaneamente como difusores e como núcleos discursivos próprios e autónomos, se bem que numa conectividade permanente com outros tópicos, como seja o amor, que, por vezes, poderão desaguar numa certa rarefacção.

Todavia, essa rarefacção impulsiona enormemente a multiplicidade de linhas coexistentes, impeditivas do óbvio. 

Ao tomarmos contacto com a segregação desejada das “puras” e “incorruptas palavras”, como que substituídas pelo “sopro transparente da boca”, saberemos que a “linguagem ainda não começou.” Não parece, cremos, que se preconize o aniquilamento da linguagem/fala – spricht e sprache (Dichtung)  - i.e., da materialização, por palavras, do dialogar e do interagir, mas sim, nomeadamente, uma desunião direccionada a lirismos vazios e descodificáveis. Surgem, consequentemente, uma exigência e um compromisso com a inutilidade, no caso, da poesia. Se falamos de “inutilidade”, esta relaciona-se com a censura a uma pretensa capacidade salvífica da poesia: “em silêncio me muro e me demoro/ no cálculo de rotas inexactas (…) vou dizer o que sei como quem mente.” (pg. 9); “a escrita seria, ouça,/ silenciosa,” (pg. 24). 

Celan diz-nos que a poesia “é uma forma de aparição da linguagem”, visão que se poderá relacionar com o que acabámos de dizer, i.e., a poesia como possibilidade e como faculdade de a linguagem se poder furtar igualmente à mera comunicabilidade primária, o que abre os limiares da existência da própria linguagem, convocando, assim, o silêncio.

Não obstante, o Ungrund em Celan postula um poder dialógico implacável que, por isso, possui uma veemência algo divergente da capacidade derivativa de António Franco Alexandre, que, como assinalámos, não cinge as suas manifestações apenas ao objecto do nosso testemunho. Porém, o “lançar de dados” que lemos no poemaAos Pares (Zu Zweien), dialoga com aquele “lugar incerto onde aconteço” que existe em A Pequena Face. O silêncio de quem fala verdade, em António Franco Alexandre, constituirá o de índole wittgensteiniana, ou seja, aquele que permite a abertura à “vivência do significado” (Erlebnis) que o filósofo austríaco sugere. No § 5.634 do Tractatus, Wittgenstein descortina, porventura, o poder mais específico da linguagem: “Tudo o que de todo podemos descrever podia ser diferente do que é.”, muito também porquanto “Não existe uma ordem a priori das coisas.” 

António Franco Alexandre refere “as palavras fechadas” (pg. 18) que se associam “conforme/ a tão minuciosa convenção (…) em que dormitam” (pg. 42). Ofício subtil e prolongado - “só pouco a pouco afasto das palavras/ o som que importa” - , o fazer poético específico, mas não isolado, para ser criador terá de rejeitar ópticas utilitárias e estáticas, o que também não significa, claro está, que seja alienante e sedutor – o que acabaria por resvalar na origem do comentário aqui mostrado, i.e., a suposta índole purificadora da poesia. Se as palavras “dormitam”, na poesia/vida elas terão de interferir. A sombra, que destrói o automático ao desregular a cadência, promove e enfatiza um desobedecer. 

Isto para tentar pensar com uma parte contida em A Pequena Face, livro-esboço que se dirige ao exterior, para a comunhão, ou não fosse esta, provavelmente, a materialização de um estar no mundo contingente mas potencial e vivo: “quero viver o que me dizes (…) venho encontrar-te para uma traição.” (pg. 54)