Baptismo do caderno 3
/Lido ontem, 10/05/2015, na Fyodor Books
Sobre a Enfermaria 6
Esta pequena editora, com uma ontologia ainda incerta, constitui uma espécie de microfísica da edição em Portugal. Faz livros à mão, artesanato, peças cheias de gosto e de amor. Campo de resistência e de autenticidade, estabelecendo uma boa articulação entre o digital – cultiva este blogue muito animado num talhão do mundo encantado, acelerado e evanescente da blogosfera, mesmo mantendo-se fiel a uma frugalidade estética e mediática – e o papel, com três Cadernos e mais três livros, para que os leitores possam também cheirar os textos.
Sobre este Caderno
Se nos atrevermos a catalogar os géneros de produção de discursos relativamente ficcionais, os dois primeiros Cadernos misturavam poesia, ensaio e prosa, o Caderno 3 retém a poesia, é um lugar de poetas para poetas, jogo quase sem códigos e que poucos sabem jogar como deve ser (gosto, pontualmente, de ser prescritivo). Contém alguns autores consagrados, pela crítica e pela recepção dos leitores, e outros à espera de rasgar o véu da ignorância do mundo da poesia. É uma aposta justa e equilibrada, a Enfermaria 6 gosta de provocar os horizontes de expectativa dominantes, desconstruir os cânones.
Sobre a poesia
Não me atrevo a teorizar acerca do ser da poesia, mantenho com ela uma relação de claro-obscuro, e creio que é a boa relação, e mesmo que não o seja, é a minha relação possível. Tanto mais que nenhum poema decente, ou indecente, se deixa apanhar, sequestrar pelos hermeneutas do sentido, isto é, por quem julga poder agarrar a verdade última da intenção do autor. Cada poema é um jogo infinito de signos, deve ser portanto experimentado, mais até do que interpretado. Preferencialmente com o corpo todo.
Além disso, vivo na urgência de procurar sentidos, e testá-los depois na lógica silogística ou no funcionamento das coisas, como poderei, pois, render homenagem a quem tem a paciência de Penélope e demora dias inteiros à procura da palavra justa? Sabendo que mesmo a melhor das descobertas é irremediavelmente imperfeita, é que os poetas conhecem bem o valor do silêncio.
Mas posso dizer que um poema conquista a máxima extensão a partir de uma enorme contenção linguística, uma estrofe pode descrever o mundo inteiro ou propor uma história da humanidade. Obrigando ao comprometimento dos leitores: um compromisso estético, um leitor de poesia prepara-se sempre para ser envolvido pela beleza e pela novidade; um compromisso hermenêutico, um leitor de poesia sabe que os sentidos dos poemas nunca são anódinos, a não ser na contrafacção estúpida e oportunista. Por outro lado, nenhum leitor, mesmo indivíduos que frequentam gangs analíticos, esgota o sentido de um poema, eles mostram e escondem, são astutos e inalienáveis, permanecem sempre numa certa reserva, prolongando assim a sua esperança de vida. Creio ainda que a poesia não está em todo o lado, como julgavam, e julgam, alguns surrealistas, ela é uma coisa rara, trabalho em filigrana que poucos estão habilitados a produzir, não sendo contudo, como disse há anos um representando nacional deste ofício, questão de “sopro divino”.
Acredito também, para finalizar, que um poeta prefere ler-se a escrever. Razão pela qual aceita que a linguagem funcione na poesia quase autonomamente. Talvez o poeta seja usado pela linguagem como via de nascimento, concordando assim com o seu próprio desaparecimento artístico. Talvez os poetas sejam os mensageiros de uma veracidade que nos convida a habitar modestamente o mundo, reconhecendo a antiguidade e a essencialidade perene da poesia.