Duas epifanias
/Vivemos tempos de desamparo, situações, coisas e pessoas que há pouco tempo pareciam anódinas ou mesmo simpáticas, são hoje motivo de irracional desconfiança ou irreprimível desdém. Uma versão dos “tempos sombrios” de Hannah Arendt misturada com o spleen niilista oitocentista, sem qualquer redenção estética, metafísica ou política.
Mas, seguindo o velho adágio hoderliniano “onde está o perigo cresce também o que salva”, as pérolas que encontramos na lama são quase sempre as mais belas, pelo realce do contraste e a inversão extraordinária das expectativas. E hoje encontrei duas clareiras, sem me desviar dos caminhos habituais, recompensa para uma insistência rotineira (que divino consegue premiar a convergência?). “Aceita tudo”, dizem-me baixinho os deserdados da alegria e da esperança (fazem legião). “Claro que sim”, respondo, não me faço rogado. Agarro tudo com duas mãos, dois braços, o corpo todo, nunca devemos ser mal-agradecidos. Por isso me considero, à força de estoicismo, um realista feliz.
Mas vejamos o que me trouxe o dia.
Primeiro. [Verlaine: “De la musique avant toute chose”] Alguém, em Lisboa, tocava violoncelo no meio do cortejo babélico de turistas, acompanhados por vendedores de óculos falsificados ou drogas a fingir. É o meu instrumento preferido e nunca o tinha ouvido em música de rua. Comove-me a sua sonoridade, faz vibrar em mim emoções normalmente adormecidas. Só ele evoca perfeitamente o sentimento heróico de perda, a possibilidade incumprida de ter tido o mundo a meus pés. Tudo fora da história, isto é, trata-se de mera eventualidade, só porque, enquanto humano, tenho a intensidade emocional e abrangência mental para envolver o mundo num relance ou numa ideia. Assim, pude, no meio da rua, agredido pelo sol, anónimo entre a multidão de vasculhadores do pitoresco, sentir uma plenitude que me resgatou da pequenez a que, por modéstia involuntária, pertenço.
Segundo. [“Só quem nasce pode redimir quem morre”] A opção de não ter filhos decorre de muitas e diferentes equações existenciais. A mim parece-me sempre uma perda, como se se encurtasse a vida e atirasse ao vento todo os saberes adquiridos, tantas vezes com o sacrifício da nossa vontade espontânea de hedonismo. Exagero. Nem a vida fica mais curta nem os saberes têm que desaparecer. Mas há alguma razão no que sinto/penso, e isso leva-me a exaltar os neófitos, a amá-los quase incondicionalmente, estejam ou não dentro do círculo familiar ou das amizades. E hoje, segunda epifania, soube que a Penélope virá em breve habitar o nosso mundo. E será amada como merece. E terá muitos livros com que brincar, primeiro, e conversar, depois, sem cair, espero, na tentação da pose intelectualista. E saberá olhar para nós como se fôssemos tudo o que há de melhor, porque será assim que olharemos para ela.