Juízos de gosto e conselhos aos jovens artistas

Os trabalhos enviados à consideração do conselho editorial da Enfermaria são avaliados e decide-se sobre a sua publicação. Nalguns casos recusamos publicá-los, fazendo-o quase sempre a custo e, sobretudo, duvidando da exactidão da nossa apreciação. Para que este embaraço fique mais claro e experimentando uma espécie de pedido de desculpa a quem nos contactou sem ter da nossa parte o mesmo retorno generoso, peço-vos que acompanhemos o que nos diz Kant na Crítica da Faculdade do Juízo (CFJ, 1790) sobre os juízos de gosto. No pano de fundo brilham as cartas de Rainer Maria Rilke a Franz Xaver Kappus, ou as Cartas a um Jovem Poeta (1903-1908/1929).

Kant, no §32 da CFJ, profere este conselho: “um jovem poeta não se demove, nem pelo juízo do público nem pelo dos seus amigos, da persuasão de que a sua poesia seja bela; e se ele lhes der ouvidos, tal não ocorre porque agora a ajuíza diversamente, mas porque ele encontra no seu desejo de aprovação uma razão para se acomodar (mesmo contra o seu juízo) à ilusão comum, ainda que (do seu ponto de vista) todo o público tivesse um gosto falso.”[1]

Portanto, artistas da escrita, artistas das ideias, artistas das imagens e dos sons, artistas de minúsculos pormenores surpreendentes, artistas por vir, artistas em geral, isto é, amantes do belo, não ponham o gosto dos outros acima do vosso, sigam os impulsos que vos convenceram sobre a beleza das vossas obras. Sem qualquer hesitação? Não. Há imensos precedentes geniais, é portanto conveniente, continua Kant, “Que se enalteçam como modelos as obras dos antigos e chame clássicos aos seus autores”. (§32) Tanto mais que o que outros conceberam permite ao neófitos não serem “simples imitadores”, “afim de procurarem em si próprios os princípios e assim tomarem o seu caminho próprio e frequentemente melhor.” (§32) “Frequentemente melhor”, vejam a admiração e a confiança que Kant deposita nos jovens artistas, não as desmereçam. Apesar disso, não se esqueçam também de educar o vosso gosto, de em vez de serem poetas, por exemplo, tornarem-se constantemente e infinitamente poetas, de alargarem o vosso engenho, de “falharem melhor”. Porque, socorrendo-me novamente da luz kantiana, “entre todas as faculdades e talentos, o gosto é aquele que, porque o seu juízo não é determinável mediante conceitos e preceitos, maximamente precisa de exemplos daquilo que na evolução da cultura durante mais tempo recebeu aprovação, para não se tornar logo de novo grosseiro e cair na rudeza das primeiras tentativas.” (§32) Portanto, é preciso cultivar o gosto, todos os dias porventura, extirpá-lo constantemente da vulgaridade que, sobretudo em culturas populares grosseiras, o ataca de todos os lados.[2] Se me permitem um conselho palpável, evitem, por favor, ler livros cuja página 100 não consegue provocar qualquer arrepio, tão lisa e transparente que através dela se vêem todas as palavras e ideias do homem médio, ou ouvir música que entra à primeira no ouvido, ou acompanhar a multidão, embriagada pela novidade, a um museu que acabou de abrir com nada para oferecer, além de se mostrar a si mesmo, num narcisismo sem remissão, ou deixar-se arrastar pelo niilismo propagandístico que continua a desprezar a vida. Desta forma, Kant, após autonomizar totalmente o juízo de gosto individual (subjectivá-lo, em linguagem mais filosófica), introduz, porém, limites à vertigem juvenil (e adulta, diga-se), demonstrando que atender ao passado é fundamental para formar o gosto próprio, sobre o qual, §33, podemos até começar a duvidar, depois de conhecermos um número suficiente de bons exemplos.

Este acrescento ao primeiro “confia apenas no teu gosto!” traduz um bom senso lapidar, mas pouco depois, este autor, considerado austero e conservador (tendências que nem sempre se justapõem), regressa à primeira tese, diz ele: “jamais porém o que aprouve a outros pode servir como fundamento de um juízo estético. O juízo de outros que nos é desfavorável, na verdade pode, com razão, tornar-nos hesitantes com respeito ao nosso [juízo estético], jamais porém pode convencer-nos da sua incorrecção.” (§33) Tanto mais que um juízo estético não se elabora a partir de conceitos ou de critérios empíricos, ele é totalmente subjectivo e feito a priori, isto é, antes de qualquer condição cognitiva que o oriente num ou noutro sentido. Para não cair numa subjectividade solipsista, fechada às demais subjectividades, Kant convoca, §40 e seguintes, a ideia do sensus communis, um sentimento humano comum capaz de criar uma comunidade de seres racionais, prontos,  descontando-se os preconceitos e interesses privados, a ajuizar de igual forma a beleza, natural e artística. Bom, mas isto leva-nos para outros caminhos que agora devo abandonar.

Conclusão: jovens escritores a quem podemos ter inoculado, com a nossa recusa em publicá-los (uma rejeição que, aliás, nunca é definitiva, enviem-nos, por favor, outros trabalhos, testem-nos novamente), um grão de dúvida que arruína ímpetos sinceros, confiem no vosso gosto, o que têm e o que vão tendo, formado à medida que lêem, vêem, ouvem, sentem, sofrem e se entusiasmam, numa palavra: à medida que vivem. Nós e outros seleccionadores, nós e outros críticos até podemos ter razão, mas aqui não é de razão que se trata, mas de gosto estético, sempre subjectivo, tanto mais certeiro quanto resulta de um convívio vital com a obra (escorrego para o campo nietzscheano, mas sem enfurecer Kant), tanto mais preciso, pois, quanto é vosso. O melhor crítico é o próprio autor, o autor ensimesmado, recolhido no seu gosto, que cultivou até onde pôde um gosto prolífico e multiforme (nunca um gosto quadrado), mais severo mas mais exacto do que os de seres heterogéneos, que mesmo recusando critérios uniformizadores, só conseguem vislumbrar, nos momentos mais inspirados, um terço da beleza que irradia das obras.

 

[1] Uso a tradução, com algumas alterações, de António Marques e Valério Rohden para a Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa, 1990.

[2] Como refere Filomena Molder, num comentário parecido ao meu, “O poeta tem de cultivar a poesia a fim de purificar, firmar, afinar o seu próprio juízo, quer dizer, educar o seu próprio sentimento.” (As Nuvens e o Vaso Sagrado, Lisboa: Relógio D’Água, 2014, p. 113).