Insónia

(ante-sriptum: isto é também um texto de auto-ajuda)

Em Minima Moralia, Theodor Adorno escreve que “o que origina essas noites de insónia, em que o tempo se contrai e foge, inútil, das mãos, são os terrores. Alguém apaga a luz com a esperança de dilatadas e reparadoras horas de descanso. Mas quando não pode serenar os pensamentos, desperdiça o valioso provimento da noite, e até conseguir não ver já nada por trás dos olhos fechados e avermelhados sabe que é muito tarde, que depressa o despertará com sobressalto a manhã. De um modo semelhante, implacável, inútil, se esgota talvez, para o condenado à morte, o último prazo.”[1]

Byung-Chul Han recupera este antigo fragmento para exemplificar a “duração vazia”, inscrevendo o insomníaco (escolhi esta possibilidade morfológica) numa “terrível infinitude”. Dormir bem, continua Han, seria, pelo contrário, uma forma de finitude, um fluxo agradável entre o esquecimento e o delírio que, como refere Marcel Proust em Do Lado de Swann, traz felicidade ao ser humano.[2]

Nesta linha de entendimento revela-se a nossa pior relação com o tempo, porque não o queremos viver, mas suprimi-lo, apagá-lo, passar da cronologia, raiz da vida biográfica, ao instante. O ideal é que num clique adormeçamos e acordemos na manhã seguinte como se tivéssemos dado um salto metafísico. Porém, sendo eu um profissional do sono fracassado, um insomníaco, como disse, compreendo diferentemente as noites vigilantes.

É quase insuportável viver anos a fio na angústia da insónia. Quando a incompetência para dormir surge, desenham-se mais ou menos três vias: 1) consumo de fármacos (placebos ou moléculas activas); 2) reeducação de uma parte importante do estilo de vida; 3) e suicídio. Evitei a primeira, (ainda) não passei pela terceira, escolhi, lenta mais inexoravelmente, a segunda.

Ponto de ordem: não tenho qualquer dificuldade em adormecer, faço-o à maneira dos justos que cumpriram todos os deveres do dia, duas páginas de filosofia e desligo praticamente todo o mecanismo perceptivo. Como raramente me lembro dos sonhos, entendo o meu sono como um apagamento integral. Mas por volta das 4 da manhã, depois de adormecer cerca das 23, eis que regresso da terra feliz dos desaparecidos.

Quando esta interrupção no ciclo do sono surgiu, pensava, ou sentia, como Adorno e Byung-Chul Han. Furioso e desbaratado, forçava o regresso do sono, mas como isso raramente acontecia, passava à fase, igualmente inconsequente, de suplicante cronológico, isto é, implorava por uma aceleração do tempo para que a manhã chegasse rapidamente. Fracassados os intentos, apoderava-se de mim uma resignação triste, entrecortada por assomos de indignação e gritos abafados (o silêncio da noite impede toda a amplitude desses impulsos primitivos libertadores). Semanas depois, tinha comprometido algumas relações sociais devido ao mau humor que se apoderava do tempo de vigília. Quando não se dorme e não se sabe gerir esse défice, fica-se mais susceptível do que uma princesa sem ninguém para casar. As energias, ou forças, ou emoções, ou ideias negativas que acumulava durante o dia acabavam por perturbar o tempo do sono, reforçando as insónias. Um verdadeiro e irremediável círculo vicioso.

Apanhado nesta disfunção vital, lancei-me à procura de soluções. Li e segui muitas receitas do tipo “banha da cobra” (“arejar e arrefecer o quarto”, “esquecer o dia”, “jantar frugal”, “banho quente”....), mas nenhuma funcionou. Decorrido algum tempo, varri para longe as receitas supostamente milagrosas e investi ainda mais na “resignação triste”. Finalmente, na fase três, já em desespero de causa, comecei a levantar-me e a transmutar a insónia em vigília assumida. Em filosofia, poderia chamar-se uma inversão ontológica (os filósofos cultivam o mistério e os arremessos linguísticos).

O rito, já ritual, passa por mal acordo e prevejo que não voltarei a adormecer, levanto-me e entro em modo vigília. Tomo o pequeno almoço, leio, escrevo, vejo televisão (pouca), passeio pela casa, acaricio os gatos, olho o firmamento, ponho likes no facebook... E assim, levantando-me de bonne heure (boa hora; agrupada, bonheur, significa felicidade) o tempo da insónia passa a ter uma duração preenchida, a “insónia mortificadora” transforma-se em tempo útil e prazeroso. O fluxo biográfico deixa de estar em tensão entre o desejo (de dormir) e a impossibilidade (insónia), constituindo-se, antes, uma harmonia fisiológica e psicológica que perdura, apesar do cansaço, durante o dia todo.

 

 

[1] Tradução de Artur Morão [1951, Suhrkamp Verlag], Lisboa: Edições 70, p. 168.

[2] Cf, Byung-Chul Han, O Aroma do Tempo. Um Ensaio Filosófico sobre a Arte da Demora, [2009, trad. Miguel Serras Pereira] Lisboa: Relógio D’Água, 2016.