As Aventuras do Senhor Lourenço (§23 entre Deus e Marx)

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Tudo se precipitou, como acontece num ribeiro seco depois de uma forte chuvada. Uma torrente superficial de críticas e desdém chocava constantemente com Lourenço, arrastando-o contra esquinas afiadas. Impossível de parar: “esperem”, “vamos pensar”, “analisem melhor”, “vejam as contradições da notícia”..., dizia Lourenço, mas a loucura geral queria, por tudo e por nada, despedaçá-lo. Um Zé Ninguém tinha subido ao estrelato e agora caía. Bem feito! Justiça ícara ou bode expiatório redentor.

Antes vivia na solidão do anonimato, do “ninguém quer saber”, depois chegou ao estrelato admirativo, agora era apontado por todos os dedos, com e sem unhas de gel, alguns amarelos do cigarro, envelhecidos quase todos (os alunos vivem num magnífico “who cares?” em relação aos adultos), com aquelas rugas de pele cansada e veias salientes, quase a explodir, de um azul mal camuflado. Ainda falava um pouco comigo e com o Joaquim, mas este iconoclasta militante tinha-se subitamente interessado por coisas vagamente holísticas, juntando-se a uma colega viúva, rija, que dava Religião e Moral. Isaltina, era esse o seu nome, quase fora freira, mas um pedreiro que fazia arranjos no convento desvirginou-a, meio à força meio consentido, perto do altar de Nossa Senhora, e ela esteve tão perto de reproduzir o êxtase de Santa Teresa de Ávila que forçou o macho a assumir para o resto dos dias a responsabilidade de dormir com ela. Começou então a sua vida secular de professora e mulher casada, embora sempre com “um pé perto de Deus”, como costumava dizer.

Na época, eu percorria territórios políticos ligados à extrema esquerda, gerindo bolchevicamente uma cozinha comunitária. Todos as manhãs havia uma reunião geral, demorada, para se votar a ementa do dia seguinte, e os impasses e dissensos eram mais do que muitos, às vezes quase se chegava a “vias de facto” entre vegans e vegetarianos ou marxistas geométricos e maoístas moralistas. Na verdade, quase todos tinham uma roda dos alimentos moderada, mas não prescindiam da tenacidade revolucionária, tudo era razão para competirem sobre quem era mais democrata participativo. Quem me conhecia tinha dificuldades em compreender aquele novo estilo de vida, o próprio Lourenço, normalmente incapaz de julgar os outros, esboçava uma admiração crítica e justificava a minha guinada cívica com a crise dos 40 ou um rabo de saia particularmente apetitoso. Mas, como muitos outros, só tinha ido à procura de uma veracidade que me protegesse da dispersão pós-moderna sufocante. Se quiserem, transformei-me provisoriamente num fundamentalista.

– Mas o que é que se passa contigo? – Perguntou-me, logo na manhã de segunda-feira, Lourenço.

– Não se passa nada, o Joaquim é que anda metido em sarilhos.

– Tu estás pior, agora acreditas na verdade política?

– Não é bem isso, retorqui, e tu fazias melhor em preocupar-te com essa de “traidor cobarde”.

– Nunca te disse que era herói, que tinha feito aquilo deliberadamente, sempre fui modesto, não te armes em inquisidor de esgoto.

– Certo, Lourenço, certo, mas podias ter sido mais assertivo a desmentir a liberdade do teu mergulho sobre o badameco do bombista.

– Discutimos isso muitas vezes, pensei que concordávamos numa concatenação de acasos que me fizeram agir sem eu querer.

– Tens razão, desculpa-me, tenho andado tão ocupado, sempre a discutir e votar, e vou ter um Skype daqui a pouco, antecipo os gritos do costume sobre a ementa de amanhã.

– Mas por que razão não largas isso, estás armado em mártir?

– Não, Lourenço, não meu amigo, tu procuras a harmonia indolente no dolce far niente, ou dolce essere niente, eu estou fascinado pela Verdade, quero encontrar uma fórmula que dê sentido a tudo o que faço e penso. Quero sentido, estou farto de absurdos, como a tua história, por exemplo, tu és um absurdo, tudo o que te aconteceu é um absurdo. Virei-me para o neo-marxismo porque ele é uma espécie de religião do texto, semelhante em muitos aspectos às restantes três. Não se pode pôr em causa a Verdade (revelação analítica) de O Capital, e mesmo o Manifesto, com o seu estilo panfletário, está ancorado na Verdade. Pode parecer-te uma regressão dogmática, Lourenço, mas faz-me um bem do caraças acreditar na Verdade. Se não fossem as discussões intermináveis sobre a ementa e a falta de depilação das raparigas, creio que era um homem feliz.

– Mas tu eras todo interpretação, recordo-me de que quando te encontrei citavas frequentemente o “não há factos, apenas interpretações”, de Nietzsche.

Não sabia bem o que responder. Sim, gostava imenso daquela sentença, linha de irmandade com o Joaquim, mas depois fiquei mais perto da sagração incondicional do texto, como quando o encenador e dramaturgo Jorge Silva Melo defende a inquestionabilidade do texto teatral, condição de toda a produção teatral, imperativo estético inviolável, no fundo mais uma forma de bibliomania. Peguei no Joaquim para me defender.

– Lourenço, que diferença vês entre eu procurar a verdade e o Joaquim o divino?

– Não sei se vejo diferenças, não é, aliás, essa a questão. O Joaquim anda entretido com a Isaltina, acho que lhe faz bem, até já não cheira tão mal da boca. Tu meteste-te com fundamentalistas que sonham com uma nova ordem total.

– Sim, respondi. Mas nós queremos emancipar as pessoas, não dar-lhes uma droga espiritual que as faz crer na felicidade de pacotilha.

– Ei! Foste ao baú ideológico buscar essa ideia, não?

– Goza, Lourenço, goza que deves ter muitas razões para achares que és melhor, já reparaste no buraco negro onde está enfiado?

– Sim, sei bem onde estou, mas não conjuro nada com adesões idiotas, morrerei de pé, sem me vender.

– Olha, isso também é de um baú qualquer, e de um pretensiosismo piroso.

E foi assim que quase nos chateamos. Entretanto, talvez Lourenço tivesse razão, hoje já me deixei de verdades e democracias participativas, regressei ao cepticismo e às interpretações, talvez porque tenha encontrado uma colega que faz amor comigo duas vezes por semana, sem discutir as posições, uma em casa dela outra na minha. Sempre à tarde, para não termos de dormir, e acordar, juntos. E é incrível como adoro os múltiplos orgasmos que facilmente ela consegue ter, fechando sempre os olhos e pedindo complacência a Deus, não a Marx.