Paris – Retour a magenta

À memória de Noel Jesus Leopoldo

Quando N. lhe contou o que o levava ali, a directora da agência de modelos não queria acreditar no que estava a ouvir. N. queria alugar uma modelo com determinadas características para fazer um serviço no hospital. Teria de acompanhar um homem com a vida a prazo, o seu pai, nos seus últimos momentos de vida. A modelo teria de se manter ao lado do doente, que queria morrer com a visão de um rosto feminino que tivesse determinadas características, e quando a droga letal fosse administrada, bastava que se erguesse, o olhasse nos olhos, e sorrisse da forma mais natural possível.

A mulher procurou fazê-lo compreender as dificuldades inerentes àquele trabalho, pois se por um lado as características físicas eram muito restrictivas, por outro, nem todas as pessoas que se enquadrassem naquele perfil teriam o sangue-frio necessário para lidar com uma situação tão melindrosa.

R. ficou a olhar para o homem enquanto este virava costas para ir embora. Depois de um minuto de estupefacção, começou a fazer telefonemas. O primeiro foi para a secretária, a quem pediu o catálogo geral com o portefólio de todas as modelos da empresa. O segundo foi para um psicólogo seu amigo. Não podia mandar uma rapariga qualquer. A circunstância não admitia qualquer falha. Iria colocar todo o seu empenho na prossecução daquela tarefa tão pouco usual.

Na véspera do dia aprazado, N. recebeu um telefonema da agência. Era da própria directora.

Já temos a modelo.

-   Sabia que conseguiria. Mande as fotos, por favor…só o rosto.

A mulher entrou acompanhada de uma enfermeira e apertou a mão aos poucos familiares presentes. Tinha a bata hospitalar vestida, mas irradiava uma beleza carismática. N. apreciou o trabalho da directora. Levou a modelo pela mão e sentou-a junto do pai, que parecia estar a dormir, alheio àquela cena quase teatral em que ele era o protagonista. Depois de muita hesitação, acordou o pai e comunicou-lhe que tudo estava preparado. Olhou o médico, que confirmou com um ligeiro movimento da cabeça, e verificou que a modelo tinha os olhos pregados no chão, como se os resguardasse do sol, aguardando o momento em que a máquina fotográfica disparasse. N. aproximou-se do dispositivo de som e começaram a ouvir-se aplausos na gravação. Era o disco “Amália ao vivo no Olympia”. N. não deixou de pensar no contra-senso daquelas palmas, tendo em conta o contexto, mas percebeu a escolha do pai, pois este havia visto a artista no Olympia na década de 60, no ano daquela gravação. Ele próprio poderá ter contribuído para o aplauso.

A modelo manteve-se quieta e de rosto no chão, como quem se concentra para ouvir um poema. A gravação continuou. N. combinara com o pai que o momento certo seria quando este erguesse o braço. O filho saltou para as faixas pedidas pelo pai e quando se ouviu a artista cantar

Cantando dou brado
E nada me dói
 Se é pois um pecado
Ter amor ao fado
Que Deus me perdoe

um braço tão decidido quanto possível ergueu-se da cama. Sem que houvesse necessidade de alertar a modelo, esta levantou-se com firmeza e aproximou o rosto do homem, mais do que N. acharia possível. O pai abriu os olhos e viu um rosto que parecia ter sido esculpido naquele momento, e uns olhos castanhos e raros, brilhantes e escuros como os de uma sevilhana. As pestanas pareciam um pequeno leque que abria e fechava, acompanhando o ritmo cardíaco. Os olhos quentes e negros arrastavam-no para outro tempo. Deixou-se levar pelo Boulevard Magenta. Michelle. Levado pela mão entre risos e beijos. Um corpo cosido ao seu sob a intermitência de um néon. Um beijo com sabor a Paris. Paris condensada nuns lábios com sabor a Sena. Os traços do rosto não podiam ser igualados por um mestre. O cabelo era escuro, liso e comprido e podia sentir-se o aroma do mel e de frutos exóticos. O homem fixou-se no rosto. Quis erguer o braço mas não conseguiu. Percorreu-lhe os contornos sinuosos com o olhar. O cabelo era igual. Michelle. A pele era imaculada e tinha a textura da seda. A modelo aproximou-se mais dele e deu-lhe a mão. N. ficou siderado. O homem reabriu os olhos e viu aquele rosto belo junto da sua cara. Sentiu o perfume insinuante e uma voz que ecoava cada vez mais longe. Olhou-a no fundo dos olhos quentes e negros. Michelle estava ali com ele, de regresso a Magenta. Paris cabia toda naquele olhar.

A modelo sorriu com doçura e amor, beijando-lhe os lábios com a leveza de uma borboleta. Ele fechou os olhos e não voltou a abri-los.