Os Intelectuais e o futebol
/Cristiano Ronaldo, a nova aposta messiânica (tivemos de ir ao futebol depois de D. Sebastião se recursar reiteradamente a aparecer), atirou para a água o microfone de um repórter que o abordou. Este gesto de censura será desculpado ao “melhor do mundo”, porque temos mais coisas com que nos preocupar (apesar do optimismo institucional da nova retórica triunfalista) e porque não acreditamos muito na liberdade de imprensa, ou melhor, na liberdade tout court (somos espinosista sem o saber). Quanto a mim, vi naquele impulso mais uma prova do messianismo ronaldino, o enviado da Madeira mostrou-nos como podemos derrotar esse tablóide abjecto, perito em desinformação e em irradiar a ideia de que Portugal é constituído maioritariamente por assassinos e assassinados, estropiados, bêbados e tarados sexuais. Só critico Cristiano Ronaldo por uma coisa (ampla): não leu nem Immanuel Kant nem Proust, nunca hesitou entre Herbeto Helder e Fernando Pessoa, ignora todos os filmes de Tarkovsky, continua surdo à Paixão Segundo São Mateus, nunca quis comprar um Francis Bacon em vez de um Mercedes, não foi ao Louvre em vez de Ibiza ou ao Algarve.[1] É por isto que não acredito no cliché teológico do “melhor dos mundos possíveis” de Leibniz, se Deus comandasse a História, Ronaldo teria lido alguns clássicos, autores também eles perfeccionistas, e experimentaria desenhar uma tábua de categorias do futebol ou um silogismo do penálti.
Não acontecendo isto, por lapso do rígido desenvolvimento histórico com certeza, temos apenas mais um jogador de futebol que “abandonou a escola para seguir o seu sonho”. Cabe, portanto, aos cultivadores (é bem disto que se trata, cultivar) da língua e do pensamento procurar a genialidade do Messias. Antigamente, tudo era mais claro, o Estado Novo apostou numa trilogia identitária cujo vértice mais recente era o futebol (devido às transmissões em directo dos jogos da Selecção, enquanto os aparecimentos de Fátima se mantinham na era dos sinais de fumo e das peregrinações a joelho). Todos os portugueses, cultos e incultos, se compraziam em amar este desporto popular cheio de simbologia bíblica e sexual (“meter golo”, “jogador sacrificado”...). Com isto, o Estado corporativo e isolacionista (uma soberania solitária que agora se defende também à esquerda e em cada vez mais vox populi, veja-se o Brexit[2]) manteve durante décadas uma eficaz cortina de fumo que escondia um país miserável e iletrado.
O 25 de Abril denunciou esta alienação que impedia o proletariado de tomar consciência da sua condição revolucionária. No início, ainda se trocaram algumas idas ao estádio por comícios políticos, mas o jornal A Bola e os relatos de futebol (pouco televisionados nas décadas de 70 e 80) acabaram por desacelerar o desenvolvimento do materialismo dialéctico. Hoje, super-mediatizado, abafa qualquer espírito revolucionário dirigido pelos órgãos competentes do Apparatchik. Todavia, se por um lado parte da elite intelectual mantêm um desprezo inabalável no pontapé, e cabeçada, na bola, por outro há um compromisso de respeito crescente vinda de outra parte não despiciente da intelectualidade, habitando sobretudo na esquerda política (continua o debate sobre a possibilidade de haver verdadeiros intelectuais de direita).
Se abrirmos a análise ao planeta, durante muito tempo o futebol foi considerado uma espécie de peste emocional, anátema lançado por cérebros bem pensantes que só permitiam a inclusão de alguns desportos no reino do Espírito (por exemplo, o ténis, jogado de fato branco). Mas houve sempre quem resistisse a esta classificação bastante classista, Norbert Elias (1897-1990) considerava-o um espectáculo civilizado de “violência domesticada”. Se é verdade que o futebol alimenta o sexismo, o machismo, o racismo, a homofobia, o individualismo, o nacionalismo... para alguns pensadores ele parece ter um certo poder de emancipação, de criação colectiva pelo fortalecimento das ligações sociais. Talvez o primeiro intelectual de esquerda a celebrá-lo tenha sido Antonio Gramsci (1891-1937), vendo nele um “reino da lealdade humana exercida ao ar livre.” Eric Hobsbawm (1917-2012), historiador marxista, falava de uma “religião laica do proletariado”. Longe, portanto, do epíteto de “analfabetos em calções” que muitos lhe lançaram, e lançam. Opondo-se mesmo àquilo que Theodor Adorno disse em Minima Moralia: “Glorificar os infelizes pobres diabos leva a glorificar o maravilhoso sistema que faz deles o que são.”
Para noticiar uma nova tolerância dos intelectuais em relação ao futebol, o jornal francês Libération, de 16 deste mês, traz um artigo cujo título resume uma nova visão do mundo do futebol pelos adeptos do pensamento elaborado: “Desprezo intelectual, desprezo de classe: durante muito tempo o futebol foi uma paixão vergonhosa para os belos espíritos. Hoje, ela ter-se-á tornado um novo conformismo.” O artigo insiste na velha polarização, mas inclina-se, não fosse ele de esquerda, para o reconhecimento: 1) refere as críticas por ser mais uma forma de alienação; 2) mas realça a nobreza, quase revolucionária, por se tratar de um desporto que quis desviar-se das leis evolucionistas e, numa “bizarria antropológica”, centrar a sua acção no pé em vez de na mão. Além disso, citando Jean-Philippe Toussaint (Football, Minuit, 2015), “Diante de uma partida de futebol, o futuro está fundamentalmente irresoluto. É esta qualidade de suspense que faz com que, à maneira de um divertimento evocado por Pascal, o futebol nos mantenha radicalmente à distância das nossas preocupações do quotidiano, das misérias da nossa condição e da morte.” Ainda no campo da quase sagração, agora com Robert Maggiori (jornalista filosófico no Libération e adepto da Juventus): “Todos os desportos reproduzem mais ou menos os quatro pólos da actividade humana: o jogo, a guerra, a arte e o trabalho. Mas o futebol é o único que os sublima a todos.”
E é por isto que não tendo uma força revolucionária, o futebol, no ganho inelutável de reconhecimento social que parece adquirir, se tornou um verdadeiro novo conformismo cheio de intensidade emocional.
[1] Em boa verdade, um futebolista que lesse Kant ou Proust, que tivesse uma cultura alargada e refinada, não podia ser futebolista, ter-lhe-ia faltado tempo de treino para apreender e incorporar (tornar corpo) fintas e remates, corridas e paragens, saltos e quedas. Parece, pois, inevitável, que um jogador de futebol tenha de ser culturalmente (“alta cultura”) limitado.
[2] O belo projecto de um continente unido, solidário e pacífico ficou mais frágil depois deste divórcio.