Entre a obscenidade e a vergonha: do pudor
/Numa entrevista dada ao jornal Libération, Eric Fiat relembra a importância do pudor nos jogos eróticos, ao mesmo tempo que desenvolve uma linha argumentativa acerca da mais recente polémica francesa sobre o burkini vs. biquíni. Para este filósofo o pudor, que elogia sem condições, é um “jogo subtil de velamento e de desvelamento”. E o charme está todo aqui: saber fazer esta passagem, na intensidade e momento certos.
Ao longo da história, houve épocas mais e menos pudicas, o século vitoriano levou o puritanismo à sua máxima expressão (maior dissimulação possível do corpo), enquanto os “loucos anos vinte” liberalizaram comportamentos anteriormente considerados obscenos (dança com corpos colados, por exemplo). Por outro lado, ainda dentro do relativismo, o homem pôde mostrar partes do corpo que estavam imperativamente escondidas nas mulheres, o pudor foi, e continua a ser, também uma questão de género. E talvez o uso do Burkini seja a reinvenção de uma discriminação profunda entre o feminino e o masculino. Ao mesmo tempo que a imposição, auto (“servidão voluntária”, La Boétie) ou hetero, do velamento da mulher no Islão fundamentalista revela mais, segundo Eric Fiat, a obscenidade do olhar masculino do que respeito pelo pretenso pudor feminino.
Se à partida o pudor parece ser apenas positivo, o filósofo fala da possibilidade dele deslizar para a ostentação (uma contradição nos termos). “A reivindicação de trazer este vestuário em nome do pudor é estranho. Ao mesmo título que a modéstia, a simplicidade ou a humildade, ele faz parte dessas virtudes frágeis que não se podem afirmar possuir sem imediatamente as perder.” Quando nos consideramos modestos somos orgulhosos, complexos quando nos dizemos simples e impudicos ao proclamarmo-nos pudicos. Como se se tratasse de “uma reserva que se anuncia gritando”. O pudico só pode mostrar-se discretamente, por isso entre uma mulher em biquíni e outra em burkini, a mais pudica não é necessariamente esta última.
É difícil definir filosoficamente a noção de pudor. Os espíritos puros e os corpos puros, “anjos e animais”, não têm pudor. Só o homem, essa “dissonância incarnada”, feito de corpo e espírito, é um animal pudico. E há ainda, claro, uma “geografia do pudor”, nalgumas culturas, por exemplo, não é indecente andar nu desde que se traga uma pulseira, noutras basta um pequeno sinal pintado na cara, ou ter a pélvis depilada...
Nas nossas sociedades, o contrário do pudor está na exposição sem controlo que muitos buscam ao mostrarem-se, "na intimidade", em revistas cor-de-rosa ou programas de televisão populares. Aí, nada de subtilezas, é preciso que as palavras pesem e que as imagens choquem. É esta grande visibilidade que traz a obscenidade. Não há claro-obscuro, tudo está debaixo de potentes holofotes e os espectadores perscrutam os pormenores sórdidos. Se é verdade, diz Éric Fiat, que não se pode viver na obscuridade total (até o mais recatado aspira a algum reconhecimento), o pudor, que comporta, para o ser, a possibilidade da vergonha, é uma componente decisiva na nossa maneira de estar no mundo, de nos relacionarmos com os outros (e também connosco). Além disso, o pudor tem claras virtudes afrodisíacas, bem gerido (que não iniba onde e quando não deve) ele tem um charme profundo. Se desaparecer, “será a morte do amor”, já que há uma “alegria erótica quando o pudico se torna impudico”, tudo feito no momento oportuno, o erotismo, diz o filósofo, é uma “kairologia” (“ciência do momento oportuno”). É por isso que Éric Fiat não se sente minimamente atraído pelo naturismo, porque, sem o saber, promove a obscenidade (quando revela aquilo que devia esconder). Numa praia “normal”, o pudico mostra e esconde simultaneamente, o que alimenta o desejo.
Talvez vivamos hoje num desvio forte do pudico para o obsceno, provocando, na lógica dos contrários, reacções bastante conservadoras, como é o caso do velamento islâmico. Resultado da sociedade ser “talvez adolescente, tendo dificuldade em encontrar a justa medida entre o vício por excesso de pudor, a vergonha, e o vício por falta de pudor, a obscenidade.”