Kazuo Ishiguro
/Ontem foi dia de Nobel da Literatura, venceu Kazuo Ishiguro, do aclamado The Remains of the Day, que o cinema ajudou a popularizar. É um autor pouco, e talvez mal, traduzido em Portugal (desconheço a situação brasileira), a Enfermaria deixa aqui a tradução de um retrato que a célebre revista francesa Le magazine Littéraire fez dele em 2015.
“Chegado ao Reino Unido, vindo do Japão, com seis de idade, o autor de The Remains of the Day tornou-se um dos escritores britânicos mais emblemáticos. Com uma fleuma inoxidável, há dez anos que não publicava um novo livro.
Antes de mais, há uma extraordinária dualidade: a face indubitavelmente japonesa e a expressão absolutamente britânica. Quem é Kazuo Ishiguro? A primeira vez que o encontramos, em 1997, aquando da publicação em França do seu romance The Unconsoled, tinha-nos recebido na sua casa londrina, tipicamente inglesa, «ou melhor, tipicamente inglesa como a imaginam os franceses», corrige ele hoje. Fomos embora um pouco desorientados: um escritor anglo-japonês, capaz de escrever com o absoluto domínio do estilo «japonizante», até mesmo japonês, e ao mesmo tempo capaz de se inscrever na mais pura tradição romanesca britânica (The Remains of the Day), antes de construir, com idêntico sucesso, uma obra claramente da Mitteleuropa (The Unconsoled). Estavamos, com certeza, na presença de um problema de identidade...
Dez anos depois do seu último livro, Never Let Me Go, surpreende-nos novamente com The Buried Giant, uma espécie de narrativa «pós-Arturiana» palpitante, cheia desse realismo mágico que fez o sucesso da literatura latino-americana e marcou, para o melhor, toda uma geração de autores britânicos vindos de fora. Ocasião para, neste novo encontro num bar de um grande hotel parisiense, tirar tudo a limpo. «Não, não tenho problemas de identidade. Sinto-me britânico, e de uma certa forma muito inglês, mesmo se a minha parte japonesa é para mim importante. Cresci na Inglaterra, vi a sociedade mudar, e enquanto escritor tive a minha parte de responsabilidade nessa mudança. Por isso, sinto-me cada vez mais inglês.»
Rápido salto no tempo, como nessas analepses que ele tanto usava nos seus primeiros livros. Estamos em 1960, Kazuo Ishiguro tem 6 anos, o seu pai é convidado pelo governo de sua Great Majesty a vir prosseguir em Guildford (Surrey) as investigações em oceanografia. A estadia devia durar 3 anos, será definitiva. Quinze anos depois do fim da sangrenta guerra que opôs o Japão aos Aliados, imagina-se que não terá sido propriamente fácil para o jovem Ishiguro de ser aceite pelos colegas da escola... «Nada disso. Era o único não-branco da minha turma, mas nunca sofri a mínima marca de racismo.» Acrescentando que quando brincava à guerra com os seus pequenos amigos, insistia «para estar no lado dos que combatiam os alemães, não os japoneses. E que se, por azar, os japoneses eram os inimigos, podia fingir ser coreano.»
Sucesso imediato
Uma infância inglesa das mais banais, ritmada pela ida à Igreja, à escola e a amabilidade da vizinhança. Uma única nota falsa numa noite de «the joyful day of deliverance», tradicionalmente organizada além-Mancha no 5 de Novembro para festejar a derrota da Gunpowder Plot em 1605. A fogueira sobre a qual se queima simbolicamente o manequim do malfeitor Guy Fawkes estava no jardim dos pais de um colega de turma. «Quando ele viu a minha mãe, que tinha ficado na penumbra, a face deformada pela luz das chamas, ficou muito pálido e desapareceu subitamente.» Soube depois que tinha estado alguns anos cativo num campo japonês conhecido pela sua dureza. Até ali muito cordial com os seus vizinhos japoneses, o ex-prisioneiro não tinha suportado a emergência circunstancial de lembranças traumáticas. Mas depois de esta viagem no tempo continuou a manifestar aos vizinhos a mais sincera simpatia.
Passou o tempo, e o rapaz, perfeitamente inserido nos anos 70 britânicos, sonhava ser uma rock star, ou melhor, um guitar hero. Depois fez um ano sabático viajando à boleia através dos Estados Unidos, antes de ir para a universidade estudar literatura inglesa e filosofia. E a escrita? Ela surgiu subitamente aos 28 anos, quando sentiu a necessidade de olhar, antes do desvanecimento total, para a sua breve infância japonesa. Tendo, entretanto, seguido cursos de escrita na universidade de East Anglia, dirigidos por Ray Bradbury, deidicou-se ao seu primeiro romance, A Pale View of Hillis. «Na época tinha um emprego social e não sentia a mínima esperança de vir a viver da escrita, confidencia. De qualquer forma, a literatura não possuia nessa época a aura que obteve mais tarde; a música e a televisão estavam muito mais na moda, um sucesso literário limitava-se a ter uma boa crítica num jornal de referência, nada mais.» O sucesso, no entanto, foi imediato: em poucos livros, distinguidos com vários prémios importantes, entre eles o Booker Prize para The Remains of the Day, Kazuo impôs-se como uma das vozes maiores da nova geração literária, ao seu lado estavam Salman Rushdie, Martin Amis e Ian McEwan.
«Ish», como lhe chamam os amigos, é um autêntico escritor inglês, quase um puro, mesmo se a escrita, pela sua fluidez e limpidez, beneficia, sem dúvida, do legado nipónico. Subsiste uma questão: que coerência há numa obra tecida de universos tão díspares, marcada por tantos saltos no tempo e no espaço? Acreditando nele, uma busca incansável para tentar «compreender o que é verdadeiramente importante para um ser humano». «Enquanto escritor, não procuro tecer uma constatação sobre o que se passa num dado sítio e numa dada época. Preocupo-me com questões mais filosóficas, eternas, universais, mesmo se desconheço as respostas que lhe poderei dar.»
Daí a opção pela via metafórica, escrever de uma forma tal que mesmo os romances como The Remains of the Day, situado numa época e num lugar específicos, não pareçam demasiado realistas, uma maneira de levar o leitor a «procurar neles verdades eternas, e não informação sobre a sociedade da época». Explica que com The Buriet Giant quis colocar a questão da memória dos povos, correndo o risco de confrontar o dogma do «dever de memória», ao qual a modernidade se apega tanto. «Será mesmo necessário manter a memória do passado? Não será melhor algumas vezes esquecer as guerras, os acontecimentos trágicos, afim de evitar novos banhos de sangue? Não sei verdadeiramente o que pensar... Talvez o esquecimento seja preferível.»
Um questionamento que, segundo ele, vale também para o domínio do íntimo. Qual seria a esperança de vida de um casal se cada um mantivesse as memórias dos diferentes passados, acumulando rancor e frustração? Não valerá mais a pena, no fim de contas, à imagem do casal do seu último romance, aprender a esquecer, em nome do amor que se tem pelo outro? E assim tornar a ser uma página em branco, para que o romance prossiga...”