Roger Federer
/Jogo ténis federado há bastante tempo, vou a torneios (sem grandes resultados, diga-se) e treino cerca de 3 vezes por semana. Vim do basquetebol, uma transição difícil, ali muitas coisas fazem-se no ar, o cesto fica lá em cima, no ténis, pelo contrário, os pés devem estar bem assentes no chão, embora não fixos, cada golpe de raquete (ou raqueta) tem de ser desenhado e impulsionado com os pés em contacto com o solo (há excepções, mas é muito difícil bater bem a bola em suspensão e será sempre uma pancada de recurso). Vi aparecer Roger Federer no circuito há cerca de 15 anos, e já na altura o achava genial, tecnicamente genial, mas tacticamente inconsistente, incapaz de se tornar um competidor de topo, de vencer sistematicamente os melhores jogadores. Isto parecia demonstrado por entre 1999 e 2002 ter perdido 3 vezes na 1.ª ronda de Wimbledon. Subitamente, contra os mais justos prognósticos, em 2003 ganha o torneio, o primeiro de 5 consecutivos.
Enganei-me tanto na minha avaliação que agora, apesar de conhecer muito melhor este jogo (hesito em chamar-lhe desporto), quase não aposto no futuro de jovens jogadores. Bom, mas ainda bem que errei, mesmo tendo sido um “erro forçado”, isso significa que Roger Federer foi capaz de desenvolver uma inteligência táctica ao nível da sua extraordinária qualidade técnica. Culminando na vitória de ontem em Wimbledon, a 8.ª (sem perder qualquer set), aos quase 36 anos (idade incompatível com a importância de se ser fisicamente explosivo, mas Federer compensa isso integrando harmoniosamente no seu jogo a experiência acumulada), aliás, este ano venceu o open da Austrália e os master 1000 de Indiana Wells e Miami, uma verdadeira excentricidade, questão de mito mais do que de realidade.
O blogue da Enfermaria partilhou há dias um artigo magnífico de David Foster Wallace, que foi jogador de ténis no circuito universitário americano antes de se dedicar à vertigem da escrita, a linha de sentido está no título: “Roger Federer as Religious Experience”. E Wallace escreveu isto em 2006, quando Federer tinha apenas 8 Grand Slams, hoje, com 19, só poderia ser considerado uma religião (inspiradora mais do que prescritiva). Milhares de outros artigos, sem exagero, foram e vão ser escritos sobre este acontecimento épico, não quero rivalizar com a qualidade de muitos, sobre ténis escrevem poetas e prosadores de alto gabarito. Mas não pude calar o impulso para render homenagem ao jogador que mais me inspirou, dizendo-me repetidamente sem reservas que não basta “pôr a bola do outro lado”, é preciso fazê-lo respondendo a certos imperativos do belo. É preferível fazer 50 erros não forçados a tentar uma pancada “perfeita” (é aqui que mora a beleza do ténis) do que ganhar um jogo a “cortar fiambre”, a dar “madeiradas” eficazes ou a lançar “bolas mortas ao adversário”.
É já um cliché dizer que Federer joga para lá de ténis, que o que ele faz tem mais a ver com a respiração cósmica misturada com leis da física sublimadas pela arte do que com bater numa bola com a raquete num campo. Tudo nele parece irredutivelmente natural, nenhum gesto é forçado, não se descortina cansaço, quase não transpira, baila no campo, devolve a bola de tantas maneiras que parece testar todas as possibilidades do jogo, e é silencioso, porque não precisa de qualquer exterior, o campo, a bola, a raquete e ele são uma totalidade plena, nada é acidental, artificial no seu jogo, ele é o jogo. É por isso que Federer suspende o tempo, uma resposta de esquerda angulada, um slice, um vólei... e o tempo pára, o que ele faz não foi previsto pelos demiurgos. E pronto, fica o apontamento, tosco, mas é meu dever escrever sobre o que admiro, o que me leva a tornar-me qualquer coisa de diferente. Hoje à noite, lá vou tentar no treino imitá-lo, o que resulta sempre num certo ridículo, mas por vezes vislumbro uma ténue aproximação, e isso basta-me. Para a história pode ficar a frase que Miguel Esteves Cardoso escreveu no Público: Federer “Não é só o melhor tenista de sempre. Melhorou o próprio jogo.”