Antes da morte que um português merece
/Não me lembro ao certo da primeira livraria da minha vida tão cheia de livrarias. Suspeito que pode bem ter sido a Bulhosa em Entrecampos, de todo não tão decadente então. Eu devia ter talvez quinze anos. Esta é uma primeira vez – a primeira vez em que comprei um livro absolutamente sozinha, longe do burburinho de pais, primos e irmãos. Com a audácia de um leitor que entra numa livraria certo de si. Há umas semanas, Elena Ferrante tinha uma crónica no The Guardian sobre a intensidade das primeiras coisas, primeiro beijo, primeira vez, primeiro dia de escola, primeira palavra lida, primeiro emprego. A autora italiana fala de como as primeiras vezes não são necessariamente as ideais, as melhores. O que afinal torna as primeiras vezes tão importantes é o seu carácter de momento marcante, a dimensão mitológica, a relação indelével entre a primeira vez que fazemos algo de particularmente significativo na história das nossas vidas e a noção de que isso se vai tornar parte da nossa história ou um hábito. Ternura, alegria, decepção, amargura - a primeira vez enquanto ponto a partir do qual narrar, nem que seja só a nós próprios, a crónica de nós próprios. Séneca escreveu que nada do que é humano nos é alheio, mas a articulação do humano tem uma velha ligação com a habilidade de nos fazermos entender. Tudo o que fica de fora dessa intuição, o que é inenarrável, é tão mais precioso ou monstruoso exactamente porque pode apenas ser indiciado pela linguagem. Mostrado, não demonstrado. Não sei então porquê esse primeiro livro, nessa livraria em Lisboa. O dia de escola devia ter acabado, podia ter sido uma tarde livre, eu devia estar a fazer tempo para que chegasse o autocarro. E porque naquela altura eu me queria tornar uma classicista, gostava de dizer que foi algo como Platão ou Homero, mas isso foi mais tarde. Uma helenista não era o que eu queria ser naquela altura. Provavelmente algum livro chato, sobre história do império romano. E no entanto há qualquer coisa como um golpe de felicidade, como um fruto aberto ao meio, como a certa evocação do odor de romãs no princípio do Outono, sobre uma mesa de madeira, quando Lisboa entardece sobre as suas mais amplas artérias. O ruído do tráfego e os faróis apontados à estátua dos Heróis da Guerra Peninsular e o livro na mão, atravessando a estrada, correndo para o outro lado daquele dédalo de semáforos. Qual foi o último livro que comprei? Uma tradução de Safo, apressadamente, numa livraria em Bloomsbury, no bolso do casaco depois, numa caminhada em direcção a Holborn, Oxford Street, Marble Arch, no autocarro de volta a Oxford abrindo o livro. Dando por mim, essa primeira cena da adolescência repete-se nesta. Coexiste com cenas de outros livros, versos de outros poetas: a cena da madalena em Proust, aquele texto de Borges em que um homem é esfaqueado para que se repetisse a cena da morte de César, sobretudo essa epifania amarga, aquela frase de Pavese, tantas vezes repetida, só é nosso aquilo que perdermos, o que existe intimamente na memória e que pode voltar de repente, inesperadamente, como uma conclusão.
Estas são as coisas amadas, foi o que o poeta disse, previsivelmente. Estão unidas porque uma certa coerência as enlaça. Mas não é uma coerência da memória, é um impulso. Queria crer, pretensiosamente, que a paixão de um leitor une estes dois momentos, queria dizer que o que acontece em Londres pode resgatar a cidade deixada para trás, que me divertem as intermitências da nostalgia, mas é adulto este cansaço e sério, e a noite das quatro da tarde em Londres faria dessa afirmação uma espécie de hybris. Antes da morte que um português merece (por saudade), tento pensar noutros lugares, ou de como eles se podem ultrapassar a eles próprios, salvarem-nos um pouco da contingência, ou de como todos os lugares são efémeros, que só uma coragem de ferro e algum amor pela inesperada estranheza do mundo nos mantém de pé no anonimato rotineiro de qualquer cidade. Que mesmo onde as palavras que enchem os livros confinam com o que não saberíamos dizer, mesmo no mais estranho dos lugares, algo de reconhecível pode ser resgatado e isso pode ocorrer-nos como um começo. Por exemplo, no bolso do casaco, sei que há algures um fragmento em que se pode ler:
κατθάνην δ’ ἴμερός τις [ἔχει με καὶ
λωτίνοις δροσόεντας [ὄ-
χ[θ]οις ἴδην Ἀχερ[
but a kind of yearning has hold of me – to die
and look upon the dewy lotus banks
of Acheron
(Tradução de Anne Carson em If not Winter: Fragments of Sappho, Virago, Londres, 2003)