Tempestade das mãos (recensão)
/Vem a propósito citar Slavoj Zizek, que surripiou a ideia a Gilles Deleuze, que por sua vez a tinha roubado a Marcel Proust, que também a tinha encontrado, mais do que criado: “o pensamento nunca chega à luz do dia espontaneamente, per se, na imanência dos seus princípios; o que nos incita a pensar é sempre um encontro traumático, violento, com um real exterior que se nos impõe brutalmente, pondo em causa as nossas maneiras habituais de pensar. Um pensamento verdadeiro, enquanto tal, é sempre descentrado: não pensamos espontaneamente, somos forçados a pensar.”[1]
I
Ora, André Domingues suplementa e não suplementa esta ideia. O livro que acaba de lançar para o meio da micro comunidade dos leitores de poesia (só podiam ser poucos), trabalho editorial da Debout Sur l’Oeuf, Coimbra 2017, 61p., sacode quem o abre (o título é um aviso), mas ao mesmo tempo parece haver uma distância sã entre a intensidade poética da escrita e aquilo que somos capazes de receber (o “pathos da distância” de que falava Nietzsche). É como se André Domingues não nos quisesse dar tudo, não por ser avarento, mas porque o seu jogo poético é realmente singular, na Tempestade das Mãos vemo-lo a compor poesia e a compor-se a ele mesmo, a fabricar-se, a subjectivar-se. É por isso que devemos encontrar a linha de leitura fora dessa vontade tão habitual de a partir da intenção da obra enxertarmos uns galhos com a nossa visão do mundo. Podemos também entender isto como um respeito quase messiânico pela alteridade do leitor, deixando-o a braços com uma incubação pessoal do que recolhe no seu livro. O messianismo não trata somente da salvação, mas também de gestação experimental de moléculas demiúrgicas, algumas maléficas. Neste sentido, o mito, essa magnífica potência do falso, sempre foi messiânico.
Por outro lado, há encenações e sugestões às quais é difícil ficar indiferente, por exemplo quando escreve:
[…]
E contra os grandes declives da língua
perder o verbo, perder o sítio, poder abrir
com a boca o fecho do teu vestido
e a própria corrida contra o tempo
tornar-se ardente como o eco, a noite
os cabelos da hora dispersos
[…]
(“Cegas Transparências”)
Toda esta imagética do movimento, descendente, e decadente, cronometrada por um tempo apressado, movimento que produz incandescências no espaço indistinto do eco e da noite, para, finalmente, encaixar a zona erógena dos cabelos num medidor abstracto; toda esta potência sugestiva só pode obrigar-nos a pensar, um pensamento emotivo, claro. Há mesmo tentativas de André Domingues fazer genealogias antropológicas, procurando desenhar as possibilidades do humano actual: “vínhamos de noite como animais estendidos / à sombra de uma enorme metrópole. […] Vínhamos claros e sonoros como dádivas desfocadas. […] a casa fulminada / os bosques descalços / os rostos sem rosto.” (“Todas as fontes”).
Mas se quiséssemos, como agora é já um hábito fazer-se, escolher o que prevalece no estilo de André Domingues, diríamos que da mesma forma como a “saia que esvoaça para além do previsto! (“O baloiço”) as suas palavras emergem e projectam-se fora de qualquer previsão inteligível (embora se deve atender aos presságios), sobretudo de uma inteligibilidade poética conservadora. São pura heterogénese, elas vêm a nós sem os protocolos que pré-determinam o sentido, ou sentidos. São uma tempestade de palavras, alimentada por forças hiperbólicas que chegam de todos os lados. Se há uma lei mínima neste livro de André Domingues, é a lei da noite, de uma obscuridade fecunda que remete para os recantos mais periféricos do Cosmos (“Tu, por detrás da transparência”), onde nascem os centauros. Talvez por isso seja uma poesia que gosta de ser dita, o sopro de André Domingues nas brasas do seu fogo sagrado precisa de ser ouvido. É esse fogo que ilumina a noite, não para mostrar impudicamente os contornos das coisas, mas para espalhar um halo de calor vivificante nos vendedores do desespero. Da mesma forma, o silêncio que se adivinha por detrás de tantas palavras é combatido por clamores genéticos: “Eu grito / porque quero / originar.” (“A casa”).
II
Em Tempestade das Mãos, escapando, como disse, das mãos sapudas de certos leitores agrimensores, André Domingues sente-se livre para refazer os códigos comuns dos significantes (“Por vezes sinto o pânico de uma estrela. / Por vezes piso o palco do mistério.”), e no entanto percebe-se uma vontade de que o leitor apanhe alguns fios do novelo da comunidade metafísica da linguagem, uma comunidade mínima, os poetas guardam e projectam algo raro, um sentido raro e no entanto vital: talvez a ontologia da linguagem. Não da linguagem toda, como queria Heidegger, da linguagem dos afectos, que conjugam emoções com descrições e esperanças. O trabalho deste livro é também o de refazer os acordos linguísticos tradicionais, renomear a vida e a morte, mas sobretudo os gestos humanos de quase todos os dias com sintagmas tensionais, feitos de um agon inesperado entre palavras: “tudo se eleva numa imóvel e imensa derrocada” (“Anatomia da Melancolia”), “uma irradiação de ideias fixas” (“Salvo este crepúsculo”) ou, entre outros, “beijávamos flores armadilhadas” (“O ausente”, o meu poema preferido). Por isso, olho para o seu livro como um fluxo em ziguezague, nada é linear, tudo é rizomático. Uma heterogeneidade especial das partículas poéticas que compõem os poemas, como se cada palavra vivesse uma certa soberania na ligação, agónica ou de cumplicidade trágica, com outras palavras. São palavras-força, mais do que palavras-significado. Muitas vezes auto-referenciais, e quando abrem para um qualquer sentido, percebe-se que se trata de algo por vir. Tanto mais que André Domingues trabalha as palavras até ao limite que toca no enigma que as originou. Uma poética agónica à procura de outra fonte linguística, reinventar a língua, mais com ferramentas nostálgicas do que utópicas.
A uma passante
A dupla nacionalidade do sorriso.
O corte longitudinal do olhar.
O teu ar de crianças sentada no colo
da criação.
Não era difícil de adivinhar
que mantinhas uma relação séria
com a efemeridade.
III
Mas nada está atomizado, não se trata de uma poesia de dicionário. O autor (ainda se pode usar este termo?) é um artífice das palavras, já o disse, as suas injunções improváveis reforçam o poder semântico do jogo poético, há uma lógica molecular que passa bem sem os sistemas taxonómicos rebeldes que normalmente organizam os desvios ao senso comum. As revoluções são aqui delicadas, quase gentis, trata-se de recompor os elementos da língua sem a violência de um novo acordo linguístico. Apesar disto, há muitas histórias neste livro, inverosímeis à superfície, mas que despertam no leitor memórias de aventuras, bastantes cheias de estratégias erógenas. A inventividade está também em reunir, ou não separar, o orgânico e o inorgânico, revisita-se o Crash de David Cronenberg em “A emergência da rosa”:
[…]
Através do vidro recorto-te o perfil
de dama reservada na culminação
da carruagem
estou já dentro do diálogo
que as tuas pernas nuas travam
com o banco impávido do metropolitano
[…]
E revisita-se Giorgio de Chirrico, que está em múltiplos lugares do livro, justamente a desfazer a geometria dos milhões de páginas que compõem, com dogmas, a sintaxe imagética do mundo:
[…]
Havia ainda o vulto de um piano ao longe
lá onde a sombra das persianas persistia.
E tudo era exactamente impreciso e consentido.
Como uma verdade perfurada.
(“Permanências pobres”).
Um livro de desconstrução feliz (felicidade cósmica), à procura de leitores atentos e corajosos, sem grelhas, que saberão receber os apertos poéticos de André Domingues e fazer deles um trampolim para se tornarem, pelo menos ligeiramente, diferentes. É para isso que cá andamos, não? Para nos tornarmos diferentes! Acabei do vos dar, com o autor, a “mais recente claridade das promessas” (“O plano da discórdia”).
[1] A Subjectividade Por Vir – Ensaios Críticos sobre a Voz Obscena, Lisboa: Relógio D’Água.