Reinventar a autoridade
/I
[O problema da autoridade parece oscilar entre a obsolescência e uma necessidade urgente, inadiável da sua recuperação. Mas na verdade, o enfraquecimento da velha autoridade acrítica abre a possibilidade de se encontrarem novas formas autoridade justificadas e reconhecidas, isto é, formas de exercer o poder de maneira legítima e fecunda (é isso que diz Alain Renaut, no La fin de l’autorité, 2004, quando escreve que o desaparecimento da autoridade traz menos uma catástrofe do que “interrogações inéditas sobre as práticas do poder”, tendo isto que ver com o próprio “futuro da democracia, simultaneamente como regime político e como cultura”). Parte da entrevista que traduzo, em modo paráfrase, abaixo prende-se com a relação entre a edução e a autoridade (um verdadeiro problema nacional em França), há muito formulada, em dicotomia, por John Locke (os adultos têm o direito, e o dever, de completar o que falta às crianças, e isso valida a autoridade) e Jean-Jacques Rousseau (cuja palavra de ordem foi: “deixai a criança ser criança”). Portanto, a questão filosófica que hoje se coloca, porque a linha rousseauniana venceu a lockiana, é a de como numa sociedade de iguais se pode limitar suficientemente, e eficientemente, o acesso das crianças e dos adolescentes a essa mesma igualdade? Talvez por isso uma nova racionalidade crítica deva questionar as fragilidades sociopolíticas da falta de autoridade, ao mesmo tempo que denuncia a adesão acrítica, a submissão consentida (muitas vezes amada). Em Resumo, precisamos de uma crítica (prolongando Immanuel Kant) que desenvolva a autonomia individual sem cair em novos individualismos. Por enquanto mantém-se a incerteza em relação às boas estratégias para a coligação social (uma junção que não esmague o diverso), é que hoje continua a velha dissimetria hierárquica, justificada pelos mais estapafúrdios lugares comuns (do tipo: “a velhice é um posto”), acarinhados como se se tratasse de um património reflexivo.]
II
Alain Finkielkraut, o conservador lúcido, Frédéric Gros, o libertário não anarquista, foram entrevistados pela Philosophie magazine em Agosto de 2017, questão de se regressar ao problema da autoridade no início do ano lectivo francês.
Como definir a autoridade? Começa por perguntar, Finkielkraut. Não basta ser competente, é preciso também, diz o pensador, direiteza (droiture), clarividência e firmeza, “uma certa nobreza”. F. Gros refere, por sua vez, que a ideia de autoridade tem pelo menos duas dimensões: ausência de violência física e poder indiscutível, a autoridade impõem-se como não-negociável. Ora, a segunda característica colide com o ethos democrático igualitário, onde tudo é discutível. Por isso, para funcionar, a autoridade necessita de ser reconhecida como legítima por quem obedece. Não se trata, pois, e isto é muito importante para F. Gros, de “fonte de legitimidade”, mas de “reconhecimento” e de “funcionamento”. [ele prolonga o funcionalismo do pós-modernismo francês, não fosse ele um distinto foucauldiano]. Refere que habitualmente a desigualdade esmaga, excepto no caso da admiração, quando se admira alguém (o filósofo, um músico, um político...) isso impele à superação. Face à autoridade legítima nunca nos sentimos submetidos, tentamos antes “estar à altura”. Mas, acrescenta o pensador, poucos são realmente dignos de admiração. [mal seria termos de admirar meio mundo].
Finkielkraut subscreve a ideia, mas acentua o erro de se identificar o mestre com o opressor. A seu favor, evoca a teoria da autoridade de Hannah Arendt: obrigação das gerações mais velhas inserirem os neófitos no mundo, exercendo responsavelmente a autoridade. Contrariando a visão de Pierre Bourdieu, e outros soixante-huitardes, para quem qualquer acção pedagógica era objectivamente uma violência simbólica imposta por um poder e uma cultura arbitrárias. [Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, La reproduction. Éléments pour une théorie du système d’enseignement, 1970]. Infelizmente, para Finkielkraut, a instituição escolar preferiu Bourdieu a Arendt. Assim, à força de expulsar a “violência simbólica” da escola, esta tornou-se um “campo de ruínas”. Mais, não haverá transmissão nem, portanto, civilização possível, se toda a hierarquia for considerada arbitrária e denunciada como repressiva.
Frédéric Gros, é menos pessimista, embora destaque que a educação vive no paradoxo, presente em grandes pedagogos como Montaigne, Locke ou Kant, de carecer da obediência para desenvolver o espírito crítico. A emancipação da criança, do adolescente só aparece depois de ele ser disciplinado (para aprender a ler, ter conhecimento do mundo, pensar metodicamente...). É por isso que, defende Gros, a disciplina e a liberdade não são incompatíveis, é necessário passar por uma camada de disciplina para depois a superar. Finkielkraut concorda, mas destaca o ataque que sofreu, e continua a sofrer, a assimetria de papéis na escola, dando-se aos alunos o mesmo poder do que aos professores. Muitas vezes isso faz com que a opinião dos alunos valha tanto como a dos professores, a ignorância eleva-se ao patamar da sabedoria, ou pelo menos vive num registo de impunidade.
Gros recupera então o velho lamento que desde Platão (República) considera a autoridade morta. Haveria uma espécie de “essência nostálgica da autoridade”, concluindo-se que a autoridade é uma forma de poder que resiste, paradoxalmente, porque se lamenta de já não ser aquilo que foi. Finkielkraut discorda, ele próprio ainda não conseguiu ler Ulysses, mas não atira as culpas para o livro ou a sociedade, foi ele que não teve a confiança suficiente para o fazer. Pelo contrário, hoje o modo de reagir a uma impossibilidade semelhante a esta é atacar a obra nas redes sociais, estamos na era da irrisão perpétua. Mas será isso, pergunta-se Finkielkraut, realmente desobedecer à autoridade? F. Gros, aproximando-se de Finkielkraut [estranha-se que dois pensadores aparentemente tão distantes concordem tantas vezes durante esta entrevista], defende que uma desobediência a priori é tão contra-produtiva e perigosa como fazer da obediência uma virtude incondicional. Em boa verdade (epistemológica e ética), deve saber-se sempre porque se obedece ou desobedece.
O mais importante é, pois, definir os estilos de obediência (conformismo, submissão, subordinação, consentimento...) e de estudar os seus limites. Para Gros, o escândalo surge quando nas relações políticas se instaura a sobre-obediência. O que devia acontecer sempre, seguindo o que diz Aristóteles no livro III da Política, era o cidadão, mesmo quando obedece, fazê-lo de livre vontade, ordenando a si próprio a obediência. Finkielkraut retoma o lema Iluminista de aprender a sentir, pensar e agir autonomamente, este lema deve manter-se. Mas para isso é preciso formar e educar. A violência nas periferias parisienses, as incivilidades mais do que comuns na sociedade francesa, tantas vezes contra os professores, mostram que a humanidade começa pela inibição, não pela autonomia. [Relembre-se que Aristóteles escrevia para a elite virtuosa ateniense].
Finkielkraut evoca uma sondagem de 2016 onde os 83% dos inquiridos pensam que a “autoridade é um valor demasiadas vezes criticado”. Gros responde que isso não conduziu à vitória de Marine le Pen [extrema direita], prova de que há uma real diferença entre autoridade e autoritarismo. Aliás, para este autor as políticas autoritárias destroem a autoridade, visto assentarem apenas no medo, esquecendo-se do reconhecimento. E nestas políticas está a democracia, ou algumas formas de democracia perfeitamente compatíveis com o autoritarismo. Veja-se o caso de Vladimir Putin ou Recep Erdogan, sistematicamente reeleitos. É por isso que Gros defende uma “democracia crítica” ou uma “dissidência cívica”. É que para desobedecer autenticamente, para lá da simples economia da indignação, é preciso “compreender as causas éticas que me fazem obedecer, obedecer agora e sempre.”