4 L(acadas) Molduras

“Foi o piar de pássaros assustados
que me devolveu o conhecimento
claro das coisas.”-  Yukio Mishima

 

                                                               para o João Bosch de Turku

 

                                                       I

Ler japonês é tudo aquilo que não sei. Sim, não sei. É urgente dizer
não sei, não quero saber, não gosto. E NÃO me fodam a cabeça!
Não saber é uma enorme vantagem! Uma libertadora vantagem.
Poder caminhar pela rua, praia, jardim, monte sem ter a pressão
de saber o que se passa na Coreia, que parvoíces disse o Trump,
quantos novos golos marcou o Ronaldo ou… sei lá, tanta, tanta, 
tanta informação inútil. Mas gostava de aprender japonês, se fosse
só japonês e mais nada. Sem loiça para lavar depois do almoço ou
ter de  limpar, nos meus dias de folga, o pó de móveis do Ikea que
sonham serem contadores japoneses, lacados e cheios de marfim.  

Eu, também, queria tanta coisa e AQUI estou! Não gosto dos óculos
do Kurosawa, sempre me meteram impressão: um japonês, de olhos
em bico, com uns óculos de sol tão escuros, sem se verem os olhos,
mete-me algum medo. Recorda-me o gajo dos arraiais que conheci:
em dias de festas, e depois da noite cair, usava óculos de sol pretos. A
passo lento, ia arrastando o farel pintado, as folhas e flores do tapete,
já mastigado, pela Coroação da tarde. O sangue em Kurosawa é tão
vermelho sobre o papel de arroz; Pomba branca, em espelho, sobre
bandeira vermelha: equação sobreposta de memórias já perdidas.

 

                                                             II

Li algum Shakespeare, mas não o suficiente para citar de cor algum verso.
Seria útil, agora, para dar algum brilho a este mísero poema. Li todo o O rei
Lear
, Hamlet ficou a meio, porque tinha um exame sobre artes da Patagónia.
O Romeu e Julieta li-o com Zeffirelli! Ah, a Juventude! What is a youth, afinal?
Sempre me soube, o Lear, àquela história da comida sem Sal. Conheces?
Um rei, três filhas, comida com e sem Sal. Vence a mais nova! Transposto
o conto para o meu mundo, eu seria esse irmão mais novo. Gosto disto!
Eu a reinar entre os meus irmãos mais velhos, eu no meu vasto castelo,
 com muito frango assado, faisões e felinos aqui e ali. Uma beata e uma
mexeriqueira na masmorra! Mas Lear não se perde na loucura? Pois, claro!
Haja loucura para misturar os ingredientes e deles fazer nova pincelada.
O alto castelo tem muitas escadas, é uma espécie de dragão cuspindo
fogo e fumo pelas enormes narinas. Se há rosto impressionante no cinema
japonês é aquele, o louco rei, sujo, despido, despenteado pelo remorso.

                                               

                                                           III

Leio a imagem, a palavra que não conheço, a sombra, a densa memória
em camadas sem fronteira definida. Pata de leão na bandeira do extremo
leste. O sol, revestido de armadura dourada, lança espadas de samurais
e entrega as cores primárias aos filhos dos homens. Lá longe, bandeirolas
marcam o fim do império e o começo de uma nova era. O samurai já não
sonha com a guerra, a honra e a espada, tudo o que quer é viver em sossego
no meio da terra que dá o fruto; plantar, colher e amar aquilo que tem o
dever de amar: uma cabana, com colmo de palha, dois filhos e uma esposa.

 

                                                          IV

Lerei o romance mais antigo; o Templo Dourado; o gato preto de Murakami.
Lerei as palmas das mãos do japonês que for meu, nalgum dia de Outono à
beira do Templo. Andarei perdido pelos verões de Mishima e, pelo chá
de Kawabata, vestirei o meu quimono. Ouvirei Tamekistu para sossegar a
minha pesada nostalghia, que terá caído sobre mim, quando a morte já me
for próxima. Nesse futuro longínquo, haverá a carta a enviar ao amigo que,
do outro lado do mundo, saberá do que estou a falar e saberá escutar.

Franco Zeffirelli - “Romeu e Julieta” (1968).