Politeísmo nietzscheano
/“O que nos distingue não é o facto de não reencontrarmos Deus nem na história, nem na natureza, nem por trás da natureza, mas o facto de não sentirmos como ‘divino’ o que era venerado como Deus, antes o consideramos como deplorável, absurdo, nocivo, não só como um erro, mas até como um crime contra a vida... Negamos Deus enquanto Deus... [Wir leugnen Gott als Gott]”. (Nietzsche, O Anticristão, §47)”[1]
Na “morte de Deus” nietzscheana (há pelo menos uma em cada projecto de racionalização da realidade, portanto o Iluminismo e sequelas são pródigos em assassinatos teológicos) não se apaga o divino, mas uma figuração específica dele: a cristã.
Nietzsche sempre esteve receptivo a concepções do divino, provam-no os textos de juventude e notas esparsas em diversos cadernos e livros sobre o dionisíaco. Numa de preparação para O Anticristão escreve que muitos deuses são ainda possíveis, que nele próprio o instinto religioso, criador de deuses, procura por vezes reviver. (1888, 17[4]) Outra da época da Gaia Ciência fala da importância que terá a morte de Deus se fizermos disso uma vitória sobre nós próprios. (1881 12[9]) Trata-se assim de interpretar a morte do Deus cristão como abertura para outra humanidade (ou pós-humanidade, na figura do sobre-homem, der Übermensch) que, tudo o indica, terá ainda deuses, embora se desloque a divinização da morte para a vida. Depois do desaparecimento do Deus moral (processo talvez infindável) emergirá o primado da vida, porventura novamente figurado, sempre de múltiplas formas, em Dioniso, o divinizador da vitalidade naturalista.
Não retornará, contudo, qualquer absoluto, Dioniso é, de acordo com a cultura trágica (que em parte deverá também renascer), um deus disseminado, fragmentado, ele é múltiplo, experimenta-se de diferentes maneiras. Devemos atender ao que diz em Assim Falou Zaratustra, livro III: “A divindade consiste, precisamente, em haver deuses, e não um Deus! [Das eben ist Göttlichkeit, dass es Götter, aber keinen Gott giebt!]”. Em perfeita sintonia com o vigoroso elogio que faz ao politeísmo no §143 da Gaia Ciência, realçando que nele cresciam a liberdade e a pluralidade, o perspectivismo, em suma a força criadora de cada homem. É que com múltiplos deuses não se atrofia nem a liberdade individual, nem os jogos agonísticos que permitem tornar cada um naquilo que é, ou melhor, naquilo que vai sendo.
[1] A última frase coloca problemas de tradução inerentes à regra alemã de pôr todos os substantivos com maiúscula. Neste caso, talvez o primeiro dos dois “deuses” devesse estar com minúscula, visto que é um falso deus que se faz passar por Deus (questão apenas de interpretação).