Livros de 2019 (parte 2)
/José Pedro Moreira
Modris Eksteins, Rites of Spring: The Great War and the Birth of the Modern Age, 1989
Um estudo cultural sobre o mundo em mudança no princípio do séc. XX, desde a estreia do ballet Le Sacre du printemps até à ascenção de Hitler, e sobre como os grandes movimentos de massas que definem o período retomam os gestos ensaiados pelo Modernismo.
Nan Goldin, The ballad of sexual dependency, 1985
Uma sequência de fotografias que documentam anos vividos na margem da sociedade e o grupo, a “família”, que o olhar de Goldin capta. Pequenas narrativas vão emergindo: histórias de intimidade, de perda, violência, procura, amor.
W. G. Sebald, Austerlitz, 2001
O último romance de Sebald e talvez o seu melhor. Numa prosa contínua, sem parágrafos, o narrador conta uma série de encontros com Austerlitz, um historiador de arquitectura obcecado por estruturas de defesa, onde ficamos a saber a sua história, a sua infância em Gales, a sua relação com um dos acontecimentos históricos definidores do séc. XX.
Thomas Bernhard, Collected Poems, 2017
Um dos livros de poesia que me acompanhou este ano. Um Bernhard muito diferente dos romances e do teatro; uma voz mais lírica, mais exaltada e celebratória, menos resmungona.
Hannah Arendt, Origins of Totalitarism, 1951
Um estudo consagrado sobre como o totalitarismo acontece, como se estabelece e enraíza, usando o nazismo e o estalinismo como casos de estudo. Senti que era um livro que tinha obrigação de ler em 2019.
João Coles
The psychoanalysis of fire (Beacon Press Boston, 1968), Gaston Bachelard
Bachelard enriqueceu a filosofia e a ciência através do considerado inimigo desta última: a rêverie na literatura, ou a imaginação poética. Portanto, de um ponto de vista científico, apoiado em imagens literárias e em narrativas mitológicas, ou na chama delas, Bachelard esboça um estudo sobre o nascimento do fogo na história da humanidade e da sua componente libidinosa: toca em temas como hierarquia paternal e a desobediência inteligente, que será o impulso da coragem libertadora da curiosidade, a ansiedade de conhecer, o fogo sexualizado sem nunca (curiosamente) mencionar Freud, a fertilidade imaginativa do fogo na dilatação das ideias, o instinto de morrer e o de viver ou, nas palavras do autor, “o apelo da pira funerária”, entre outros. Um livro sobre os instintos; sobre o que se acende neste nosso cérebro de lagarto para o bem e para o mal; o que impele a natureza humana a querer conhecer e a auto-destruir-se: After having gained all through skill, through love or through violence, you must give up all, you must annihilate yourself (D’Annunzio, Contemplation de la mort).
O Tchekista (Antígona, 2012), Vladimir Zazúbrin
Em poucas palavras, o mais terrificante dos livros sobre a clandestinidade e o modus operandi do matadouro da Tcheka que traz a Srubov, o protagonista, grandes dramas morais. A violência contra a vida e a justificação incontestável das mortes pela revolução revela-se um choque para Srubov que se torna vítima de uma loucura febril. A transcrição de um dos telegramas de Lenine resume a sua desgraça: “Fuzilem sem perguntar nada a ninguém e sem delongas imbecis.”
PS: nomeada história de embalar do ano pelas várias associações e ministérios nacionais.
Il fascismo degli antifascisti (Garzanti, 2018), Pier Paolo Pasolini
Uma breve recolha de ensaios de Pasolini, escritos entre 1962 e 1975 em diversos periódicos, que nos dá luz sobre as diferentes evoluções do fascismo - culturais, linguísticas e políticas - em Itália. O rosnar de denúncia de Pasolini sobreviveu décadas e numa fase da nossa história em que os movimentos de extrema direita se agitam e ganham maior dimensão nos parlamentos, ler este livro e ler PPP assume-se como um acto corsário: compreender as formas anteriores do fascismo e do capitalismo que nos trouxeram aqui de forma a entender e lutar contra as suas novas mutações: ” […] o velho fascismo, ainda que através da degeneração retórica, distinguia: enquanto que o novo fascismo – que é toda outra história – deixou de distinguir: não é humanamente retórico, é americanamente pragmático. O seu objectivo é a reorganização e a homologação brutalmente totalitária do mundo.”
O uivo do coiote (Contraponto, 1996), Luiz Pacheco
Um conjunto de entrevistas reunidas feitas a Luiz Pacheco em 1985, 1988 e 1992, escolhidas, editadas e publicadas pelo próprio na Contraponto. Uma entrevista nunca é de uma autoria só, há dois intervenientes que guiam mutuamente os passos um do outro, improvisando quando necessário. E por isso poderíamos compará-la a uma dança: quando boa, parece que o par flutua; quando má, até nós sentimos calcados os nossos próprios pés. Mas estas pertencem a um bom tango. Enfim, este breve livro resume, como que em pequenas polaróides, a vida de um autor e de algumas das suas peripécias, da sua libertinagem, borracheiras, amizades e inimizades e “visitas” ao Limoeiro (não que fosse necessário contribuir ainda mais para o mito da figura marginal e desbocada de Pacheco), bem como da geração do Café Gelo. Podem contar nestas entrevistas com Luiz Pacheco sempre fiel ao seu estilo, cáustico quando necessário, com humor e larachas e mais larachas. Deste coiote solitário da literatura portuguesa - não digam escritor maldito que ainda vos chega à cara uma lambada pachecal vinda da orla do mundo dos mortos - esperemos ver num dia não muito distante a sua obra reeditada. Até lá, que nos nutram as bibliotecas.
A cidade das mulheres (Coisas de Ler, 2007), Christine de Pisan
Christine de Pisan (1364-1430) foi a primeira escritora, que até hoje se tenha conhecimento, a escrever sobre os direitos das mulheres e a insurgir-se contra a misoginia no mundo das artes na sociedade de Veneza do seu tempo. A cidade das mulheres de Christine (1404) em nada se assemelha ao La città delle donne de Federico Fellini, caso isso vos tenha ocorrido: quando Snaporaz entrou na pequena cidade governada por feministas saiu dali achincalhado, mas o que Fellini releva é uma sociedade desorientada e confusa. Christine de Pisan, pelo contrário, constrói uma cidade amena e racional, bem à moda do Renascimento, ao longo de passeios e diálogos com a Razão, Rectidão e Justiça, as três figuras alegóricas que a acompanham e preenchem a cidade de figuras femininas virtuosas sem as quais uma sociedade não pode viver: poetisas, intelectuais, santas e guerreiras: sejam exemplos Safo e Ortensia, Nicostrata, que teria inventado o alfabeto latino, e Leontina, que publicou escritos criticando Teofrasto, ou a força e coragem de Santa Catarina, Lampheto e Marpasia e todas as amazonas. Isto entremeado com conversas não tão inocentemente didácticas que pretendem desconstruir os preconceitos que Christine, mas não exactamente Christine nem apenas Christine, permitiu entranharem-se nos meandros da sua mente sobre o carácter vicioso e fraco da natureza feminina oriundos de um mundo predominantemente masculino.
Nota: enquanto editor da Enfermaria 6, permiti que o meu preconceito substituísse a capa da edição portuguesa por uma alheia e mais bela, nunca, porém, desconsiderando os meandros legais: ou seja, por decreto-lei de fealdade.
Scusate l’amore (Passigli Editori, 2013), Marina Tsevetaeva
Perdoem o amor , uma possível tradução para o título, é uma belíssima antologia de poemas desta autora russa do séc. XX que escreve despudoradamente sobre uma força, uma grande vertigem chamada amor. Tsevetaeva, numa poesia pejada de emoção, escreve de maneira ao mesmo tempo crua e lírica poemas sobre o cósmico e o grito surdo do amor a amantes, amigos e desconhecidos. No miolo maior do livro, a poesia de Marina entrega-se à urgência de amar, à necessidade constante de uma grande paixão (“tenho de ser amada de maneira absolutamente extraordinária para poder amar extraordinariamente”); são versos com uma sede de amor que precisa de ser renovada e consumada uma e outra vez e em todas formas: a paixão cega, o ódio pelo traidor sobre quem a vingança de olhos vermelhos se lançará, o ciúme pungente (“Como passas com aquela / fácil? Aquela sem traços de divindade? // […] logo tu que conheceste Lilith!”) e a vontade de se abandonar desprendidamente nos braços de alguém. A segunda parte do livro tem como protagonistas as vozes femininas de heroínas antigas e através delas fala-nos do amor impossível: da vontade de não querer mais sentir o corpo graças à violência do amor, como Fedra, que por um desejo exasperante (“uma úlcera em chamas”) suplica em vão a Hipólito algum alívio através de beijos antes de se suicidar; a renúncia de tudo ao corpo dem Eurídice que, contrariamente à tradição, não quer voltar para Orfeu e reviver de novo a dor; e a impossibilidade do amor divino numa sensual, erótica e ternurenta relação entre Maria Madalena e Jesus. O amor em Tsevetaeva é o desejo cego de consumar-se num fogo e depois noutro. Se o amor na sua poesia fosse o Etna, Tsevetaeva seria Empédocles.