BESTIÁRIO COM DUAS BORBOLETAS

“It does look pretty

messy, but it suits me”

Rose Wylie

I

O Raul Milhafre, aquele velho estupor, tinha mesmo razão!

A Poesia Portuguesa não quer saber de Scharf, de tubarões

ou borboletas feitas com dois pontos amarelos. O desenho é,

neste conservador país, apenas o grafiti e duas mamas bem

desenhadas. Fazia chorar qualquer um, qualquer olho que

fizesse. Um olho, uma maça, um palhaço ou outra porcaria

qualquer. Ah, Sim, a poesia, essa coisa que anula qualquer

historiazinha. Alteremos. A flor da abelha por fazer trazia o

som amarrotado da espuma do mar, era talvez a mais

ternurenta das cobras do paraíso! A crítica diz que isto não

é um poema, que aquilo não é um desenho, que não são

animais esses pequenos pontos amarelos numa folha que

parece ter sido arrancada a um balde de lixo, tal árvore.

II

O fogo parece ter começado à direita. Por isso, todos os

bichos correm, sem parar, para o outro lado do papel.

Creio que terá sido este poema a causa de tal desastre, um

pequeno e mísero poema queimado em fúria por mais um

vívido e enfurecido Senhor de Barbas, talvez um bardo ou

candidato a Barbo lá prás terras de Sua Majestade Isabel II.

III

Apolinaire esqueceu-se de cantar as borboletas. Ficou-se

pelos animais que encontrou no Zoo de Paris. Borboletas

Isso é de maricas, terá pensado. E olha, poderá ter razão!

Eu quero cantar, ó musa, duas pequenas borboletas amarelas.

Quero lá saber o que dirão! Faça Sol, faça Chuva, a malta

fala mal de tudo; do que sabe e do que não sabe, por isso,

canto, ó musa, os pontos insignificantes, amarelos, da mulher

do outro lado do canal da Mancha: Rose Wylie, Rose e chega.

IV

Borboleta A ou Borboleta B? Qual das duas é a mais bonita? Digam

lá da vossa justiça. Aqui o espelho é vosso. Deixem-me aqui em

paz, nesta paz de caracol. Ah pois, já se venderam os caracóis!

V

Posso? Faça favor. Queria perguntar em que dia ensina des

enho. E já agora porque cortou a palavra? Pequenino, vai para

casa, deixa isso da pintura e desenho para os ricos. A arte não

serve para nada. O Ben já dizia: a arte é inútil, vão para casa!

Aprende a copiar guardanapos de papel, passadeiras, sombras

de cestos; combina-nos, depois, com cópias de Andre, Judd,

Lewitt e imagina-te Original. Só assim chegarás às listas de

novos artistas (utilíssimas como um 45 num pé de 39).

VI

Antes da enumeração dos elefantes, Noé começou a apontar

os insetos. Quando chegou aos 500 e pouco, matou metade.

Mas devia ter matado todos, assim a extinção já se tinha realizado.

VII

Um rinoceronte, um camelo, uma galinha, uma aranha, um

porco, um macaco, um escaravelho e um pato. Todos do mesmo

tamanho, ao tamanho do verme e das borboletas amarelas.

Parece poesia este desenho: reduz tudo ao mesmo grau de

importância: um porco, um desenho, um crítico, um bardo.

Rose tinha razão: tudo começou na fuga, no caos. Dizer que

um desenho de Guercino é melhor que este, é alimentar

a ilusão de que tudo tem importância. De que tudo irá durar.

***

- Porque somos as primeiras na fuga?

- Preocupa-me, antes, ser “Eu” a amarela nisto tudo!

- Não, não somos as únicas, olha o pinto lá atrás!

ROse Wylie - Late night drawing animals from memory, 2016.jpg

Rose Wylie - “Late night drawing animals from memory”, 2016.