Hotel Agamémnon

Clitemnestra:
Estrangeiros, dizei-me, por favor, o que vos é necessário, pois temos
ao nosso dispor o que convém a uma casa como esta –
banhos quentes, camas que confortam
da fadiga, e a companhia de gente honesta.

Ésquilo, As que trazem libações

O pequeno hotel dá para uma praça. O jardim, sempre tran­cado a cadeado ao entardecer, enche-se de neve. A estátua de mármore, um Apolo esburacado e suburbano a agarrar a harpa, os bancos, as grandes folhas nos plátanos que ignoraram o aviso do Inverno expiam agora a teimosia com a cegueira antipática do gelo.

Tatiana Faia, “Hotel Agamémnon”, São Luís dos Portugueses em Chamas 

 1

o que primeiro me chamou a atenção
foi a placa
na fachada decadente
Um negócio de família
mas foi a cozinha grega
caseira e barata
e a certeza de um abrigo
onde ler e escrever
sem perturbações
durante um par de horas
que fizeram de mim
o único cliente habitual
do Hotel Agamémnon

2

pedimos
duas doses de dolmadaki
um saganaki
e uma garrafa
de vinho branco de Cefalónia
(das pequenas)
e a Vanessa diz-me
José
há algo que preciso
de te perguntar
achas que há algo
de errado comigo?
só homens mais baixos
se parecem
interessar por mim

tenho saído com um tipo
e ele é giro
e doce
e eu gosto dele
e ele
parece gostar de mim
mas não consigo ultrapassar o facto
de ele ser
mais baixo do que eu
e isso é um problema?
sim
quando o abraço
e tens mesmo de o abraçar?
sim José
tenho mesmo de o abraçar

 

3

na próxima visita
Giorgios
o dono
abordou-me depois de almoço
se quiser um quarto por uma tarde
eu faço-lhe um preço especial
sabe
da próxima vez
que vier
com a sua namorada
e deu
um estalido com a língua
mulher alta
sempre gostei
de mulheres altas

 

4

e insistiu
em fazer-me uma visita guiada
aos seus tesouros
era claramente um homem
que precisava
de alguém com quem falar
à medida que caminhávamos pelos corredores
apontava para as paredes
descrevia as relíquias
que tinha conseguido salvar
do naufrágio da história
sobretudo
arte religiosa
efígies do senhor crucificado
uma miríade
de ícones de santos
revelando uma especial devoção
a Santo Atanásio
e fotografias de família
homens e mulheres capturados
a preto e branco
como actores
vestidos a rigor
prestes a entrar em cena
num drama histórico
Giorgios chamou a minha atenção
para uma fotografia
que ocupava
lugar de destaque
um homem de bigode
trajando uniforme militar
que lhe estava claramente apertado
e a custo continha
o corpo volumoso
o meu pai
explicou
um outro cavalheiro
de cabelo pintado e bigode hesitante
segurava uma condecoração
e parecia não estar seguro
se havia
de a espetar ou não
no peito
do senhor anafado
talvez com medo
de que explodisse
o Coronel Papadopoulos
explicou
em voz solene

 

5

Giorgios deteve-se
com a chave na mão
vou mostrar-lhe algo
que só mostro aos meus amigos
e tenho tão poucos
não se assuste
é uma paixão minha
creio que um homem
com a sua sensibilidade artística
vai compreender
e abriu a porta

ao princípio
os animais ficavam
um pouco tortos
é tudo uma questão de prática
e eu só tinha gatos
com que praticar
mas depois comecei a bater
as bermas das estradas ao fim do dia
as maravilhas que se encontra
carcaças de texugos
ouriços-cacheiros
até veados
veados
matéria prima
de altíssima qualidade
exortando-me a apreciar
a perícia e o acabamento
das suas criações
todas deformadas
e grotescas
mas uma
maior e mais grotesca
do que as demais
o que é isto?
uma quimera?
disse apontando
para o que me parecia
o cruzamento de um pónei
com um lobo
isso
meu amigo
disse Giorgios
cofiando o bigode untuoso
é um unicórnio
não faz ideia
da pipa de massa
que paguei por ele

à saída
apresentou-me à sua mulher
D.ª Maria Ifigénia
uma senhora
soturna e atarracada

desde então
que não voltei
ao Hotel Agamémnon