O Século Pessoa

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«À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno

É desta forma que se inicia o editorial (Prometeu e Fausto) do n.º 10 da revista Electra, texto inspirador e esclarecedor de José Manuel dos Santos e António Soares. O “assunto” (tema central) é o “Trabalho e pós-trabalho”, e confirma mais uma vez que se trata da melhor revista de ideias (como chamar-lhe?) editada em Portugal.

Evocar, por vezes invocar, Fernando Pessoa para escolhermos a lente que nos ajude a compreender a fragmentação dos fenómenos maiores (Deus, Verdade, Sentido...) em epifenómenos capazes tanto de fanatizar (trumpismo, nacionalismo, racismo, sexismo, igualitarismo...) como de alienar (no pólo da aversão: trumpismo, nacionalismo, racismo, sexismo, igualitarismo...). É porque Pessoa, como referem José Manuel dos Santos e António Soares, punha na “exclamação metálica” do excerto que citámos da Ode Triunfal uma “voz paroxística, paradoxal e imparável”, como era muitas vezes a do heterónimo Álvaro de Campos.

A tecnologia, que não é apenas uma forma de designar instrumentos mais ou menos complexos que complementam o nosso agir, mas um ecossistema de racionalidade (“logia”) que destaca a importância das coisas fabricadas para a emancipação da espécie humana (visão prometeica, porventura a predominante em Álvaro de Campos). A esta utopia, que continua a carburar a pleno vapor (veja-se como se abafa a responsabilidade humana pela degradação, sem remissão, ambiental martelando numa tecnofilia salvífica), junta-se, como força inversa, uma distopia de cariz faustiana (energia nuclear, engenharia genética, sobre-comunicação telemática, adições digitais...).

Neste caso, Fernando Pessoa, na voz de Álvaro de Campos, celebra a autossuperação da modernidade (económica e filosófica) em direção à pós-modernidade, a passagem da racionalidade auto-domesticada às racionalidades intensificadas por eficiências de contexto, libertas da totalidade, divina (Descartes) ou laica (Hegel).

II

Mas há outro (outros) Fernando Pessoa. Claro, o que se prolonga em Alberto Caeiro, naturalista solar, simplificador, mestre de Mindfulness numa época em que quem não pensava até ao esgotamento ou se dispersava em prolífica confusão era com certeza pobre, pobre de mundo e de bens, cordeiro de Deus. Caeiro, com Walt Whitman a seu lado, traçou uma alternativa antes do tempo, que agora parece ganhar os discursos dos que se enlearam em frenéticos círculos de ganhar/pagar (círculo existencial). Mas não vai muito além de um queixume adornado, os poucos neonaturalistas que vivem em Portugal vêm de outras geografias, com mapas mentais que por cá raramente se reconhecem como válidos.

Mas temos sobretudo Vicente Guedes e Bernardo Soares, narradores dessa obra infinita (porque pode ser composta pelos editores – uso a de Teresa Sobral Cunha para a Relógio D’Água – e porque aponta sempre para lado nenhum, mesmo quando verticaliza a hermenêutica e perscruta as entranhas do organismo humano) que é o Livro do Desassossego. Com ele entra-se e sai-se da pós-modernidade. A entrada dá-se pelo perspectivismo (“eu não creio, é claro, que haja factos”, “há metáforas que são mais reais do que as pessoas que andam na rua.”), a saída pelo cansaço, exílio e absurdo (“Absurdemos a Vida, de leste a oeste”, “Não desembarcar não ter cais onde se desembarque.”, “Nós nunca nos realizamos”, “Os homens são fáceis de afastar: basta não nos aproximarmos.”). Recorde-se que a pós-modernidade era utópica, quis trocar a firmeza cinzenta de Platão da Verdade que oprime pela dança hedonista epicurista, a verdade pela felicidade, laica e singularizada; uma economia da euforia à la carte.

No Livro do Desassossego, traduzido em cerca de 30 línguas, património francês mais do que português, fecha-se, antes da abertura, a pós-modernidade. Teologia negativa, leva a sério um perspectivismo que desemboca numa nova totalidade: a do Nada. É, aliás, contra isto que, sem o saberem, os pós-modernos franceses se rebelarão apontando o dedo ao niilismo de L’être et le néant (O Ser e o Nada). Mas em Sartre ainda havia luz, a da liberdade, mesmo que fosse uma condenação. Bernardo Soares e Vicente Guedes dizem que são mais velhos do que o tempo e o espaço porque são conscientes, ou seja, vivem nos primórdios do tem-de-ser, da ausência de alternativas, no preâmbulo do preâmbulo, na consciência pura que só pensa o que tem-de-ser pensado.

III

Por tudo isto, este século será o de Fernando Pessoa (é uma aposta quase a la Pascal). A liberdade está subjugada pela consciência do tem-de-ser (que na sua dimensão mais reduzida, mas sobre-mediatizada, se traduz pelo “politicamente correcto”). Não nos atrevemos a imaginar novos sentidos, estamos presos aos cuidados intensivos, os que fazem falta à vitalidade orgânica dos doentes, mas também aos que cuidam intensivamente de nos dar a pensar novas rotinas mínimas (o métro, boulot, dodo – metro, trabalho, cama – do Maio 68). E quando queremos extravasar (exílio de sobre-abundância), o dever cívico (só agora importamos isso) põe-nos uma máscara que permite somente a reverberação estéril, o demiúrgico que possa sair da nossa boca ricocheta nos panos sanitários e regressa exausto ao ponto de partida.

Estivemos dois séculos a seguir, consciente ou inconscientemente, a máxima de Friedrich Hölderlin: “Onde está o perigo, está também aquilo que salva”. Este século, pessoano, cabe agora nisto que ele escreve: “Habito a sombra e o sol morreu comigo.”