Fulgurações – da tradução

I

Numa conferência na Real Academia de Berlim no dia 24 de Junho de 1813, Friedrich Schleiermacher, teólogo, filósofo e tradutor (nomeadamente de Platão), propôs-se pensar o ofício de tradutor. Apesar da data, o texto continua actualíssimo e deveria ser de consulta quase obrigatória para quem quer ligar autores e leitores de línguas diferentes. Ainda por cima, está disponível numa magnífica tradução bilingue, coordenada por Miranda Justo (Sobre os Diferentes Métodos de Traduzir, Porto Editora / Elementos Sudoeste, 2003), que a determinado momento (numa apresentação luminosa) nos diz: “traduzir um texto alemão do início do século XIX não é produzir um texto português do século XXI. Ou, de uma forma menos negativa e mais generalizada: a consciência da identidade e da alteridade, da distância histórica e cultural entre diferentes produtos de diferentes línguas/culturas, passa hoje necessariamente – e possivelmente bastante mais do que há uma ou duas décadas atrás – por uma concepção de tradução que privilegie as especificidades linguísticas, cultural, conceptual, estética, do texto de partida, em necessário detrimento da legibilidade mais imediata do texto de chegada.” (p. 17) Mas isto, ainda segundo Miranda Justo, supõe a “lentidão do estranhamento”, incompatível com a “aceleração do consumo”. Uma “aceleração” que, passe a figura de estilo, acelerou de 2003 para cá. Hoje prevalecerá, pois, a “legibilidade mais imediata do texto de chegada”, em detrimento das “especificidades linguísticas, cultural, conceptual, estética, do texto de partida”.

II

Schleiermacher assegura que há apenas dois métodos que o “verdadeiro tradutor” pode usar: 1- “o tradutor esforça-se por substituir pelo seu trabalho o entendimento da língua original que falta ao leitor.” (p. 63); 2- um método de “todos aqueles que se servem da fórmula segundo a qual se deve traduzir um autor como ele mesmo teria escrito em alemão.” (p. 65). E nenhum outro caminho pode ser usado, “Assim, tudo o que de mais se diz sobre as traduções, à letra e pelo sentido, fiéis e infiéis, e quejandas expressões que possam ter-se instalado, mesmo supondo que se tratasse de diferentes métodos, terão que se remeter para um dos dois mencionados”. (p. 67)

Assim, ou traduzir como se o leitor soubesse ler a língua de partida, ou como se o autor soubesse escrever na língua de chegada. Com uma argumentação que não posso agora reproduzir, mas que aconselho vivamente, Schleiermacher demonstra porque a primeira é muito melhor do que a segunda. Por uma questão de fidelidade ao texto original, mas sobretudo porque enriquece a cultura de chegada. Para ele a língua e cultura alemãs são também o resultado de grandes traduções, dos enxertos linguísticos e culturais massivos que receberam do exterior (outros lugares e outros tempos).

O mesmo deveria ter sido feito em Portugal, o mesmo deverá ser feito em Portugal (pretensão deslocada do espírito do tempo da aceleração). A tradução como desígnio cultural maior, forma superior de aculturação, levando Portugal, com um atraso de três ou quatro séculos, para o centro da Europa. Não para perder a sua originalidade, mas para a pôr em diálogo com outras originalidades, para a sentar à mesa das melhores tradições europeias.