Utopia invertida
/O título é pouco exato, sujeita-se ao significado de contexto que depois da Revolução Industrial parece ter contaminado a realidade com um optimismo furioso (mesmo com interregnos, bolsas de tempo e de realidade que curte-circuitaram o desejo frenético de felicidade, Guerras mundiais, por exemplo). Assim, durante séculos, nas sociedades quentes (Lévi-Strauss), o futuro ganhava sempre ao passado e ao presente, ansiava-se por ele, era bem mais Pai Natal do que os outros dois tempos. Isto foi, simultaneamente, uma emancipação em relação às antigas teologias e teogonias (Cristianismo, Grécia e Roma antigas) e uma alienação à ideia de progresso. O progressismo insinuou-se em quase todos os cantos do pensar e do sentir humanos, os céticos do futuro eram agora seres possuídos por uma deformação intelectual e moral. Fosse na política (materialismo dialético), na economia, nos costumes ou na arte, havia a tremenda convicção de que os erros do passado e do presente seriam conjurados no futuro. Sem que nenhum contra-ataque em grande escala, como em Édipo Rei, fosse sequer imaginável, nessa imaginação dominante feita da soma e de mais do que soma das parcelas individuais.
Muitos autores, com tanto mais ambivalência quanto maior era o talento e empenhamento intelectuais, quiseram pensar a ideia de outro lugar, da Grécia à atualidade. Alguns que conheço:
Platão;
Aristóteles;
Thomas More;
Rabelais;
Campanella;
Francis Bacon;
Daniel Defoe;
Jonathan Swift;
Voltaire;
Sade;
Jules Verne;
Mark Twain;
Eugène Zamiatine;
Frizt Lang;
George Orwell;
Hermann Hesse;
Aldous Huxley;
Italo Calvino;
Michel Houellebecq;
Sem a mediação da arte e do pensamento científico, os esboços maiores de utopias recentes centram-se no Terceiro Reich alemão e no marxismo-leninismo soviético. A pessoalização paranoica de uma vontade de futuro assente em projetos de vida pessoais (Lenine, Estaline e Hitler), em visões do mundo alucinadas, redundou nas maiores distopias. Se a utopia busca sempre uma perfeição, parece por isso potenciar, reverso que sempre esteve presente no verso, grandes imperfeições, como, mutatis mutandis, o voo de Ícaro.
Isto para dizer que a era COVID-19 (talvez fique conhecida assim) introduziu a controvérsia: perdemos o encanto pelo futuro, com ou sem vacinas, embora, talvez porque mantemos resquícios do velho optimismo progressista baseado na evolução tecnológica, continuemos a manifestar uma certa esperança de que nos trará coisas boas. Mas estas “coisas boas” são baseadas na antiga normalidade, na era pré-COVID-19. Regressamos ao modelo utópico das antigas mitologias da Idade de Ouro, que o Cristianismo recuperou e desenvolveu a partir do mito da Queda, embora a desgraça de Adão e Eva fosse a própria razão de ser do novo religioso, garantindo que, com mais ou menos percalços, alcançaremos a Realidade, depois da festa final do apocalipse. O que surpreende é a rapidez com que passamos de aspirar aos milagres seculares do futuro ao desejo consistente de que o passado próximo regresse. Quando vou à baixa lisboeta desejo o retorno das enchentes, estrangeiros e nativos. Não me passa pelo pensamento qualquer vislumbre de um futuro mágico.
É a nova utopia invertida. Que pode não passar de um epifenómeno, mas por enquanto parece mais presente e disseminada do que as utopias futuristas. Terá isso um grande impacto na forma como habitamos a Terra? Seremos mais frugais e gentis, mais racionais e comedidos? Haverá uma prevalência do altruísmo sobre o egoísmo, da tolerância sobre o fanatismo? Não sabemos, mas se isso não acontecer, então a nova utopia invertida será tão desinteressante como as utopias futuristas. Porque, em boa verdade, não é através do sonho que o “mundo pula e avança” (mesmo que sejam sonhos bonzinhos, porque há outros), mas de uma lucidez extra, extravagante, conservadora porque conhece as leis empíricas que determinam o mundo, e vanguardista porque desenha com rigor novas formas de estar no mundo, num altruísmo que deixe de ser especista e racista.