Sísifo para lá da montanha
/Em 1942, Camus publica o Mito de Sísifo (Le Mythe de Sisyphe). Fascina-o sobretudo a descida da montanha, depois de Sísifo ter sido vencido, uma e outra vez, perto de chegar com o rochedo ao topo (que provavelmente não existe). Foi esse o castigo dos deuses por tê-los desafiado. Daí que no final do ensaio diga a célebre, e celebrada, frase: «É preciso imaginar Sísifo feliz» (Il faut imaginer Sisyphe heureux). Porque no retorno incessante ao ponto de partida, Sísifo torna-se «superior ao seu destino». «Toda a alegria silenciosa de Sísifo está aí. O seu destino pertence-lhe. O seu rochedo é a sua coisa». Assumindo o seu destino, a sua fatalidade, Sísifo torna-se superior aos deuses, a própria luta chega para preencher o coração do homem, trazendo, paradoxalmente, sentido ao absurdo da existência. O absurdo é um dos pilares do existencialismo, representado por Camus, Sartre, Ionesco, Beckett, Genet e, entre outros, embora à sua maneira, Vergílio Ferreira.
Este último, por enquanto esquecido, escreve: «Sísifo não é ridículo, nem cobarde, nem estúpido, porque é grande na sua miséria, porque é corajoso em não desistir, porque é clarividente e sabe que o alto da montanha fica sempre para lá do alto da montanha.» («Da Fenomenologia a Sartre») Portanto, não é tanto o reconhecimento de uma fatalidade (universal talvez, encontramos facilmente o eterno retorno nas nossas vidas) que mitiga o absurdo da existência, mas um pensar que nos eleva acima do destino. O pensar pára [insisto no acento] o movimento, exclui-nos do movimento, permite-nos ver ao mesmo tempo a nossa fatalidade e para lá dela. E quando, em Alegria Breve, Vergílio escreve, dando voz a Ema (é relevante que seja uma personagem feminina), que «Todos os caminhos são bons, desde que sejam caminhos», elucida-nos sobre sermos lançados para caminhos que não desenhamos ou escolhemos, mas que depois tornamos caminhos nossos ao vermos para lá deles.
Noutros termos: ninguém se safa da vidinha, cheia de eternos retornos, mas se ao lamento acrescentarmos «há vida na vidinha» (uma forma de estabelecermos um «para lá», ou, com Vergílio, «A vida está nel[a] como a brasa sob as cinzas» — «Da fenomenologia a Sartre»), então viveremos numa tragédia decente, prontos para múltiplas felicidades e infelicidades.