Por favor não dê de comer aos unicórnios - Recensão
/Longe vão os tempos em que se escrevia ou para «tornar visível o mistério das coisas» (Vergílio Ferreira) ou para, num ato voluntário de militância, mudar o rumo do mundo (Sartre e marxistas, por exemplo). Hoje temos a escrita ortopédica (os celebrados livros de autoajuda), a escrita best-seller (nascida para vencer) ou a escrita curricular (caça às bolsas académicas ou prémios reservados a génios da terrinha). José Pedro Moreira, indiferente ao incandescente, quis, neste livro, ainda mais do que nos anteriores, conversar com os leitores; sem dar lições, fazer revelações esmagadoras ou renovar a língua portuguesa, injetando-lhe metáforas-dinamite. O Zé quis falar connosco, contar-nos uma história engraçada ou perder-se um pouco, de forma reservada, em digressões de autodescoberta (neste livro parece preferir estimular a vida fora de si). Mas com isso marca uma posição no mundo da poesia: a de que devemos pontuar a aparente banalidade da vida com um sentido que a eleve à altura da sagração (cuidado, o sagrado nem sempre é grandioso). E é por esta razão que, embora paradoxalmente, «um unicórnio significa unicórnio». Ou seja, as coisas, todas elas, até a marquise de Cristiano Ronaldo ou O Beijo de Klimt, são o que são, fenómenos puros antes de nos lançarmos sobre eles a golpes de apreciação. É verdade que, por feitio académico, José Pedro Moreira recupera amiúde parcelas da Grécia antiga (às vezes misturando-as com a carne viva da atualidade), mas também aí quer apenas mostrar que as coisas aconteceram de determinada maneira. Tudo isto negociando mais «as pequenas derrotas» do que as jogadas épicas. Ou, regressando à sua condição de e(i)migrante, um estrangeiro que gostaria, como quase todos, de sentir-se um pouco menos estrangeiro, levando o processo de aculturação a sério.
Assim, este livro revela um Zé de braços abertos (embora não escancarados), desviando-se da tendência de se colocarem os braços à frente do peito, formando cancelas, para escrever poesia para dentro (permanece a ideia, nascida num qualquer decreto real, de que o interior é mais nobre do que o exterior). Mais heterográfico do que autográfico, equilibrando-se entre o onírico e o ensaio fenomenológico, o unicórnio e a égua do tio Manel. Sem nunca arriscar um poema onde umas palavras a mais deitassem tudo por água abaixo. É a partir disto, parece-me, que se justifica o discurso direto do título, um pedido singular, feito a cada leitor, para que não alimente unicórnios. Isto porque mesmo se a codificação poética é bastante livre (mas só aparentemente vive no esplendor do arbitrário), as árvores não podem crescer todas tortas.
José Pedro Moreira convoca Bertrand Russell para uma epígrafe, esse progressista conservador que crê que a boa vida só pode ser vivida numa boa sociedade. Uma sociedade com ou sem unicórnios? Os que não conseguem aguentar-se na caixa podem contribuir para uma boa sociedade? Não serão os destravados, os unicórnios desta vida, um empecilho social? Devemos, então, matar os unicórnios à fome? Talvez. Em «Esclarecimentos sobre a natureza dos cavalos» escreve «esperar / que a folia dos unicórnios passe / que o mundo regresse / a um ritmo / mais natural».
É para contribuir para a ordem que o Zé pega no passado trágico, e cruel, com pinças morais, mantendo uma certa distância e escolhendo facto a facto, como quando usamos uma pinça de cozinha para tirar croquetes de um tabuleiro que acabou de sair do forno com metade da fornada queimada.
Em «O belo jogo», o de uma bola chutada pelos pés e pela cabeça (a interdição de a maioria dos jogadores usarem as mãos, membros precisos, foi uma invenção perversa), é um poema que liga bola e guerra, um tratado sobre beligerância e camaradagem. A coragem e a honra matam os melhores nos piores cenários, mas as rivalidades são o cimento clubístico. No «Esclarecimento sobre a natureza dos unicórnios», trata-se mais de heurística do que de hermenêutica, de nos levar a pensar sobre o ser de um não-ser (o unicórnio é aquilo que não é) do que descrever esse fantasma que agora designa, na boca dos políticos pós-modernos, empresas com um índice muito elevado de fracasso. Contudo, José Pedro Moreira arrisca dizer que foi avistado um na «fronteira irlandesa», esse limiar chuvoso entre amigos/inimigos.
Quando se atreve a um pouco de crítica social, escolhe os «idiotas» para justificar a imperfeição do mundo. Aos idiotas falta autoconceito e sentido da mudança, é assim que se perpetuam. Não são especialmente repulsivos, mas fazem com que haja «dias / em que até / as coisas mais simples /são impossíveis». E há também, prolongando poemas de livros anteriores, o mundo da poesia que se crê para além bem e mal, não por grandeza, mas por bazófia, como quando a Sr.ª Bouvard «decidiu organizar / um festival de poesia / e pediu-nos / um saco de livros». A Sr.ª esteve acima da devolução e do agradecimento, porque o seu tomo poético causou, como era previsível, uma «enorme comoção / entre os guardiães / da Palavra Poética» («Ascensão»). Quem causa comoção a tão altas figuras deve receber, sem gratidão, todos os sacos de livros do mundo. Talvez por isso volte a aparecer no final do livro em «Apocolocintose», ganhando, como era de esperar, um prémio atribuído por um júri loucamente sobrecriterioso. O sistema policial da poesia regressa um pouco depois em «Subsídios para a criação de uma polícia poética», há apelos pungidos a «uma entidade isenta / que certifique / a verdadeira poesia […] aplique coimas / aos que escrevem poemas / sobre escrever poemas».
Irónico, auto-irónico, o Zé faz eco de algumas críticas, reais ou imaginárias, ao seu livro anterior de poesia: Porque canta um pequeno coração (não (edições), 2019). A determinada altura diz: «este poetastro português estrangeiro / ferreiro de versos / sem música nem verdade / gente como ele / não faz cá falta» («carta de um leitor»). Esta espécie de metapoesia tem continuidade numa didascália de «Esclarecimento sobre a natureza dos cavalos»: «o poema / não é / uma esfinge / à espera / de ser interrogada / é um campo de batalha / que deve ser conquistado / e todos os métodos / são legítimos». Há também, num relâmpago autobiográfico que ajuda (será?) a perceber o ofício de poeta, uma genealogia da sua vida acompanhado por Dostoievski.
Por favor não dê de comer aos unicórnios, parcialmente resumido no que acabei de escrever, parece abrir para uma nova ecologia a partir de «Graceful errors». Li a partir daí uma poesia amiga do evanescente (exceto «Apocolocintose» e «Casa»). Mesmo se há «a certeza irracional / de que o mundo / obedece a leis fixas / que avança / do caos para a ordem» («O prémio lá no fim»). Pergunta-se pelas coisas, com nostalgia, e resta cansaço. Os mortos, em «Raquel», são guardados em caixas e «uma vez por ano /abrimo-las / para deixar / entrar o ar».
Por último, num desfecho que parece dizer «não levem isto do cansaço, do irrelevante e da morte muito a sério», José Pedro Moreira compõe um quadro sobre a alegria de viver, esses momentos mágicos, e até um certo ponto negacionistas (como se poderia viver sem alguns filtros hedonistas?), que pegam nas coisas banais do dia a dia e lhe dão um movimento epicurista. Em «Casa», começamos com a nostalgia das origens, cores, cheiros, palavras, família. Mas depois um riso semelhante ao da criança de Zaratustra enche os pequenos corações exilados «e a Tatiana / verte nos copos / o que resta / da garrafa de Papa Figos».