José Pedro Moreira, Leituras de 2021
/Esta é a lista dos dez livros que mais prazer me deu ler este ano. Não é a lista dos dez livros culturalmente mais significantes ou dos melhores que eu li este ano (o leitor poderá encontrar essas listas noutro lado) – hedonismo é uma boa maneira de uma pessoa se meter em problemas na maioria das situações, leitura é uma das raras actividades em que julgo que esta prática deve ser pelo menos tolerada.
É saudável reconhecer que é praticamente impossível fazer uma lista destas sem cair no ridículo. Tentem escrever um parágrafo a recomendar a leitura do Ana Karenina sem cair em lugares comuns. Eu certamente não consigo e resolverei o problema evitando-o. Estes livros são muito mais inteligentes do que o que quer que tenha a dizer sobre eles, por isso o melhor é não dizer muito. O senhor leitor imagine antes uma vénia silenciosa e veneranda.
Fiz primeiro uma lista dos vinte livros de que mais gostei de ler este ano. Não foi fácil. Foi mais difícil ainda reduzir a lista a um total de dez. Incluo em baixo os outros dez livros que constavam na lista inicial.
Incluo também uma lista de alguns livros que saíram em 2021 e que estão no topo da minha pilha de leituras.
Os meus dez livros de 2021
77 Oníricas, John Berryman (trad. de Daniel Jonas)
Concisa, irónica, inventiva, auto-paródica – a poesia de John Berryman é uma das minhas descobertas do ano. E a tradução de Daniel Jonas é soberba: informada, culta, inventiva, uma tradução de poesia por um bom poeta. Cá fica um poema:
75
Turning it over, considering, like a madman
Henry put forth a book.
No harm resulted from this.
Neither the menstruating stars (nor man) was moved
at once.
Bare dogs drew closer for a second look
and performed their friendly operations there.
Refreshed, the bark rejoiced.
Seasons went and came.
Leaves fell, but only a few.
Something remarkable about this
unshedding bulky bole-proud blue-green moist
thing made by savage & thoughtful
surviving Henry
began to strike the passers from despair
so that sore on their shoulders old men hoisted
six-foot sons and polished women called
small girls to dream awhile toward the flashing & bursting tree!
75
Examinando-o, considerando-o, como um louco
o Henry publicou um livro.
Nenhum mal adveio disso.
Nem as menstruadas estrelas (nem o homem) se comoveram de súbito.
Cães em pêlo aproximaram-se para ver melhor
e praticarem as suas amigas manobras ali mesmo.
Refrescada, a casca rejubilou.
As estações chegaram e partiram.
As folhas caíram, umas poucas.
Um quê de extraordinário neste
entroncado unido volumoso verdazulado húmido
coiso obra do selvagem & prudente
sobrevivente Henry
começou a espantar os passantes do desespero
tanto que das suas espáduas purulentas os velhos desfraldaram
filhos de metro e oitenta e mulheres polidas chamaram
meninas a um pouco de sonho ante o cintilante & viçoso lenho!
Anna Karénina, Tolstói
E cá estamos, Anna Karénina. Serei breve. Uma das releituras deste ano. Li-o pela primeira vez quando saiu a tradução de António Pescada (Relógio d’Água), que recomendo. Um dos melhores livros que alguma vez li. E achei-o melhor ainda desta vez. “Li”-o desta vez numa versão audiobook, interpretado por Maggie Gyllenhaal. Ela é excelente. E há uns dias atrás vi o The Lost Daughter (Netflix, 2021), realizado por ela, uma adaptação de um romance de Elena Ferrante. Também muito bom. Mas não tanto quanto o Anna Karénina. E pronto, cá temos o Anna Karénina despachado num parágrafo.
A swim in the pond in the rain, George Saunders
Um livro recomendado por um amigo que é professor de Literatura Russa e que sabe o quanto gosto de Dostoiévski, Tólstoi e Tchékhov (Turguéniev não tanto). Este é talvez um dos livros mais difíceis de descrever na lista. O livro inclui um conto de cada um dos mestres russos (Dostoiévski, Tólstoi, Tchékhov e, bem, Turguéniev), cada conto é seguido de um texto ensaístico interpretativo. Aqui é que os problemas começam.
George Saunders é um leitor inteligente e perspicaz que ama estes textos e que os relê há anos, que os conhece de cor, que é capaz de ver coisas que não vemos.
George Saunders é um professor de escrita criativa, que ensina estes textos há anos, que há anos que dialoga com alunos sobre estes textos.
George Saunders é um autor, que há anos que procura soluções práticas para as questões narrativas que enfrenta.
Os ensaios são escritos de todos estes pontos de vista. Mas o leitor atento toma a primazia.
Muitas vezes lemos de maneira apressada. Somos sobranceiros a responder às questões que o texto invoca, por vezes negando a existência da pergunta. George Saunders é o leitor que nos faz voltar atrás e olhar com mais atenção. Que nos interpela com questões como “Que história está a ser contada aqui? Se é esta história que está a ser contada porque é que o escritor fez isto e não aquilo? Não seria muito mais fácil contar esta história de outra maneira? Ou talvez não seja essa a história que esteja a ser contada?”
É sobretudo um exercício de amor partilhado. Do prazer da descoberta de grandes textos e da exegese literária enquanto actividade social. Perdão se isto faz com que o livro pareça um bocado para o académico. É-o apenas no melhor dos sentidos: recordou-me de um seminário de Teoria de Literatura que assisti há mais de uma década atrás. Não interessa o tema, era no fundo um pretexto para um pequeno grupo de estudantes (não éramos mais de meia-dúzia) e a professora lerem grandes textos (Kafka, Goethe, Sófocles, etc.) e depois passar as quatro horas semanais do seminário a falar sobre eles. Esta foi uma das melhores experiências do meu tempo enquanto estudante universitário. Uma aprendizagem alegre, que prosseguia em debates entre cigarros na pausa para café, que fazia a imaginação pulsar rápido, que nos faz pensar em coisas que sempre estiveram presentes mas que não estávamos equipados para ver, ou, se víamos, que não éramos capazes de articular. Senti o mesmo ao ler este livro.
Criminal (série de banda desenhada), Ed Brubaker (argumento), Sean Phillips (ilustração)
O Criminal original (2006-2010) é uma das minhas séries de banda desenhada preferida. Como a descrever? Uma colecção de histórias de submundo do crime que recicla uma série de tropos do género heist. Há o assalto a um banco que corre mal, o carteirista toxicodependente, o rapaz que cresce neste ambiente e que tenta fazer nome, o patriarca violento, etc. Mas a consciência dos códigos do género nunca cai na caricatura, e as histórias que emergem são credíveis e excepcionalmente bem escritas. É consensual que Ed Brubaker se tornou o grande mestre da banda desenhada de crime. A meio do ano consegui comprar todos os números disponíveis da série mais recente (2019-...) com desconto. Aproveitei para reler os volumes originais e outras coisas de Brubaker: Gotham DC (um policial no mundo de Batman), The Fade Out e Fatale. Gotham DC é excelente, os outros dois são bons, mas estão um pouco mais abaixo em termos de qualidade. Criminal é um clássico.
Sabrina (graphic novel), Nick Drnaso
Comprei o Sabrina há um par de anos atrás. Na altura tinha sido o primeiro graphic novel a ser nomeada para o Booker Prize, e foi recebido por um entusiasmo crítico invulgar para um livro de banda desenhada e o autor foi exaltado como um prodígio (tinha 29 anos quando o livro saiu). Li finalmente o livro no início de 2021. Nick Drnaso é um prodígio. Se tivesse de reduzir esta lista a três livros este seria um deles.
Uma jovem está em casa dos pais, a tomar conta do gato. A irmã, Sandra, vem a casa, as duas irmãs conversam, partilham histórias de adolescência, falam sobre passarem férias juntas. Sandra deixa a casa. É a última vez que vê a irmã. Na cena seguinte Calvin, um soldado da Força Aérea, vai esperar o seu amigo Tommy, um jovem introvertido, ao aeroporto. A namorada de Tommy desapareceu há um mês, e Calvin, recentemente divorciado, convida-o para vir para a sua casa. A namorada de Tommy é Sabrina, a irmã de Sandra. Pouco depois descobrimos que Sabrina foi raptada e sofreu um fim violento. E, no entanto, esta não é uma história sobre um crime, mas um estudo sobre como um crime afecta os que são próximos da vítima, como lidam com a culpa de sobreviver à morte de alguém próximo. Torna-se igualmente uma história sobre a experiência de perda no mundo hiper-mediatizado de hoje, quando a notícia da morte se torna viral, e tema de uma série de teorias da conspiração.
Slaughter House-Five (graphic novel), Ryan North e Albert Monteys (a partir do romance de Kurt Vonnegut)
Mais do que “adaptação”, uma reescrita de Slaughter House-Five. Imensamente divertido e trágico. So it goes. Conhecia o trabalho de Ryan North da série da Marvel The Unbeatable Squirrel Girl, que ganhou uma série de prémios há uns anos atrás. Na altura li o primeiro volume e não me disse grande coisa. Mas Slaughter House-Five é tão bom que tenciono dar outra oportunidade a The Unbeatable Squirrel Girl em 2022.
String Theory , David Foster Wallace
Os ensaios de Foster Wallace sobre ténis. Voltar a jogar ténis foi das melhores coisas que me aconteceu em 2021. Voltei a apaixonar-me pelo jogo, tornei-me membro de um clube local, comecei a jogar pela equipa do clube, e dei por mim a ler bastante sobre ténis. O livro de David Foster Wallace é o melhor livro sobre ténis que já li. É um dos raros casos de um livro sobre ténis que ama o jogo tanto quanto a linguagem, que invoca erudição filosófica e cultura pop para devidamente louvar a minúcia da excelência atlética. O ensaio sobre Federer é lendário (pode ser lido aqui). O meu preferido é o ensaio sobre Michael Joyce, um jogador que nunca entrou no top 50 do circuito ATP, mas que Foster Wallace admira e que acompanhou durante algumas semanas.
O primeiro ensaio do livro é sobre a experiência formativa de Foster Wallace enquanto jogador de ténis. Nas suas palavras, Foster Wallace foi “a near great junior tennis player”. Quando faleceu, os ex-colegas da equipa de liceu juntaram-se e dedicaram os courts onde costumavam treinar em sua memória. Isto nunca falha em me comover.
The Dream of Enlightment: The Rise of Modern Philosophy, Anthony Gottlieb
O segundo volume de uma empresa começada com The Dream of Reason, a criação de uma história da Filosofia Ocidental acessível a um público não especializado. O The Dream of Reason, que cobria o pensamento filosófico desde a Grécia Antiga até ao Renascimento, estava na minha lista dos livros do ano em 2017; The Dream of Enlightment, que começa em Descartes e vai até à Revoliução Francesa, não decepcionou. Resumir as ideias de Descartes, Hobbes, Rousseau, Locke, Espinoza e Hume em narrativas coerentes, elegantes e acessíveis é um feito acessível apenas a uma inteligência excepcionalmente organizada, fazê-lo com sentido de humor é quase um milagre. Aguardo impacientemente a publicação do terceiro volume.
Tutti Frutti, Marco Mendes
O livro reúne as bandas desenhadas de Marques Mendes publicadas diariamente no Jornal de Notícias, entre os dias 3 de junho e 23 de dezembro de 2018, e ainda as bandas desenhadas rejeitadas. Peças humorísticas, autobiográficas, políticas, de uma enorme beleza.
Wolf Hall, Hillary Mantel
Este livro é fácil de enquadrar: o primeiro livro da trilogia sobre Thomas Cromwell, Wolf Hall segue a carreira de Cromwell durante a queda do seu patrono, o Cardeal Wolsey, e a sua ascensão a figura central na corte de Henrique VIII durante o processo que culminaria com o coroamento de Ana Bolena. Romances históricos que se comprazem com intriga palaciana e detalhe salaz abundam, mas a excelência da prosa de Mantel transcende o que é circunstancial. A maior surpresa do ano. O livro ganhou uma série de prémios e há anos que amigos me andam a recomendá-lo, ainda assim não esperava que fosse tão bom. Nem tão engraçado. Contém alguns dos melhores diálogos que li nos últimos anos. E comecei 2022 a ler o segundo volume da trilogia, Bring up the Bodies.