2 poemas de Que Coisa é um Alguidar? de J. Carlos Teixeira
/METADES DE UMA LARANJA
para a Mafalda Sofia Gomes
I
Quando Maria se perdeu no deserto
não sei se seriam
cálices ou ondas
que lhe desciam pelos seios
enviuvados.
II
O tumor da tempestade
arrastou o túmulo da tua cria,
levando consigo o calor sombrio
dos rebanhos em negação.
III
Escreveram nas paredes
que os pombos tombaram.
IV
O teu filho morreu
e no fundo dos montes
ouvem-se os gritos das mulheres
ecoando nas bocas dos peixes.
V
Esses olhos nunca mais
voltarão a cair aos seus pés
como mantos pousados aos ombros
das montanhas.
VI
Ventre da manhã,
os tambores já não tocam
nesta cidade.
ACOLITAR
Um terço do meu corpo
poderia cobrir uma boca
como pão e vinho
não seria ensinamento,
seria romance
aprender o catecismo
de pé descalço
acenderam a candeia:
debaixo da tua batina
caberia uma romaria.
J. Carlos Teixeira, Que Coisa é um Alguidar?, Editora Exclamação, 2024