2 poemas de Que Coisa é um Alguidar? de J. Carlos Teixeira

METADES DE UMA LARANJA

para a Mafalda Sofia Gomes

I

Quando Maria se perdeu no deserto
não sei se seriam
cálices ou ondas
que lhe desciam pelos seios
enviuvados.

II

O tumor da tempestade
arrastou o túmulo da tua cria,
levando consigo o calor sombrio
dos rebanhos em negação.

III

Escreveram nas paredes
que os pombos tombaram.

IV

O teu filho morreu
e no fundo dos montes
ouvem-se os gritos das mulheres
ecoando nas bocas dos peixes.

V

Esses olhos nunca mais
voltarão a cair aos seus pés
como mantos pousados aos ombros
das montanhas.

VI

Ventre da manhã,
os tambores já não tocam
nesta cidade.

ACOLITAR

Um terço do meu corpo
poderia cobrir uma boca
como pão e vinho

não seria ensinamento,
seria romance
aprender o catecismo
de pé descalço

acenderam a candeia:
            debaixo da tua batina
            caberia uma romaria.

J. Carlos Teixeira, Que Coisa é um Alguidar?, Editora Exclamação, 2024

"Vem ao parque " de Stefan George

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Tradução: J. Carlos Teixeira

Vem ao parque que dizem estar morto e vê:
O resplandecer da margem do rio à distância. Sorridente ·
O azul inesperado das nuvens puras
Iluminam a lagoa e os trilhos em cor. 

Olha só o amarelo · o cinzento suave
das bétulas e das faias · o vento tépido ·
As rosas tardias ainda por murchar ·
Escolhe aquela que vais beijar e tece a coroa ·

E não te esqueças destas últimas sécias ·
A púrpura à volta das vinhas selvagens ·
E tudo o que restou da era enverdecida
Entrelaça no rosto outonal.

in Das Jahr der Seele, 1897


Komm in den totgesagten park und schau:
Der schimmer ferner lächelnder gestade ·
Der reinen wolken unverhofftes blau
Erhellt die weiher und die bunten pfade.

Dort nimm das tiefe gelb · das weiche grau
von birken und von buchs · der wind ist lau ·
Die späten rosen welkten noch nicht ganz ·
Erlese küsse sie und flicht den kranz ·

Vergiss auch diese lezten astern nicht ·
Den purpur um die ranken wilder reben ·
Und auch was übrig blieb von grünem leben
Verwinde leicht im herbstlichen gesicht.

in Das Jahr der Seele, 1897

"Romance factual" de Erich Kästner

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Tradução: J. Carlos Teixeira

Romance factual

Depois de se conhecerem havia oito anos
(e deixe que se diga: eles conheciam-se bem),
perdeu-se, de repente, o seu amor.
Tal como muita gente perde uma bengala ou um chapéu. 

Eles eram tristes, mas enganavam-se com alegria,
ensaiavam beijos como se nada fosse,
e olhavam um para o outro e não sabiam o que viria.
Então ela chorou. Ele ficou ao seu lado.

Da janela podia-se acenar aos navios.
Ele disse que já eram quatro e um quarto
e era hora de tomar um café em qualquer parte.
Na casa ao lado, alguém praticava piano.

Eles foram para o café mais pequeno das redondezas
e entretiveram-se a mexer as suas chávenas.
À noite ainda lá estavam.
Sentaram-se sozinhos sem dizer uma palavra -
simplesmente sem se poderem acreditar.


Sachliche Romanze

Als sie einander acht Jahre kannten
(und man darf sagen: sie kannten sich gut),
kam ihre Liebe plötzlich abhanden.
Wie andern Leuten ein Stock oder Hut.

Sie waren traurig, betrugen sich heiter,
versuchten Küsse, als ob nichts sei,
und sahen sich an und wußten nicht weiter.
Da weinte sie schließlich. Und er stand dabei.

Vom Fenster aus konnte man Schiffen winken.
Er sagte, es wäre schon Viertel nach Vier
und Zeit, irgendwo Kaffee zu trinken.
Nebenan übte ein Mensch Klavier.

Sie gingen ins kleinste Cafe am Ort
und rührten in ihren Tassen.
Am Abend saßen sie immer noch dort.
Sie saßen allein, und sie sprachen kein Wort
und konnten es einfach nicht fassen.




"Depois deste dilúvio" de Ingeborg Bachmann

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Tradução: J. Carlos Teixeira


Depois deste dilúvio

Depois deste dilúvio,
queria a pomba
e nada mais do que a pomba
ver - salva uma vez mais.

Eu afogar-me-ia neste mar!
Não voasse ela para longe,
não trouxesse ela
a folha na última hora.


Nach dieser Sintflut

Nach dieser Sintflut
möchte ich die Taube,
und nichts als die Taube,
noch einmal gerettet sehn.

Ich ginge ja unter in diesem Meer!
flög’ sie nicht aus,
brächte sie nicht
in letzter Stunde das Blatt.

"Fraternidade" de Ingeborg Bachmann

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Tradução: J. Carlos Teixeira

Fraternidade

Tudo abre a ferida -
nenhum de nós perdoou o outro.
Ferido como tu e ferindo,
guiei-me em direção a ti.

O mais puro, o espírito do toque,
a cada toque aumenta;
provámo-lo ao envelhecer:
invertidos no mais frio silêncio.

in Gedichte 1957-1961


Bruderschaft

Alles ist Wundenschlagen,
und keiner hat keinem verziehn.
Verletzt wie du und verletzend,
lebte ich auf dich hin.

Die reine, die Geistberührung,
um jede Berührung vermehrt,
wir erfahren sie alternd,
ins kälteste Schweigen gekehrt

in Gedichte 1957-1961