Manhã e Noite, Jon Fosse, nota de leitura
/Acabei de ler, chegando tarde, como quase sempre me acontece, sem nenhuma virtude especial, relativamente ao que entra em ebulição, Manhã e Noite, um romance do último prémio Nobel da Literatura, o norueguês Jon Fosse, editado pela Cavalo de Ferro, tradução de Manuel Alberto Vieira, com 111 páginas divididas em duas partes. Na primeira, curta, descreve, quase em direto, o nascimento de Johannes, filho do pescador Olaï e da sua mulher Marta, relato pontuado pelas observações, práticas e determinadas, da parteira, uma voz de quem sabe mais do que ajudar a dar à Luz. Johannes nasce no meio de uma frase, o pai ouve os sons do parto, pensa em Deus e no filho que se tornará pescador, como ele. Na segunda parte, o autor narra um dia no qual Johannes, já velho (um salto no tempo que vai sendo preenchido, mas não muito, ao longo do livro), reformado, depois de criar sete filhos e da mulher, Erna, haver morrido, encontra o seu amigo Peter (não se sabe imediatamente se está vivo ou morto), também pescador, na praia, embarcando com ele para pescar caranguejos. No regresso experimenta, entre outras coisas, um encontro espectral com a filha querida, Signe, que passa através dele sem o ver (é um livro sobre passagens). A história começa, pois, com um nascimento e termina com a morte, ou melhor, com o morrer.
Um livro com poucas, pouquíssimas peripécias, aposta antes num movimento fluido entre o mar e a terra, as recordações e a realidade tangível, o sonho e a vigília. O protagonista viaja entre a frugalidade do passado no limiar da pobreza mas com a casa cheia de vida e o conforto de reformado solitário, hoje. Todos os filhos foram bem-sucedidos, Signe mora perto e encontra-a muitas vezes. Johannes ainda pesca, por recriação, agora. Fuma e bebe café. Mas a casa não aquece, por mais lenha que queime. Através de uma escrita minimalista, quase um processo de criação automático, o narrador «descobre as coisas à medida que as escreve», compondo como fosse uma espécie de improvisação musical.
O estilo, marcado pela repetição, pela pontuação inesperada (aproximando-se, sem complexos, da oralidade, mas também de outra coisa que não isso, como se quisesse encontrar ritmos e significados mais arcaicos) e pela alternância de perspectivas (sem ser verdadeiramente polifónico), é perfeito para esta deambulação, lenta e resignada, entre a vida e a morte, com a qual ele diz aquilo que tem para dizer. A derradeira jornada de um impreparado ser para a morte, impressa numa prosa original e honesta. As paixões tristes dominam o romance, mas, contra Espinosa, elas trazem uma vitalidade tranquila (acrescentam ser), a que se pode chamar melancolia criadora, ou bela melancolia, fortalecendo os leitores. Este livro permite sentir as vibrações dos abismos da vida, essenciais para completar o ciclo, ou ciclos, da existência. Sem a intenção, todavia, de abalar, quando nos resgata da banalidade não o faz arrastando-nos para novos mundos, reorienta somente, de forma ligeiramente iconoclasta e através de uma arqueologia sobre o viver, a viagem interior que prosseguimos desde que nascemos. Não pegamos fogo ao lê-lo, é verdade. Mas é um bom mergulho, e podemos tomá-lo por si mesmo ou como um meio para pensarmos sobre o profundo sem a ditadura do fundamento.