Do paraíso ao inferno

Hieronymus Bosch, Jardim das Delícias, 1504

O Paraíso, que parecia ser só um e nos deu a altura devida (plena felicidade) para que a queda fosse exemplar (descobrimos os valores, as palavras e a dor), tornou-se, substantivado ou adjetivado, um mot-valise. Está, como não podia deixar de ser, em toda a economia industrial do turismo, mas igualmente noutras áreas da civilização do consumo (produção, consumo e lixo, na verdade).

Sabemos que vivemos numa retórica do hiperbólico, ampliamos, engrandecemos o mais que podemos tudo o que tiver a mínima condição para se destacar, sobressair ligeiramente num certo contexto. Estamos, pois, longe da paciência e da contenção avaliativa. Não que eu defenda, em modo inactual, uma hermenêutica judiciosa por sovinice, mas porque ninguém sai a ganhar com a banalização do grandioso (partamos do princípio que é possível defini-lo sem cair na arbitrariedade).

Nietzsche viu bem esta decadência no início do era dos todos os perigos (segunda metade do século xix). A ressaca do culto do génio romântico, que queria democratizar capacidades e competências, deixou emergir um spleen bafiento que ressuscitou, com demasiada facilidade, hierarquizações grotescas. Contra isto, escrevia aquele pensador: «E um povo — como um homem, aliás, — só vale pela marca da eternidade que for capaz de imprimir nas suas experiências.» (O Nascimento da Tragédia, § 23)

Dar-se-á agora também o caso de que de tanto paraíso, tanto paradisíaco resulte um cansaço que nos leve a abrir as portas do inferno (que, como sabemos depois de Sartre, são sempre os outros). E talvez este inferno, partindo de uma visão catastrofílica, seja somente a descoberta de que a civilização atingiu o colapso sistémico, não cultural ou psicologicamente (leia-se o Mal-Estar na Civilização de Freud), mas ambientalmente. A descoberta, de polichinelo, de que a Terra já não nos suporta (na dupla acessão: material e afetiva).

Se nos desalienarmos da retórica consumista (que colonizou todos os atos de fala, por mais anódinos que sejam), nem sequer sentiremos uma inquietante estranheza (das Unheimliche), mas, na melhor das hipóteses, resignaremos poeticamente e viajaremos sem agitação através do inferno à espera de sermos submersos pelos detritos: plásticos, linguísticos e imagéticos.