Pais e filhos

Ontem meu filho fez três anos;
e minha filha de cinco é a flor do meu quintal. 

A impossível maçã dos rostos
os olhinhos de cão, de quem olha e crê,
o mundo táctil mobilíssimo tão dado ao artesanato: 

“Um urubu, papai”
É, um urubu, pois é
“O seu avô, papai”
É, o meu avô, pois é
– e a coisa rígida
tão pouco dada
que quebra o dente e me resfria a tripa. 

Tu sabes bem o que é, Senhor, – perfeitamente bem:
teu filho lá
quarenta chibatadas
teu filho aí
“É Barrabás, cacete!”
– e a história toda, a intolerável história
de um cabrito sem pai. 

Só a sombra interessa, jumentinhos, só.
Que ao desenhinho mais asnal
mais jumentício
que se possa conceber
dá um contorno inteligente
e dimensões e estofo insólitos,
e algum contraste – denso, escuro – à brancura cerebral. 

As matemáticas, canções, a analgesia – sombra;
sombra a ternura indestrutível nas carinhas de cachorro
e todo o resto – o câmbio, o chipe, o deeneá
e o meu avô. 

“Que é que cê tem, papai”
O que tenho eu, pois é
“Anoiteceu, papai”
Anoiteceu, pois é
– é o artesanato, eu acho,
mobilíssimo
e a sombra asnal que me deixa inteligente. 

Três aninhos.
Minha flor.

Finados

Não me lembro mais dos teus olhos.

Isto é – me lembro sim, mas não daqueles
em que suponho (não me lembro) eu me queimava
quando a gente tomava chá:
mas só dos outros.

Um, dois milímetros de fresta (eu lembro bem)
donde saía uma luz fosca
que não chegava a iluminar a cara, isso não, imagina
mas que dava ao corpo todo
(ao corpo e às mãos, sim, sobretudo às mãos)
um halo mais solene
uma materialidade imaterial.

Das mãos me lembro bem, das últimas e das penúltimas,
pois quando entrava no teu quarto
ali pelas catorze
eram elas que me estendias, “Filho, és tu?”, ainda sonolento
na menção de me abraçar.

Sempre acordaste tarde, sempre foste um escândalo.
Hoje eu aqui leio o teu nome sobre o mármor
e é vento num cipreste
e um cão mija no além
mas dos teus olhos (não das mãos, das mãos absolutamente)
eu não me lembro nem a pau;
eu não me escandalizo.

(Quando ventava no cipreste
e um cão mijando não morreu
notei que algo se revelava
e estava a ponto de entregar-se
mas teus olhos se interpuseram.)

É tarde.

“Moço, moço!”

Acho que vão fechar o estabelecimento.

“Moço, ei!”

E um sino deu as vésperas e o sol sumiu e eu obstinadamente não me lembrei
[dos teus olhos.


Giacomo Leopardi, «À lua»

Tradução de Érico Nogueira


Ó graciosa lua, eu já relembro 
que, há um ano agora, sobre esta montanha 
eu vinha, todo angústia, contemplar-te: 
e então pendias sobre esta floresta 
bem como agora, e toda a alumiavas. 
Mas nebuloso e trêmulo do pranto 
que me embaçava a íris, aos meus olhos 
teu vulto aparecia, que penosa 
era-me a vida e é, não muda o estilo, 
minha dileta lua. E a mim me agrada 
esta lembrança, e calcular a idade 
da minha dor. Oh, como bem ocorre, 
no tempo juvenil, pois inda é longo 
da vida e breve é da memória o curso, 
que nos lembremos das passadas coisas, 
conquanto, triste, a lida continue. 
 
 
Giacomo Leopardi