D. J. Enright, O Quaga

tradução de José Pedro Moreira

A meio do século já só havia dois quagas,
e um dos dois era macho.
Os deveres do ofício pesavam sobre ele.
Quando se é o único macho da espécie
não é fácil levar uma vida normal.

Os bodes petiscavam e arrotavam em banal satisfação;
Corriam e deslizavam para cima e para baixo da sua montanha de cimento.
Um poderia cortar a garganta em vidro partido,
Outro vaguear demasiado perto da jaula dos tigres.
Mas eram maridos zelosos; e o recinto estava sempre apinhado,
O seu ar rançoso a pulsar com vozes simples.

O quaga, no entanto, era um homem marcado pelo destino.
A sua mulher, que ele conhecera em idade algo tardia,
Preferia dormir, ou queixar-se da comida e do tempo,
Pois o seu pequeno jardim era menos do que paradisíaco,
Com um sol artificial que ora queimava ora os regelava,
E a eterna presença de entendidos com câmaras,
Para perpetuar o único quaga macho no mundo.

Talvez seja por isso que fracassou em tratar do serviço;
Está tudo muito bem para bodes e macacos –
Mas o último macho de uma espécie está sujeito a pressões específicas,
Se o Satã de tempos antigos tivesse vindo a rastejar, talvez…
Mas em vez dele os entendidos, com câmaras e cadernos,
A escrever histórias tristes sobre a decadência dos quagas.

Até que uma tarde quente ele começou a armar uma confusão.
Este jovem quaga zangado escoiceou as grades e partiu uma câmara;
Tentou até morder o tratador incrédulo.
Protestou alto e em bom som contra isto e aquilo,
Até os outros animais ficarem bastante embaraçados,
Pois ele parecia que lhes estava a chamar nomes.

Então reparou na sua mulher, desperta pelo barulho,
E sentiu uma curiosa sensação a estremecer-lhe o ventre.
Ele era Adão: ali estava Eva.
Ao galopar até ela, a cabeça lançada para trás,
Tropeçou, e partiu uma pata, e teve de ser abatido.


The Quagga

By mid-century there were two quaggas left,
And one of the two was male.
The cares of office weighed heavily on him.
When you are the only male of a species,
It is not easy to lead a normal sort of life.

The goats nibbled and belched in casual content;
They charged and skidded up and down their concrete mountain.
One might cut his throat on broken glass,
Another stray too near the tigers.
But they were zealous husbands; and the enclosure was always full,
Its rank air throbbing with ingenuous voices.

The quagga, however, was a man of destiny.
His wife, whom he had met rather late in her life,
Preferred to sleep, or complain of the food and the weather,
For their little garden was less than paradisiac,
With its artificial sun that either scorched or left you cold,
And savants with cameras eternally hanging around,
To perpetuate the only male quagga in the world.

Perhaps that was why he failed to do it himself;
It is all very well for goats and monkeys -
But the last male of a species is subject to peculiar pressures.
If ancient Satan had come slithering in, perhaps…
But instead the savants, with cameras and notebooks,
Writing sad stories of the decadence of quaggas.

And then one sultry afternoon he started raising Cain.
This angry young quagga kicked the bars and broke a camera;
He even tried to bite his astonished keeper.
He protested loud and clear against this and that,
Till the other animals became quite embarrassed
For he seemed to be calling them names.

Then he noticed his wife, awake with the noise,
And a curious feeling quivered round his belly.
He was Adam: there was Eve.
Galloping over to her, his head flung back,
He stumbled, and broke a leg, and had to be shot.

D. J. Enright, Collected Poems 1948-1998

DJ Enright, O Rebelde

Tradução de Ricardo Marques

Quando toda a gente tem cabelo curto,
O rebelde deixa o seu cabelo crescer.

Quando toda a gente tem cabelo comprido,
O rebelde usa o cabelo curto.

Quando todos falam na sala de aula,
O rebelde não diz uma palavra.

Quando ninguém fala na sala de aula,
O rebelde cria um motim.

Quando toda a gente usa um uniforme,
O rebelde veste-se com roupas exóticas.

Quando toda a gente usa roupas exóticas,
O rebelde veste-se com sobriedade.

Na companhia de amantes de cães,
O rebelde expressa preferência por gatos.

Na companhia de amantes de gatos,
O rebelde fala bem dos cães.

Quando toda a gente elogia o sol,
O rebelde discute a necessidade de chuva.

Quando todos estão a saudar a chuva,
O rebelde lamenta a ausência de sol.

Quando todos vão para uma reunião,
O rebelde fica em casa e lê um livro.

Quando toda a gente fica em casa e lê um livro,
O rebelde vai para uma reunião.

Quando todos dizem, sim, por favor,
O rebelde diz: Não, obrigado.

Quando toda a gente diz, não, obrigado,
O rebelde diz: Sim, por favor.

É muito bom existirem rebeldes.
Ser um deles pode não ser muito bom.


THE REBEL

When everybody has short hair,
The rebel lets his hair grow long.

When everybody has long hair,
The rebel cuts his hair short.

When everybody talks during the lesson,
The rebel doesn’t say a word.

When nobody talks during the lesson,
The rebel creates a disturbance.

When everybody wears a uniform,
The rebel dresses in fantastic clothes.

When everybody wears fantastic clothes,
The rebel dresses soberly.

In the company of dog lovers,
The rebel expresses a preference for cats.

In the company of cat lovers,
The rebel puts in a good word for dogs.

When everybody is praising the sun,
The rebel remarks on the need for rain.

When everybody is greeting the rain,
The rebel regrets the absence of sun.

When everybody goes to the meeting,
The rebel stays at home and reads a book.

When everybody stays at home and reads a book,
The rebel goes to the meeting.

When everybody says, Yes please,
The rebel says, No thank you.

When everybody says, No thank you,
The rebel says, Yes please.

It is very good that we have rebels.
You may not find it very good to be one.

D. J. Enright (1974, s.l.)

D.J. Enright, "Poeta pensando no que faz"

Tradução de Ricardo Marques

- Uma espécie de fome extra,
menos fácil de apaziguar que outras
- Ou então uma orelha extra

Ouvindo um telefone,
que pode ou não tocar
numa sala distante

- Ou então o medo de fantasmas
e medo que os fantasmas não apareçam,
Superstição dupla, medo duplo

- Perder, perder e perder
e logo ter, e ainda saber
que se deve perder e perder de novo

- Quase soa como o amor,
o amor numa fase inicial,
Essa coisa de que falas

- (mas a Beleza - não,
Problemas de lazer - não,
a Maturidade - dificilmente)

- E isto? Apenas metáforas
descrevendo metáforas descrevendo - o quê?
O círculo excêntrico dos teus anos.


POET WONDERING WHAT HE IS UP TO

- A sort of extra hunger,
Less easy to assuage than some
- Or else an extra ear

Listening for a telephone,
which might or might not ring
In a distant room

- Or else a fear of ghosts
And fear lest ghosts might not appear,
Double superstition, double fear

- To miss and miss and miss,
And then to have, and still to know
That you must miss and miss anew

- It almost sounds like love,
Love in an early stage,
The thing you're talking of

- (but Beauty - no,
Problems of Leisure - no,
Maturity - hardly so)

- And this? Just metaphors
Describing metaphors describing - what?
The eccentric circle of your years.

(in The Old Adam, 1965)

D.J. Enright, "Dizendo não"

tradução de José Pedro Moreira

Dizendo não

Depois de tantas (em tantos lugares) palavras
Chegou-se a esta, Não.
Épocas de periquitos, pavões, aves paradisíacas –
Então uma coruja careca grasnou, Não.

E agora (neste lugar, uma vez) para celebrar,
Um som servirá,
Depois da conversa entretecida com amor sobre arte, amor e destino –
Apenas, Não.

Alguma virtude aqui, neste inane estupefacto com o discurso,
Para manter as coisas breves.
Apesar, de quão enfadonha, inchada e distendida a dor –
Dizer tão só, Não.

Virtude (ou apenas decência) teria sido,
Mas – não.
Eu envolvo aquela cabeça da morte, tudo demasiado simples, demasiado claro,
Com longas e bonitas ligaduras dizendo,

Não.


Saying no

After so many (in so many places) words,
It came to this one, No.
Epochs of parakeets, of peacocks, of paradisiac birds –
Then one bald owl croaked, No.

And now (in this one place, one time) to celebrate,
One sound will serve,
After the love-laced talk of art, philosophy and fate –
Just, No.

Some virtue here, in this speech-stupefied inane,
To keep it short.
However, cumbrous, puffed and stretched the pain –
To say no more than, No.

Virtue (or only decency) it would have been,
But – no.
I dress that death’s head, all too plain, too clean,
With lots of pretty lengths of saying,

No.