Histórias de Roma de Enric González
/Para o João Coles, meio italiano e agora londrino, que quando o ler vai gostar deste livro
A colecção de livros de viagem da Tinta da China é uma espécie de tesouro nacional. Como boa parte dos tesouros nacionais, não é tão bem-amada como merece. A história da génese da literatura de viagens enquanto género é divertida, as suas raízes talvez sejam tão antigas como a Odisseia, muitos e veneráveis autores a praticaram (tanto o atesta esta colecção da Tinta da China). Os livros de viagem frequentemente existem na fronteira com outros géneros, guias históricos, culturais, viagens como metáfora de mudanças abruptas, percursos espirituais de auto-descoberta. Enric González não será o primeiro nome que nos passa pela cabeça quando pensamos nos cultores deste género, mas Histórias de Roma foi publicado pela Tinta da China em Maio de 2014, e sucede a Histórias de Londres, do mesmo autor. Qualquer coisa que virem com o nome de Enric González, confiem em mim e leiam-na por favor. Quem é Enric González? Um jornalista do El País que desempenhou funções de correspondente em Londres, Paris, Washington, Roma, entre outros países e trabalhou como jornalista em cenários de guerra tão violentos como o Golfo ou o Ruanda e algures entre uma coisa e outra desenvolveu o hábito de escrever sobre as cidades em que ia vivendo.
Histórias de Roma é um livro breve que contém algumas das frases mais belas alguma vez escritas sobre uma cidade e uma das melhores paródias de discursos políticos de que tenho memória (uma manta de retalhos com frases de discursos de Berlusconi, ver abaixo). Enric González escreve numa prosa leve, ágil, inteligente, urbana, ou seja, o tipo de prosa que nos dá vontade de convidar o autor para beber uma cerveja (embora a palavra cerveja tenha ficado um pouco danificada para mim depois da audiência de Brett Kavanaugh perante o senado norte-americano).
O livro move-se de histórias sobre a Roma antiga, vinhetas sobre vidas de santos, a experiência faraónica de viver num palácio, os rituais que envolvem a morte de um papa, até às descrições de melancólicos nobres romanos (melancólicos mas às vezes capazes de homicídio), passando pelo amor que se pode ter a uma arte tão ambivalente como o género de comédia praticado por Alberto Sordi. Ao mesmo tempo, é um breve livro que nos recorda da alegria de pormenores triviais que são parte da nossa vida de todos os dias: conhecer na cidade onde vivemos o melhor sítio para beber café, a alegria de ler um jornal escrito em boa prosa, a vida de certos bairros a certas horas do dia. Poucos livros que tenho lido estão escritos numa prosa tão elegante, o que sugere talvez que mais do que haver boa prosa jornalística ou boa prosa ensaística, existe boa prosa e pronto, sem esquecer também o trabalho de uma tradutora talentosa, Rita Almeida Simões. Há momentos profundamente comoventes neste livro, e isso é tanto mais tocante quando pensamos que Enric González está apenas a tentar descrever a vida, ao nível da rua, de uma cidade caótica, antiga e cheia de vida. No rescaldo do dia em que o Brasil deixou um candidato a ditador a um passo do poder, deixo-vos aqui um excerto de uma brincadeira de Enric González que se pode encontrar em Histórias de Roma, um monólogo construído exclusivamente com frases proferidas por Berlusconi:
Quero começar por saudar os participantes nesta Conferência contra a Fome, e muito especialmente as bonitas delegadas. Sou o ungido do Senhor. Carrego a cruz embora não me agrade fazê-lo. E todos os anos faço um retiro espiritual, nas Bermudas... Como é evidente, sou eticamente superior a qualquer outro político europeu. Estou em contacto permanente com a Divindade. Escrevi as tábuas da lei, como Napoleão ou Justiniano... Sou o único italiano que escreve sambas em napolitano... Sabiam que Margaret Thatcher me disse que podíamos ter feito uma grande dupla?