O modo de dizer o tempo
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À Capitolina, também pelo livro
A poesia inscreve(-se) e afirma(-se); é a demarcação cuja capacidade de desdobramento rejeita lógicas de identificação e, por isso, persiste nos intervalos que encerram em si margens de indeterminabilidade. É o “rapto” de que fala Herberto Helder, ou seja, o exercício resistente de captura de intensidades que descodificam: o interrogativo que segrega o que se presume, ou seja, a poesia terá de ser experimentação.
No poema Introdução ao Tempo, de Luiza Neto Jorge, também esse poder evocativo nos aparece com especial incandescência logo no primeiro verso: “Façamos greve de tempo”. Da ordem do apelo/manifesto, e não do ideológico que se confinará, mais cedo ou mais tarde, ao programado, a relação com o temporalizado, neste caso, não se faz necessariamente através da imobilização. E também não se enceta com a representatividade que imita, na medida em que neste poema o tempo nunca se dá a ver enquanto significado.
Através de instâncias concretas – e não lineares – como sejam “pulmões”, “olhos”, “mar”, “papoilas”, entre outras, o poema de Luiza Neto Jorge dissemina esses mesmos elementos em cruzamentos de modo a poderem encontrar-se; contudo, esse encontro evidencia incontáveis tons. Quando lemos “Porque ficou oceânico/ o escasso momento de nós?”, a composição faz-se por antinomia e não tanto graças a qualquer disjunção: ao tentar medir-se o incomensurável, o tempo torna-se compacto e por isso infecundo, daí o empenho em primeira linha no esforço de suspensão através da tal greve de tempo. “Fechemos os olhos dentro”, i.e., não que nos tornemos cegos mas que se estabeleçam condições para a inflexão, para a conexão entre múltiplos modos de existência temporal no mundo. É que não parece tratar-se de um vamos parar o tempo (negação ingénua do mesmo), mas antes daquela abertura iniciada e susceptível de admitir o acentuar do acontecimento: “Quando as papoilas tiverem searas (…) Quando nós formos outrora”. Passado-presente-futuro, não diluídos no unívoco, mas prolongados singularmente na desestabilização de uma relação com a vida, se feita através da estruturação.
Ao tratar-se de uma “Introdução”, cremos que constituiria uma leitura superficial e enganadora encarar este poema enquanto regulamentação de um estar no mundo, consequentemente, calculado. Pelo contrário, o poema circula des-apropriando: “no ar um tempo frustre/a sequência dos sons/perdidos nos degraus”. O inesgotável da escrita da poesia apresenta-se a-sistemático, já que aí a linguagem desagrega o ruído, precipita a retoma e promove o novo: a linguagem (poética) cria porque se põe em frente à realidade, faz parte integrante dela. Nos últimos versos deparamo-nos com a inconclusividade da poesia, que nem à metáfora pode estar agrilhoada: “Simples é a dor/e nós, nascidos”.
Corpo sem organismo, este Introdução ao Tempo acrescenta a sensação que propaga e, por isso, contesta o positivismo da significação, sem, todavia, cair na ignorância (ausência de relação) com o que de mais repetidamente interage com o humano, a saber, a experiência e o conhecimento temporais e, em certa medida, temporalizados. É por isso que o poema de Luiza Neto Jorge diz o tempo com a precisão do devir: “quando o sonho for granito.”
Introdução ao Tempo
I
Façamos greve de tempo
De pulmões castos não respiremos
As folhas trágicas veias
podem cair
Fechemos os olhos dentro
II
quando o sonho for granito
quando o mar em cinza desvendar
as plumas inúteis das gaivotas
quando a espuma depuser velas
longínquas sobre a areia
e das pontes cair o derradeiro homem
quando as papoilas tiverem searas
as janelas absortas mortalhas de luz
quando nós formos outrora
quando o luto marcar as ancas verdadeiras
III
Porque ficou oceânico
o escasso momento de nós?
Escorríamos pelas mãos
insatisfeitas e límpidas
nascentes
no ar um tempo frustre
a sequência dos sons
perdidos nos degraus
Simples é a dor
e nós, nascidos