Postais de Boas-Festas

Árvore da Vida, Gustav Klimt

Árvore da Vida, Gustav Klimt

Há muitos séculos, a cultura semita decidiu transformar os ritos pagãos do solstício de Inverno numa narrativa mais encantatória. Havia palavras e gramática suficientes para essa revolução, e é sabido que sempre que pode haver uma revolução, há. Assim nasceu o Natal (faço uma filologia à la Nietzsche), outra forma de enaltecer as conjuras astronómicas que travavam o avanço da escuridão.

Primeiro, quando ainda éramos biológicos, celebrou-se a emergência da vida e a fortaleza da família ou da tribo. Depois, pouco a pouco, sob o impulso de um cristianismo cada vez mais metafísico, desfiaram-se chamamentos ao Além, misericordioso e enigmático. Continuou-se a louvar a vida, mas era de outro tipo, descarnada.

Finalmente, vieram as generosidade e bondade, sem moderação, ligadas a coisas humanas, demasiado humanas. O festim gargantuesco substituiu qualquer resquício de espiritualidade (mais do que religiosa), agora arremessamos prendas uns aos outros e comemos até à sobre-saciedade. Há, é verdade, uma brisa de mudança no ar, parece insinuar-se uma nova frugalidade, mas está longe de ser relevante.

É neste quadro (talvez imitando Francis Bacon) que me permito desejar-vos, queridos leitores, boas-festas. Se possível retomando a embriaguez original do ciclo lunar, quando ainda se sentia um aperto explosivo no coração porque o dia tinha resistido ao progresso mortífero da noite.

Victor Gonçalves


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O Natal é também um ritual de transição. Todos os anos bebemos à pessoa que fomos nos últimos doze meses, com mais ou menos alívio de abandonar esta pele, abraçando o que é novo com mais ou menos sofreguidão. Celebremos os que já não estão connosco à mesa. Sejamos preguiçosos. Tiremos uns dias para ver filmes, para ler livros, para passar tempo com aqueles que amamos. Talvez façamos menos merda no próximo ano. Talvez seja possível sermos melhores. Para todos um Feliz Natal e um bom 2019.

José Pedro Moreira


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Fra Angelico pintou esta Anunciação em meados do século XV e pode ser vista no Convento de S. Marco em Florença. Não sei se alguém alguma vez escreveu algumas linhas sobre o desastre que este fresco parece ser em termos de linguagem corporal da Virgem. “Porquê eu??, meu Deus!!,” é o que todo o corpo dela diz. O rosto dela deveria expressar a gravidade do momento e a sua inata bondade, a humildade que recai sobre os escolhidos para um dever que em muito ultrapassa as suas capacidades. Mas há na postura do corpo qualquer coisa de defensivo, como implícito nos braços cruzados e que não encontra eco na postura do anjo (embora os braços dele estejam na mesma posição, o corpo inclinado para a frente sugere mais ataque do que defesa, e os braços cruzados são um reconhecimento da tensão no corpo da Virgem). E, no entanto, qualquer coisa no rosto dela trai o princípio de uma abertura.

A vida, assim o prova o ciclo de um ano, está cheia de situações impossíveis, tensas, imprevistas. Politicamente o ano foi um desastre. O mundo é um lugar menos aberto. Restam-nos os pequenos mistérios, a felicidade que existe em coisas inesperadas, a possibilidade de não nos fecharmos no nosso lugar, de querermos viver entre as coisas que nos ultrapassam. E talvez até isso que um frade nascido na periferia de Florença há mais de seiscentos anos entreviu ao pintar as asas coloridas deste anjo doce e um pouco efeminado: o lado misterioso das mensagens que os outros nos trazem, a adequação do imprevisto enquanto resposta tanto para os perigos quanto para as monotonias da existência (se nós não cairmos no desespero ou na indiferença quando eles nos calham), a urgência da vida que nos varre com ela.

Não me apetece decidir muita coisa para 2019, ainda que isso seja mais ou menos inevitável: depois desta breve trégua, o ano novo virá com os seus velhos combates e as suas parvoíces renovadas, mas um dos melhores poemas que li este ano (em Fuck the Polis de João Miguel Fernandes Jorge) acabava com dois ou três versos em que se podia ler qualquer coisa como: come a tua comida, lê os teus livros, vais continuar a existir. Pode existir entre o lado forte do mundo, que ataca, e o lado que se defende, alguma ternura, uma aliança de onde algo de melhor possa vir.

Que sempre que penso na Virgem, grávida sem querer, também pense que o mundo precisava de uma Anunciação pintada por Paula Rego é matéria para outro postal.

Tendo dito isto, um excelente 2019, meus caros leitores!

Tatiana Faia


Que este ano o Natal seja sinónimo de alienação para todos: vivam as fantasias, vivam as desconstruções, mas vivam sobretudo as alienações: é daqui que nasce o caos e do caos também nascem flores.

João Coles