Da impossibilidade de receber Sade

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I

Festejam-se os 200 anos da morte do Marquês de Sade (homem-prisão, 27 anos, 1/3 da sua vida).

Apesar de parecer ter-se transformado num sex-toy para alguns erotomaníacos, mantém-se um marco importante do pensamento dos séculos XIX e XX. Em França, a Bibliothèque de la Pléiade vai republicar Justina ou os Infortúnios da Virtude e outros romances numa edição de luxo, realizar-se-ão várias exposições um pouco por todo o hexágono, destacando-se a vasta mostra do Musée d’Orsay em Março, grande comentário à visão (deturpada?) que Sade teve do humano. Com isto, o “escritor maldito” ascende ao lugar de “clássico do mal” (recordamos que Pasoline, Salò o le 120 giornate di Sodoma, o considerava precursor do fascismo por narrar o estrume humano).

Talvez Pasoline tivesse razão, mas é extraordinário que antes de Nietzsche e da Psicanálise (os Cento e Vinte Dias de Sodoma, escrito na Bastille em 1785, antecipam-na em muito), alguém ponha o “pensamento à prova do corpo”, sem concessões. Deixa-se de raciocinar ao serviço de actividades abstractas, tudo é determinado pelos movimentos e desejos mais pulsionais. Daí a célebre frase na História de Julieta ou as Prosperidades do Vício: “Levantamo-nos contra as paixões sem reparar que é na chama delas que a filosofia acende a sua”. Os heróis sadeanos não reagem a quente, discutem viva e longamente, em prazer, dedicam-se a alimentar o espírito com conceitos e filosofemas. No entanto, o pensar de Sade está sempre incarnado, o corpo fervilhando de desejos trabalha e sustém a razão, os discursos e a moral. Os personagens assumem os seus vícios, sem esbaterem (sublimarem?) o escandaloso, como se desenhassem a acção para além bem e mal. O leitor acompanha-os na vertigem que os acomete, sofrendo com isso, como referiu Georges Bataille, uma intensificação do seu “nervosismo sensual”. Não se veja aí, contudo, um qualquer machismo exacerbado, a História de Julieta usa uma heroína para dominar toda a encenação do deboche sexual (por isso Apollinaire considerava Julieta a “nova mulher”).

Por outro lado, Sade é um autor do iluminismo, pretende erradicar a necessidade da crença e da transcendência, fonte de todas as servidões voluntárias. Não apenas rejeita Deus, como retira daí as consequências, dando ao homem a liberdade total de preencher os desejos considerados mais escabrosos, de convocar o “diabólico” que habita nele. Ao mesmo tempo, denuncia a maldade político-ideológica das Guerras de Religião e da Inquisição. Também se opõe à moral da guilhotina construída pelo purismo robespierreano. Esta disposição sócio-política fê-lo dizer que defender o indefensável e atacar o dominante tinha sido o seu prior inimigo. Sem remissão, como disse, havia “recebido uma alma firme, que nunca se soube dobrar e nunca se dobrará”. (Justina ou os Infortúnios da Virtude). Apesar disso, amou a Revolução, não tanto a ideia de justiça que a envolvia (impondo-se, aliás, cruelmente no absolutismo político-moral do jacobinismo), mas a sua impetuosidade, agitação permanente e as relações extremadas de dominação.

Ao considerá-lo um libertino feliz, como resultado do seu pensamento ultraliberal, escapa-nos que os seus personagens despem a natureza humana da pequena capa de verniz do conveniente, sob a qual está uma violência e paixão sexual incondicionalmente impiedosa para a alteridade. Ele obriga-nos, na condição de o lermos, a olhar esses personagens de frente, mostrando-nos como nos perturbam, porque, de forma mais ou menos sublimada, vivem em nós (vejam-se os contínuos actos de violação, individual ou colectiva, que continuam a suceder por todo o mundo, as decapitações do EI, a violência gratuita de certos adolescentes, a brutalidade de género, que em Portugal tem números assustadores, e mesmo as perversões sexuais expressas nas múltiplas variações pornográficas).

II

Entretanto, esta efeméride permite medir o pulso ao estado da recepção sadeana. Philippe Sollers, especialista reconhecido, conta que quando foi convidado para uma festa no castelo Lacoste em homenagem a Sade, o convite informava que um descendente do Marquês estaria presente (Conde Huges de Sade) e que era necessário doar 50€ para as crianças autistas de Vaucluse. Para Sollers, este aproveitamento de Sade mostra que a obscenidade já não está onde se julgava. O mesmo comentador, recorda que em 1990 a Pléiade Sade se publicitava da seguinte forma: “Sade em papel bíblia”. Ora, passando sobre absurdo do par Sade/bíblia, esta edição regista a legitimidade canónica de Sade (em França a Pléiade marca a entrada simbólica no panteão dos clássicos reconhecidos), mas, ainda segundo esse autor, isso não significa que haja alguém para o ler. Como continua a ser quase impossível citá-lo (pergunta-se se é imaginável ler excertos dos seus livros num telejornal, como se faz com tantos autores), a motivação para o ler cai a pique. Mas o pior, é que hoje se trocou o argumento censurante da perversidade pelos de “entediante” e “repetitivo”. As censuras, sabemo-lo, vão-se transmutando, de puritanas e hipócritas, podem passar a ultraliberais (“se ninguém o lê é porque não presta”). Há ainda o medo da imitação: lendo Sade tornamo-nos sadianos (da mesma forma, a Bíblia pode tornar-nos quase-Deus). Mas dificilmente tal acontecerá, Sade é o pensador da singularidade absoluta (“eu sou eu e a minha perversão”), neste sentido como pode alguém pretender ser sadiano (ou não o ser)? Por outro lado, se é quase impossível não ser transformado pela leitura da sua obra, ele muda-nos sem nos evangelizar.

Por tudo isto, Sade é provavelmente o autor menos passível de ser recebido, podem fazer-se estudos académicos sobre ele (pouco em Portugal), lê-lo em leitura privada, mas não é convocado para uma mesa de café, dificilmente se fará um clube de leitura na Fyodor Books em torno de um dos seus livros, se citará nos órgãos de comunicação social, se aconselhará aos filhos...