Glucksmann morreu

Morreu hoje, com 78 anos, o filósofo francês André Glucksmann. Tinha a coragem de se envolver física e intelectualmente para sustentar ou recusar o que achava justo ou injusto. O “ex-novo-filósofo” (uma piada exclusiva do pensamento francês) tinha uma atracção desmesurada pelo terreno, por meter as mãos na massa, pela tradução panfletária do que pensava. Obrigava-se obcecadamente a combater o que achava mal (inscrito no desvio aos Direitos Humanos).

Glucksmann esteve entre gerações – Sartre, Aron, Foucault, Deleuze, Guattari... e os “nouveaux philosophes” (sobretudo Bernard-Henry Lévi) – e transitou do marxismo para o maoismo (forma de combater o estalinismo e a raízes totalitárias do marxismo) ao publicar La Cuisinière et le Mangeur d’hommes (Seuil, 1975, bestseller), mas continuou a pensar no horizonte da esquerda política até à década de 90. Aí, toma posições mais pró-americanas, inspirado por um atlantismo moderado, e assume reservas profundas em relação aos movimentos pacifistas. A defesa dos Direitos Humanos passou a ser o critério magno da sua acção (militando pelo acolhimento dos boat people fugindo do Vietname comunista, apoiando a intervenção contra a Sérvia, defendendo a intervenção militar na Líbia ou na Síria, criticando sem concessões o “Tsar” Putine...). Acabará por apoiar Nicolas Sarkozy, embora faça pouco depois um acto de contrição. 

 

Guy Sorman rende-lhe homenagem definindo-o como “um justo e um puro, porta-voz das vítimas de todas as ideologias totalitárias”. Além disso, segundo Bernard-Henry Lévi, ele sabia que se pode ter razão sozinho, que a verdade não resulta do jogo democrático ou estatístico. Isso dava-lhe a força de preservar as suas convicções dos ataques, por vezes ferozes, dos mestres do pensamento mais à esquerda (a França manteve-se durante quase toda a segunda metade do século XX sem qualquer intelectual de direita).

Numa síntese apressada: viveu corpo-a-corpo com a realidade política, muitas vezes guiado por aquilo que Michel Foucault designava a “grande cólera dos factos”; era ela, mais do que qualquer ideologia prêt-à-porter, que o punha em movimento, tornado humano capaz de abanar a indiferença até a transformar em gestos consequentes a favor dos mais desprotegidos. Se um lugar qualquer, mesmo imanente, estiver guardado para os melhores, Glucksmann habitará agora nele.  

Niilismo 6/c. 10 O progresso não existe

Não há qualquer plano de progressão infinita, só há transformações, que podem ser, de acordo com o ângulo interpretativo, melhores ou piores. Nesta questão, hermenêutica mais do que ontológica (o que “significa” em vez do que “é”), coabitam duas grandes linhas de sentido: declínio (uma tradição de pessimistas, dos cínicos gregos a Oswald Spengler, passando por Voltaire e Schopenhauer) e elevação (quase sem filósofos, talvez só Leibniz, mas com muitos economistas e gestores). Estas inclinações hermenêuticas, desde logo inscritas numa terminologia ambígua, dependem da época, do Zeitgeist, mas também do equilíbrio de forças projectadas pela nossa condição bipolar, somos seres fendidos entre o optimismo e o pessimismo, e quando encontramos alguém onde predomina claramente um dos pólos, pomo-lo rapidamente no índex da anormalidade.

Não havendo qualquer objectividade na ideia, ou sentimento, de progresso, sendo infrutífero, seguindo Karl Popper, procurar falsificar a sua possibilidade ou impossibilidade, emerge dessa ambiguidade a hipótese de nos acantonarmos, em modo quase-religioso, nas seitas dos conservadores ou dos progressistas. As designações assentam, nos dois casos, em termos que funcionam simultaneamente como substantivos e adjectivos: designar-se “progressista” remete para crenças optimistas; enquanto que os “conservadores” preferem as pessimistas (“realistas”, dizem alguns, eufemizando), identificados com a expressão: “para pior, já basta assim”.

A oposição que cultivam, como se só pudessem existir no equilíbrio improvável da contradição, tem uma fronteira relativamente clara, mas o caos semiótico, ou pelo menos a amálgama conceptual, reina em cada um dos lados. Neles acampam a diversidade política, a confusão estética e intelectual, as antinomias morais, a pluralidade existencial... Separa-os apenas um ecossistema de crenças, muitas vezes vagas, que oscilam, numa linha imaginária, entre o declínio e a elevação. Mas também isto é bem mais uma questão de discurso (dizia-me alguém que não escrevia textos alegres porque não tinha a gramática adequada) do que de análise de factores que pudessem confirmar ou infirmar a tese defendida.

A solução, que não resolve o problema (os verdadeiros problemas resistem sempre às soluções), passa talvez por Nietzsche. No Anticristo (ou Anticristão), §4, escreve que a humanidade não resulta de uma evolução contínua, que o progresso (Fortschritt) é uma ideia falsa. Posto isto, para ele e para nós, ou nos tornamos uns “enfastiados da vida” ou fazemos da ausência de progresso o estímulo para buscar novos valores vitais. Para isso, seguindo o mesmo autor, devemos combater o “pessimismo romântico”, dos “frustrados” e “vencidos”, com o “pessimismo da força” (Pessimismus der Stärke), um “pessimismo trágico” sem ilusões, feliz com o que acontece, um amor fati para quem reconhece, sem dramatizar, os seus limites e prefere mudar-se a si próprio em vez dos outros.

Por conseguinte, desaparece desta proposta o niilismo ligado ao pessimismo, a descrença no progresso linear, quase teleológico, dos optimista irremediáveis não conduz necessariamente ao nada. É possível rir depois de escorregar numa casca de banana, tanto quanto reconstruir a casa depois de ser varrida por um furacão. Se acharem estas sugestões pouco eloquentes, deixem-me convocar novamente Nietzsche: “[…] buscamos aqueles cuja existência é para nós uma alegria e encorajamo-los, enquanto fugimos dos outros – eis a verdadeira moralidade! […]” (Fragmento Póstumo, 1880, 6[203]) E para isto não é preciso ser-se optimista.

Se as dúvidas não se dissiparem com esta consolação (tipo Deus ex machina), asseguro-vos que o “pensamento positivo”, o optimismo de pacotilha, o entusiasmo ingénuo, a hipertrofia do eu, a embriaguez com álcool ou psicotrópicos gasosos... tudo isso está fora de moda. O psicólogo Yves-Alexandre Thalmann, segundo uma entrevista recente à imprensa francesa, acredita, é verdade, que a forma como pensamos, positiva ou negativamente, influencia os nossos comportamentos. Mas quando a corrente do “pensamento positivo” defende que realizaremos melhor os nossos desejos suprimindo as emoções negativas (medo, cólera, tristeza, angústia...) e esquecendo os obstáculos sociais e físicos, está a iludir-nos. Por um lado, o negativo não se apaga, no máximo será recalcado; por outro lado, os optimistas mobilizam menos energia para a realização dos seus objectivos, justamente porque são... optimistas. Thalmann propõe, assim, que se reintegre o negativo (emoções e ideias) de forma a acolher também uma parte importante da realidade, visto que quem visualiza os objectivos juntamente com os meios para os realizar e os obstáculos a enfrentar, é mais eficiente do que os órfãos do pensamento negativo.

Pessimistas trágicos de todo o mundo, uni-vos!

Niilismo 5/c.10 ambientalismo

A jornalista e activista canadiana Naomi Klein publicou recentemente o livro This Changes Everything. Capitalism vs The Climate, mais um sobre questões ambientais, apelando agora aos cidadãos para lutarem contra aquilo que provoca o aquecimento global, construindo ao mesmo tempo uma sociedade mais justa.

[escrevo este artigo a partir do livro e de entrevistas da autora]

Naomi, membro da ONG ambientalista 350.org, teve a máxima consciência sobre as mudanças climáticas em 2009, quando encontrou a embaixadora boliviana Angélica Navarro. Esta diplomata compara a “dívida climática” (dos países do Norte) à da escravatura, pelas compensações, éticas, políticas  e financeiras que devia ter originado.

Pessimista institucional, Naomi não acredita que os encontros e compromissos saídos das negociações sobre a égide da ONU façam qualquer diferença. A prova está nos resultados insignificantes do passado e no nível insuficiente de reduções de emissões que os governos levam para a mesa de negociações da Conferência de Paris. As propostas não conseguem manter a subida das temperaturas abaixo dos 2º C em relação à era pré-industrial.

É preciso, diz Naomi, mudar o paradigma suplicante de Copenhaga 2009, onde parecia bastar implorar a Obama e Merkel que salvassem o Planeta. Isso não aconteceu e frustraram-se enormes expectativas, dando origem ao chamado “síndroma de Copenhaga”. Além disso, aquele encontro foi minado, a partir do interior, por grandes empresas pouco interessadas na mudança do statu quo (Shell ou Exxon, e.g.). Por conseguinte, devem ser os cidadãos a ocupar-se do problema e das formas de o combater. Tanto mais que esta crise, a maior e mais irremediável de todas, tem a força catastrófica de poder mudar em profundidade a sociedade, vive-se uma oportunidade histórica de revolucionar o velho modelo nacionalista e classista. Há, como nunca, abertura para se pensar a criação de empregos socialmente úteis, democratizar o acesso à energia, aos produtos de primeira necessidade e aos transportes públicos, repensar o modo de funcionamento das cidades, o modelo antropológico do homem-trabalhador... Ou seja, desenvolver modos de governação socialmente e ambientalmente mais eficientes, respeitando sempre, como fronteira vital, os limites físicos do Planeta (o novo grande "princípio de realidade").

O livro This Changes Everything. Capitalism vs The Climate desconfia da economia privada se preocupar honestamente com as alterações climáticas, no entanto Naomi Klein não recusa totalmente a utilidade de se envolver, devidamente enquadrado (o que significa, “controlado”), o privado. E.g., uma taxa sobre a emissão de carbono pode ser uma boa ideia se for progressiva. Mas, como refere o climatólogo Kevin Anderson, continuar mais lentamente na via errada não é a mesma coisa do que entrar no caminho certo. Neste sentido, Naomi assume que as suas críticas são estruturais: o sistema actual de promoção do crescimento económico a curto prazo é incompatível com as limitações físicas do Planeta.

Tanto mais que para respeitar os vitais 2º C máximos de aumento das temperaturas é necessário deixar 80% das reservas de combustível fóssil onde estão. Não se pode queimar este carbono! Daí a necessidade de desinvestir, única forma de quebrar a lógica capitalista do “lucro a todo o custo”.

Daqui resulta um sentimento de impotência: como ir contra o discurso sacralizado do “crescimento e emprego”? Como se pode mudar, com a rapidez que os problemas ambientais exigem, consciências formatadas pelo consumo e a ética do trabalho como valor de troca, pelo prestígio social ligado à profissão e à posse de objectos reveladores de estatuto...? Não será ajuizado tecermos uma capa pessimista que esperando o pior ficará depois redimida com pequenas migalhas de soluções ou por uma menor intensidade da catástrofe? Não será preferível abandonar tudo e convertermo-nos em crentes da desgraça para fazer do Fim uma apocalipse que, à semelhança de algumas tragédias gregas, funcionaria como um Deus ex machina invertido? Numa palavra: não será melhor assumirmos um niilismo irredutível, correspondente ao tempo em que vivemos e à humanidade que somos?

Não! Também este pessimismo pode, voltando-se contra si mesmo, superar-se e desenvolver acções positivas. Naomi põe no título do livro This Changes Everything porque acredita num efeito dominó iniciado por activistas ambientalistas, que para ela são visionários de uma nova forma de pensar e construir a democracia, mais ligada aos cidadãos e menos à economia (que se fez política e moral) das grandes empresas e do lucro. Talvez eu seja menos optimista. Mas certos dias envolve-me a esperança de que o ser humano tem ainda reservas de outra humanidade, ou humanidades, o Homem ainda pode ser outro Homem (era esse o desejo de Nietzsche). Um ser diferente, mais igualitário e solidário, não especialmente centrado na sua espécie, mas preocupado com todas as formas de vida e o inorgânico que as sustenta, com as gerações futuras, esse bem que devemos a quem ainda nem sequer nasceu mas já faz parte do mundo, com a beleza e precisão de sistemas evolutivos que demoraram longos milhares ou milhões de anos a serem o que são, com o nosso vizinho mais próximo e com a possibilidade de um alienígena nos visitar e admirar-nos pelo que construímos sem destruir. 

Niilismo 4/ c.10 Tatuagens

I

Adenda ao meu mini-ensaio sobre a vandalização de Dirty Corner

Um artigo de Vanessa Rato para o jornal Público (20/09/2015) reproduz algumas declarações com uma semana de Anish Kapoor, quando ainda pensava deixar Dirty Corner ser suplementada por graffiti, autorizado pelo Palácio de Versailles (“Deixar ou apagar as inscrições feitas por terceiros é um privilégio que, à partida, assiste a Kapoor”). A instituição não arriscou mexer numa obra protegida pelas leis da propriedade intelectual. Kapoor, por sua vez, afirmava a Vanessa Rato: “Afinal, o que é que eu posso fazer? Qual é a coisa certa? Não sei de facto a resposta” […] “É muito vil [o que ali está]. E eu quero ver-me livre daquilo. Mas, por outro lado, talvez seja isto que o trabalho está a pedir. Como artista, chega-se ao estúdio, tem-se uma ideia, acha-se que se está a fazer uma coisa específica, depois outra coisa acontece. Por exemplo, entornamos qualquer coisa e chegamos à conclusão de que, na verdade, a obra funciona melhor assim... Temos de seguir esses momentos. No caso de Versalhes, é a segunda vez que tenho um desses momentos. Tenho de me perguntar: sigo o momento? Não sigo? O que faço? Qual é a coisa certa a fazer?” Pelo que disse a outros órgãos de comunicação social, pretendia realmente “seguir o momento”.

Entretanto, no sábado, 19/09/2015, os tags anti-semitas inscritos na instalação foram cobertos com um pano preto por ordem da justiça francesa, que impôs a Versailles a supressão imediata das inscrições acrescentadas à “escultura”. Para os juízes, “a liberdade de criação e de expressão artísticas implica o respeito do direito moral de qualquer autor sobre a sua obra”, mas quando se expõe publicamente, “esta liberdade, deve conciliar-se com o respeito das outras liberdades fundamentais.” Anisch Kapoor só poderia lamentar-se, fê-lo no dia seguinte numa entrevista ao Le Figaro: sente-se como uma “rapariga violada que é condenada [por isso], dizendo-lhe para se ir vestir” (Kapoor é de origem indiana), não compreende como ainda se desconhece quem, e como, vandalizou a obra, assegurando que os seus advogados o defenderão enquanto artista agredido no solo da República Francesa.

Portanto, o espaço de liberdade por excelência que devia ser a produção artística tem de conformar-se, pelo menos em parte, à escala de valores vigente, neste caso a moral e a política interferem claramente na criação e expressão artísticas. L’art pour l’art, como aliás bem viu Nietzsche, é apenas uma frase, já que também ela está condicionada pelas linhas de sentido estabelecidas, embora tenha uma margem para experimentar e provocar, deslocar e chocar maior do que qualquer outro campo. Isto desmente em parte a tese que Paul Ardenne expressa em Extrême: esthétiques de la limite dépassée, segundo este autor passámos de uma “cultura do sentimento a uma cultura da emoção”, por conseguinte tudo se radicaliza, os limites são constantemente ultrapassados, os efeitos arrebatadores são mais relevantes do que os dispositivos de codificação (mais o dionisíaco do que o apolíneo). O problema, ainda para Ardenne, é que o extremismo nos impede de pensar, submergindo-nos num mar tempestuoso, violento, de emoções que nos sufocam. Bom, esta decisão da justiça francesa vem pôr um pouco de água na fervura. 

II

Frequento uma praia em São João da Caparica que acolhe muitos jovens (já na meia-idade) da classe média, hedonistas ponderados que conseguem conciliar a prancha de surf e os banhos intensos de sol, nunca acompanhados por livros decentes (clássicos ou semi-clássicos), com empregos de 40 horas e muito respeitinho pelo chefe. Há cerca de 10 anos surgiu a moda das tatuagens, rapidamente disseminada, como qualquer fenómeno do género, por cerca de 50% da população banhista. Os corpos começaram a plasmar frases, símbolos e desenhos, alguns coloridos (a paleta de cores é critério de distinção). Tornou-se motivo de conversa e soldou laços identitários, excluindo-se fácil e assertivamente os puristas da pele nua, conservadores irremissíveis.

Recordemos que no Ocidente a tatuagem era um sinal de marginalização voluntária, uso da pele como forma de reforçar a margem onde existiam ou maneira de expressão e codificação dentro de um sistema forte de interditos (e.g., prisioneiros). Era ainda marca de distinção pela participação num acontecimento limite, os soldados do ultramar marcavam essa passagem pelo inferno com a data e o local, outros expunham a pertença a corporações militares especiais. A lógica geral era, pois, de distinção e de identificação, havia uma sentido neo-tribal em cada desenho indelével no espaço subcutâneo, mas de superfície, protegido da erosão, mas visível. Pelo contrário, hoje as tatuagens, embora mantenham um fio ténue de comunitarismo, expressam sobretudo um individualismo radical: redesenhar o corpo biológico, usando-o como montra do gosto e interesses pessoais.

Por outro lado, há uma contradição evidente no fenómeno actual das tatuagens: é um campo da moda que implica o corpo; mas ao mesmo tempo parece funcionar em antagonismo com ela, devido ao seu carácter tendencialmente indelével a tatuagem é “para toda a vida”. Se a moda vive na efemeridade e na vertigem da mudança, a perenidade das tatuagens parece opor-se ao ritmo alucinante das “novas tendências”. Embora consiga preencher melhor a vontade de realçar a singularidade e a autenticidade do que, e.g., o vestuário. É verdade que as impressões cutâneas seguem em geral páginas de catálogos pré-definidos, mas ainda assim há mais heterogeneidade do que nos outros campos da moda ligados ao corpo.

Posto isto, parece que as tatuagens, à primeira vista mais uma variação sem autonomia do mundo e da indústria da moda, desse niilismo estético que numa lógica autofágica hipertrofia o valor de objectos (novas colecções) para pouco depois os atrofiar (démodé); as tatuagens, dizia, reintroduziram no horizonte de sentido dos tempos “hipermodernos” o valor da durabilidade. É verdade que a novíssima tendência, contra o que acabei de dizer, está em tatuar com produtos e técnicas degradáveis. Se esta via ganhar amplitude, regressaremos ao niilismo da “mudança pela mudança”, por enquanto gozemos esta valorização de gestos que criam compromissos longos, ainda que por vezes bastante patéticos ou de gosto muito duvidoso.

P.S. Há umas semanas conhecemos uma bela pessoa numa prestigiada loja de sapatos em Lisboa. Chama-se Poliana (exemplo da liberdade onomástica brasileira) e tem tatuagens visíveis que emolduram com elegância um corpo bonito. Essas marcas discretas parecem pequenas portas entreabertas para o interior da sua biografia. Indícios ténues que reforçam os fios da sua identidade e permitem ao espectador, que não é voyeur, imaginar partículas de vida mais íntima. Tudo feito num magnífico claro-obscuro, sintoma de elegância. Bem diferente do registo vulgar que muitos tatuados imprimem na pose sobranceira com que olham a frugalidade da pele nua. 

Niilismo 3/c.10 "Dirty Corner"

Merleau-Ponty, em Sens et non-sens: “nem para o artista, nem para o público o sentido da obra é formulável de outra forma que não seja pela própria obra”. Que significa isto? Que nada do que o artista, para muitos a incarnação da omnipotência, ou o público, considerado o mestre do sentido por outros tantos, possam dizer interessa realmente. Elege-se agora o soberanismo da obra, liberta das diferentes dominações que o copyright parecia ter domesticado para sempre. Lolita instrumentalizou Nabokov e agora vive por si.

Certo, este gesto discursivo é também um fio, mais um, da teia complexa, feita de relações agónicas, do mundo da arte. Mesmo quando Paolo Sorrentino (La Grande Bellezaóscar para o melhor filme estrangeiro em 2014; que Cannes acha, no entanto, um “Resnais para parvos”), diz: “Para mim, a beleza e a verdade estão juntas”, recuperando um platonismo que julgávamos perdido, continuamos no registo da performance artística, não de uma tese falsificável.

O campo da arte permite, pois, múltiplas abordagens, trouxe aqui duas de uma paleta infinita de possibilidades. Porque o que pretendo discutir, prolongando a linha de pensamento sobre o niilismo, é a vandalização da instalação Dirty Corner de Anish Kapoor, agora nos jardins do palácio de Versailles. É a terceira degradação, na primeira foi manchada com tinta, maculando as formas originais para vincar um desagrado estético, talvez artístico e também ideológico (a obra, informação do autor, simboliza as partes íntimas da rainha Marie-Antoinette). Este acto subscreveu à sua maneira um slogan muito disseminado: “Uma criação feia na sua realização e chocante na sua significação.” As outras vandalizações aconteceram já durante este mês de Setembro, apesar da vigilância policial. Têm um carácter anti-semita (a França está contaminada por esta forma de racismo), monárquico e, aparentemente, teológico.

Se a primeira degradação foi reparada, agora Anish Kapoor quer manter as mais recentes, tendo os guias apenas de referir o que foi acrescentado à peça original. Bem dentro da lógica caleidoscópica da apreciação artística contemporânea (com ligações de sentido ao objet trouvé/ready-made L.H.O.O.Q de Marcel Duchamp e, mais próximo, às degradações de várias Fontaine de Pierre Pinoncelli), Kapoor pensa que os grafites se inscrevem de pleno direito na obra. Tanto mais que se limitam a prolongar o sentido provocatório que ele próprio iniciou com essa instalação ao esventrar os jardins do palácio de Versailles e representar de forma um pouco brutal, até pela escala e material usado, a força política da vagina real. Por outro lado, estas intervenções atraem os média, reforçando a divulgação da obra. Mas há aqui uma tensão entre esta tolerância artística calculada, talvez oportunista, e a vontade do Estado francês em reprimir mensagens de ódio, sobretudo as anti-semitas e as anti-islâmicas. Assim, parece contraditório permitir a permanência dos tags anti-semitas na obra. Mas, por outro lado, como desobedecer à vontade de Kapoor e apagá-los sem levantar a suspeita de um qualquer processo de censura?

Esta dissonância, incapacidade de escolher sem arrependimentos uma opção, vive em grande parte do carácter polémico da arte contemporânea (em si mesma ou devido à incompreensão dos espectadores), provocando frequentemente reacções viscerais, nos detractores tanto quanto nos defensores. Li há uns tempos, o que considero ser o horizonte conservador de apreciação estético/artístico: esta arte introduz na vida social a histeria e a perda de referências edificantes. Não querendo agora discutir esta posição, mas reconhecendo a dificuldade da arte contemporânea em promover o bom humor, ela tem a força de obrigar a pensar quer a ontologia da obra (será, por exemplo, que, neste caso, os grafites a reconfiguram?), quer a função da arte (estimulante, criadora de sentidos, indústria elitista, afrodisíaca, representante do belo, emancipadora, caprichosa, decadente...).

Enfim, onde quero verdadeiramente chegar (vive em mim um impulso para chegar a algum lado) é à ideia de que um acto considerado niilista (degradação de uma obra de arte) se transformou, em si e por si, numa intervenção de suplementação estética e artística que acrescenta valor à obra original. Claro que se pode discutir esta conclusão, mas confiemos em Kapoor, um autor imerso no espírito da arte contemporânea, aceitemos como verosímil que a peça original (que só o era em parte, uma instalação renova-se quando muda de lugar) ganhou densidade, complexidade e intensidade estéticas; é agora uma obra de arte com mais poder crítico, correspondendo às contradições do mundo social e político, capaz de mediatizar vários campos da realidade, aproximando-se de uma “obra de arte total”.

Passagem do aparente niilismo à afirmação de um horizonte de sentido que supera as forças negativas que pareciam apoderar-se da instalação.