Bastardo, de Victor Prado (recensão por Victor Gonçalves)

Leitura do belíssimo, intenso, subtil e inovador, livro de Victor Prado, Bastardo (Urutau, 2016).

A vocação da poesia é a de agitar a linguagem e o sentido, quebrar a esclerose dos hábitos de pensamento, quase dizer o indizível, abrir a porta ao que está para emergir, e produzir uniões à sua volta. Mas também viajar entre o superficial e o profundo. E isto Victor Prado fá-lo muito bem, surpreende a vida quotidiana no seu aparecimento, desarmada, e captura com palavras algumas das raízes que a ligam a qualquer coisa de imutável, a um sentido para lá da própria língua que agora a traz à presença. Victor Prado aponta gestos originários que desenham parte do nosso mundo, gestos toscos, porque nascentes, difíceis de fixar pelas ferramentas do poeta, que luta constantemente para apanhar fluxos de vida e plasmá-los em poemas, que terão também de ser fluxos poéticos. Às vezes confessa os impasses que se levantam, outras vezes desiste mesmo, sublimando-se numa meta-poesia que compensa a dificuldade de poetar. Esta honestidade é o verdadeiro caminho para os mais altos cumes da Arte, só quem se rasga de desespero, quem fracassa no limiar da vitória, pode subir a “6 mil pés de altura”. Por isso, não conseguimos evitar um frisson quando lemos Bastardo, não como um soluço, meio caprichoso ou meio snob, mas como um safanão que nos retira a esperança de tudo entrar nos eixos mais tarde ou mais cedo.

Enquanto leitor, procurei os meus próprios ritos de contemplação, em filigrana, sabendo que a poesia cresce sobre as ruínas dos afectos e dos sentidos que oleiam a normalidade. A poesia de Victor Prado faz guinchar as peças das engrenagens intersubjectivas, quebra consensos comunitários, apunhala as subjectividades que a abraçam à espera de consolo. A sua poesia é uma casca de banana debaixo de sapatos bem engraxados. No mínimo, deslizamos e quebramos a perna que nos ajudava, sem o sabermos, a ir geometricamente de um lado para o outro, daquele lado para aquele outro, peripatéticos assoberbados por tantas coisas inúteis.

Seguem-se algumas das inúmeras portas de entrada para Bastardo, há outras, talvez até mais importantes ou luminosas.

Renovação da língua, experimentação extrema do que se pode dizer, com o corpo. Muitas vezes o corpo, mais espinosista do que cartesiano, deste Victor.

Sexta-feira  

Eu estou nuvem pontiaguda

Cada ponta relampeja em mim

e trovoa-me

Cada relâmpago de mim

te guia pela escuridão

O dia é duro e estático,

mas

o tempo é borrachudo

entre os dentes

Teu corpo é fluido em minhas mãos.

Actualização linguística ancorada no português-brasileiro que habita nas ruas, praças e cafés, língua de conversa, às vezes fiada, íntima e pública, mais performativa do que semântica (“Onde está a palavra quando / fingimos a nós?”), produtor de sentido porque nos sacode mais do que nos guia numa linha clara de significações (“Misturando com o cheiro de querer fazer / algo inovador de transcender a linguagem / e conseguir se comunicar”, “Epifania”). O poeta elege uma estética da força em vez de uma do belo, tudo faz para reactivar a sensibilidade, envolta em ritmo e vibração. Por isso, prefere desaprender a aprender (a vertigem da primeira é substancialmente superior à da segunda), entrando novamente no mundo incógnito (mesmo desejando por vezes apanhar solidez e vida harmoniosa com as mãos), talvez só assim alcance a tão procurada “Narrativa surrealista de acontecimentos reais”. E para começar, recusa os cortes semânticos das palavras, junta-as para ver o que dizem de novo: “e apareço a ti com olhosboca, ouvidosboca / e um coraçãoestômago” (“Adendo ao Poema Confissão 2”).

Arquitetura de Percepção 2

[…]

O mundo incógnito constrói-se

através das insignificâncias

Eu desaprendi

a ser tantos

Ela aprendeu-me pela prática.

Mas o excesso cansa, conspurca, Victor Prado tem a noção exacta dos elementos linguísticos necessários aos jogos de sentido que quer compor, quase não há palavras ou sílabas a mais, a sintaxe é sóbria e respeita a oralidade, o livro tem a amplitude certa, mesmo quando por momentos atinge a incandescência. Compreende-se, pois, que diga:

 Caleidoscópio

[…]

A moça no jornal diz tantas

palavras desnecessárias

que me parece pornografia.

[…]

Leia-se também a magnífica dança de equívocos, provocada pela surdez e outras barreiras comunicacionais, no poema “Visita”, onde múltiplos significados bailam a partir do capricho soberano de cada subjectividade, de cada sujeito evanescente por falta de exterior (blindar o íntimo chama a loucura).

Victor Prado assegura uma tensão criativa entre o exterior e o interior, ora analisando, ora reflectindo. E olhando-se para fora com os demónios do interior acordados baralha-se a geometria da identidade, já que tudo é fundamentalmente pulsional, ondas de forças fulgurantes:

Precipitação

[…]

Os pássaros fizeram ninhos nos prédios

de frente e sempre há um gosto salgado

quando engulo minha saliva.

Aprecia-se o paradoxo vital (“Às salinas é inevitável / que se formem para / estancar feridas.”), porque o amor e o desejo, talvez menos deleuziano do que pretende Carla Carbatti (óptima prefaciadora) explodem, apesar de confinados em possíveis já destinados, aqui, contra outras visões suas, Victor Prado afirma-se “unipolar”.

Confissão

[…]

meu mundo não é globalizado

ele é unipolar.

e curtas infinitas são as estradas todas que levam a você

[…]

No mesmo lugar, fala dessa eterna laceração que o amor, e a falta dele, induz nos pobres implorantes que se querem unir, com o exclusivo de uma força brusca e incontrolável, frustrados pelo poder da gravitação universal:

[…]

desmantela-me e esfumaceia as coisas

teu estado ausente.

 

sou resquício de algo que era.

sem ti, rapidamente, me implodo.

Por isso, diz esse apaixonado que julgamos ser Victor Prado: “Quero-te.” Recusando os códigos de pontuação que enfatizam palavras para preservar a ignorância sobre se este querer é tão amplo que tudo fica suspenso à espera de uma resposta, ou se é já a última etapa de um desejo derrotado pela indiferença do objecto amado. Entramos, pois, no trágico civilizado, onde ninguém morre por interromper, ou ser interrompido, a linha que vai da Terra ao Céu, do Eu ao Tu, do Dentro ao Fora, hoje o trágico só baralha a velha cisão entre bem e mal. Este “Quero-te” é uma descarga de consciência, uma catarse a priori, impossível de levar à cena, mas não para espectadores, esgota-se em si mesmo, uma autofagia em lume brando. Isto porque “a vida não é mais do que poderia ser.”

Ao mesmo tempo, Victor Prado cambaleia e dá um rim (meia esperança de vida, note-se) por visões assentes nas palavras “vertigem”, “inquietação”, “profusão”, “heresia”, “abertura”, “choque”, “acaso”, “grito”... porque, di-lo logo a seguir em “Profusão de Cores”, por vezes “os amores são reais / e o corpo não está submerso / dentro de si mesmo / e essas vidas podem ser vividas / sem medo da Inquisição”, isto leva a que “a boca perde o medo de falar / os olhos de olhar / o peito de bater / a cabeça de pensar”. Multiplicidade selvagem, indomável, que cura aquilo que a sensatez e o medo tinham lenta e suavemente apodrecido, para que haja “encontros” entre “Pontos vagos / desconexos”. Daí a vontade de partir e recomeçar:

Domingo

[…]

De deixar a fila

Sair do mercado

            De recomeçar tudo

            em outro lugar

            em outro tempo.

de novo.

Mesmo quando “o destino da folha é o chão” (“Augusto”).

Há uma delicada atenção ao tricô da vida quotidiana, gestos insignificantes cheios de biografia, completos, mesmo que banais. Talvez não seja uma “beleza líquida”, mas têm a força de serem o que são. Trata-se de infiltrar a poesia com todo o tipo de pulsões do dia-a-dia, sem conjurar nada: “Não há como ajudar /alguém a carregar / uma metáfora viva / que resida em seu sangue.” (“Caleidoscópio”) Victor Prado transforma facilmente sensações banais em sensações poéticas.

Domingo 2

[…]

O senhor pesa suas batatas

            e vai embora

            (a fila aumenta)

Eu sou o próximo.

Mesmo se ela que o “olhou com olhos d’água / por um ínfimo de eternidade” lhe diz, depois de aguentar as investidas de um Casanova inoportuno, “Prefiro sonhos a concreto.” (lembramo-nos de Bernardo Soares, dos seus sonhos mais completos do que a realidade). Mas, claro, o “mercado” é eficiente, “Ele está pouco se fodendo / pros teus olhos castanhos, / menina.”

Por tudo perpassa o tempo (em todas as fissuras e continuidades do espaço), esse velho desmancha prazeres, tão necessário quanto escusado. Podemos viver a vida a arranjar calços para todas as peças assimétricas, querendo nivelar até à perfeição o que prefere dissensos e outras guerrilhas, mas:

Travessa

[…]

Tu tens alimentado um monstro:

            o tempo.

E ele engolirá o teu clamor

e a todos nós, no mais inoportuno

dos momentos.

Victor Prado convoca também uma geopolítica poética, forma de denunciar injustiças, presentes desde logo nos discursos mais escorreitos e “sérios”. Será uma poesia engajada? Pode a arte maior da palavra curar as intoxicações do mundo? Pode um “Abraço ao Terror” substituir o “odiar quem odeia” (velha dialéctica estéril), envolver de bons afectos e ritos antigos quem se extremou tanto que quer voar despedaçadamente até ao transcendente mortífero? Sabendo-se que é preciso viver as derrotas como um privilégio irrepetível, o autor afasta com as mãos em sangue “esses bruscos sopros / do descontentamento” (“Adendo ao Poema Confissão 2”).

Os leitores devem mastigar e engolir os poemas, é porventura no estômago que melhor se faz uma hermenêutica adequada à escrita de Victor Prado. Como descodifica os sistemas-língua dominantes, não se espere poder caçar facilmente o sentido com os gestos gastos da leitura compreensiva, “A construção dos significados / dos / sentidos /azul e / eles / nada além / de reflexos” (“Não-Sei-Onde 3”). E há muitas palavras indigestas, algumas provocam vómitos, aliás o poeta também se vê compelido a essa expulsão das entranhas, mais radical ainda, já que ele se quer vomitar a si próprio:

Mal-Estar 2

Eu quero vomitar-me

            vomitar-te de mim

            vomitar tudo de mim

[…]

Tanto mais que “Nada disso é teórico e é difícil não se engasgar.” (“Constante”). E mesmo o leitor Victor Prado, quando se põe em modo autofágico diz: “Não gosto nem de reler meus textos; Bate uma / vontade de rasgar a folha” (“Do cansaço I”).

“Não consigo alcançar o silêncio” (“Do cansaço II”), refere o poeta, como se procurasse a linguagem adâmica, quase não-linguagem, no preciso momento do acordar linguístico, primeiro movimento para a formação de fonemas e grafemas, desenho inicial do pré-verbal que descreve tudo sem se fragmentar ainda nas particularidades linguísticas, o livro do mundo inteiro numa arqui-escritura sem identidade, a plenitude do sentido. Trata-se de enunciar quase fora da enunciação, sem mediações, comunicação directa, não como em Alberto Caeiro entre o humano e a natureza, mas entre o poeta e a esplendor das coisas ainda incodificadas, sem cultura. Noutros casos, uma rede subterrânea cria ligações significativas capazes de constituir um discurso poético perfeitamente inteligível. É também por isso, creio, que Victor Prado nos confessa a sua dificuldade em escrever: “Não consigo escrever. / Não mais como / antes. Como eu costumava fazer.” (“Do cansaço I”). Esta revelação negativa, inscrita mais ou menos sanguinamente em todos os poetas, assinala que a quantidade pletórica de palavras criou uma cacofonia insuperável, o uso despudorado da linguagem fê-la funcionar ao contrário. O esclarecimento só pode agora estar no silêncio.

Apesar disto, Victor Prado é um artífice das palavras, da sua forja saem exemplares únicos, belos, mesmo quando foram fabricados para distorcer o apolíneo, em geral criteriosamente precisos, apesar da sua força ampla e destemida de esboços livres. Ser forjador de palavras responsabiliza-o por amar um exército de leitores, que ele não quer submissos. É isso que se cumpre exemplarmente em Bastardo

14 De Julho

Hoje, na varanda, enquanto engolia uns goles de sake à uma e meia
De uma noite clara do norte e olhava a bandeira orgulhosamente
Pendurada na varanda de emigrante, lembrei-me das primeiras bandeiras
Da minha vida, penduradas no posto da Guarda Fiscal e na aduaneira
Antes da ponte onde o meu pai comia as refeições quentes envolvidas
Em panos de cozinha que eu lhe levava, com os meus cinco seis anos,
Ele um herói de pistola à porta de Portugal, uma casa grande
Com cheiro a eucalipto e uma língua como a que se falava em casa,
Eu na altura era contrabandista de pastilhas elásticas e iogurtes,
Lutando contra a corrente do ribeiro para salvar os fantasmas
De plástico, brindes de um cromo premiado, caça-fantasmas,
Tinha a caixa de fósforos quase cheia de fantasmas minúsculos,
Todos corrente abaixo, menos eu, e do outro lado a senhora
Da mercearia galega uma língua igual à do Son Goku dobrado,
Nada de bandeiras nas pedras da ribeira que hoje atravessaria
Em três passos, hoje que um pontão e na ponte nem um bivaque,
Só o fóssil de um brasão de um lado e de outro, neste ano
Que ameaça tudo e mata mais os que de olhos no céu
Festejam a liberdade como se fosse algo que ainda exista,
Hoje, olhando uma bandeira, estrangeiro aqui como em todo lado,
Como a própria bandeira, a mesma daquele tempo em que
Ia ao pão com cem escudos e já era grande, e as couves cresciam
Apesar dos caracóis enormes e dos bolsos vazios de fantasmas,
Tão cheios de medo, não daquele medo da gabardina pendurada
No quarto onde dormia num divã, um medo de fogo-de-artifício,
Um medo de me distrair na felicidade num momento e ser
Engolido na loucura anónima que nos leva a erguer muros onde bandeiras.

15.07.2016

Turku

Ir pensando sobre o fim do mundo

“porque, do vinho da sua luxúria, se embriagaram todas as nações; prostituíram-se com ela os reis da terra e, com o seu luxo despudorado, enriqueceram os comerciantes do mundo.”

Livro do Apocalipse, 18-3.

O primeiro texto de ficção conhecido, a epopeia mesopotâmica de Gilgamesh, contém a narração de um dilúvio devastador, inspirando provavelmente o Bíblico. Depois disso, quase todas as culturas e religiões, das mitologias escandinavas ao islão, escreveram a sua versão do fim do mundo. O homem é uma animal escatológico, vive na, e da, vertigem do Fim.

Talvez a esperança, como queria um lenda grega, ficasse na Caixa de Pandora por ser o pior de todos os males, talvez não se possa beber uma cerveja no Inferno nem jogar xadrez no Céu.

Numa certa perspectiva, a apocalipse não passa de uma impostura, mas mantém aceso o prolongamento, e até o desenvolvimento, até à plenitude por vezes, do sentido. Quando o mundo morrer, nada restará, daí que a filosofia nos deva preparar para a sua morte, estará aqui a nova grande condição de possibilidade ética (tudo o que escolhemos fazer só ganha verdadeiro significado confrontado com a morte do mundo, o mal está em precipitar esse fim, o bem em adiá-lo). Mesmo considerando que na sua matriz originária, ainda viva, a narrativa apocalíptica contém uma ambivalência irredutível: devastação absoluta ou transição final para uma realidade melhor, muito melhor (Paraíso).

Os progressistas (que se resumem alegremente como estando no lado certo da história, sem impurezas para extirpar) não acreditam no Fim, o progresso é infinito e vai esmagando todos os problemas que aparecem. Os conservadores (outro chapéu-de-chuva semântico bastante largo), por seu turno, não acreditam no Hoje, quando mais no Amanhã, desejam a permanência num passado mítico. Finalmente, os pessimistas, esses militantes do pior, crêem que haverá um fim efectivo, porque nem o tempo nem a esperança são infinitos. Vão-se, portanto, preparando para o apagão definitivo, fechando parcelas de luzes, trazendo pedaços de obscuridade às festas luminosas dos optimistas, consolidando a escuridão onde vivem.

Não há apocalipse sem hermenêutica, ela requer a descoberta de sinais precursores do Fim. Mas a hermenêutica vive, tensa, entre o certo e o errado, os signos com que desenha a realidade são somente uma aposta. De qualquer forma, prefere arriscar no trágico, tanto mais que os pequenos acontecimentos do quotidiano ganham assim significado. O arco hermenêutico é, porém, vasto, vai da ciência à religião. Quando sacamos dos óculos teológicos (mais vezes do que julgamos) amplificamos as catástrofes e vemo-las como anúncios messiânicos.

Muitos asseguram que o profeta apocalíptico está no pior de dois mundos: por enquanto, apesar do esforço hermenêutico, não tem razão, sujeitando-se ao ridículo. Quando o futuro lhe der finalmente razão, em princípio deixará de estar cá para se vingar dos incrédulos (embora alguns apocalípticos acreditem que uma imunidade especial lhes está reservada, nascendo para a Vida depois do cataclismo). Mas convenhamos que têm algum conforto nesta época bem menos optimista do que o século xx (entrecortado pelo pior niilismo das guerras totais, os opostos unem-se): terrorismo global, aquecimento global, migrações massivas, crises económicas e sociais, esgotamento dos recursos naturais...

Os pessimistas, esses que não acreditam na redenção, herdeiros do velho estoicismo, deslizam para um hedonismo cínico ao pensarem que tudo podia ser pior, aliás, que tudo vai ser pior. Os optimistas, quando não são totalmente ingénuos, conhecem alguns problemas graves que governam o mundo, mas acreditam no futuro, e os bloqueios reais à felicidade que vão aparecendo aceleram a sua urgência de prazer, de estarem, pelo menos agora, radiantes.

No Ocidente, o poder actual da ciência permite conjurar cada vez mais a apocalipse, as narrativas que a mantêm viva (quando, em contradição, parecem ganhar intensidade no islão radical). Paradoxalmente, vivemos como nunca sujeitos à sua vinda pela via da catástrofe ambiental. E aqui não há qualquer solução messiânica. O Antropoceno marca (finalmente?) o domínio absoluto do ser humano, a sua actividade é agora a principal força física no planeta. Nada está isento da nossa pegada. Aprendemos enfim, mas de outra perspectiva, como diz Bruno Latour, que a Terra é redonda, o que se faz num sítio e num tempo reflecte-se, como um eco mortífero, nos outros sítios e tempos. Assim, ameaçada na sua totalidade, a humanidade só poderá salvar-se também na sua totalidade. Ou então talvez possamos rever Melancholia de Lars von Trier, ler Hans Jonas, Rodrigo Fresán (o fim do mundo durará o tempo de um SMS idiota), talvez só a arte, como queria Nietzsche, e a filosofia tenham agora o poder de redimir.

 

Os Intelectuais e o futebol

Cristiano Ronaldo, a nova aposta messiânica (tivemos de ir ao futebol depois de D. Sebastião se recursar reiteradamente a aparecer), atirou para a água o microfone de um repórter que o abordou. Este gesto de censura será desculpado ao “melhor do mundo”, porque temos mais coisas com que nos preocupar (apesar do optimismo institucional da nova retórica triunfalista) e porque não acreditamos muito na liberdade de imprensa, ou melhor, na liberdade tout court (somos espinosista sem o saber). Quanto a mim, vi naquele impulso mais uma prova do messianismo ronaldino, o enviado da Madeira mostrou-nos como podemos derrotar esse tablóide abjecto, perito em desinformação e em irradiar a ideia de que Portugal é constituído maioritariamente por assassinos e assassinados, estropiados, bêbados e tarados sexuais. Só critico Cristiano Ronaldo por uma coisa (ampla): não leu nem Immanuel Kant nem Proust, nunca hesitou entre Herbeto Helder e Fernando Pessoa, ignora todos os filmes de Tarkovsky, continua surdo à Paixão Segundo São Mateus, nunca quis comprar um Francis Bacon em vez de um Mercedes, não foi ao Louvre em vez de Ibiza ou ao Algarve.[1] É por isto que não acredito no cliché teológico do “melhor dos mundos possíveis” de Leibniz, se Deus comandasse a História, Ronaldo teria lido alguns clássicos, autores também eles perfeccionistas, e experimentaria desenhar uma tábua de categorias do futebol ou um silogismo do penálti.

Não acontecendo isto, por lapso do rígido desenvolvimento histórico com certeza, temos apenas mais um jogador de futebol que “abandonou a escola para seguir o seu sonho”. Cabe, portanto, aos cultivadores (é bem disto que se trata, cultivar) da língua e do pensamento procurar a genialidade do Messias. Antigamente, tudo era mais claro, o Estado Novo apostou numa trilogia identitária cujo vértice mais recente era o futebol (devido às transmissões em directo dos jogos da Selecção, enquanto os aparecimentos de Fátima se mantinham na era dos sinais de fumo e das peregrinações a joelho). Todos os portugueses, cultos e incultos, se compraziam em amar este desporto popular cheio de simbologia bíblica e sexual (“meter golo”, “jogador sacrificado”...). Com isto, o Estado corporativo e isolacionista (uma soberania solitária que agora se defende também à esquerda e em cada vez mais vox populi, veja-se o Brexit[2]) manteve durante décadas uma eficaz cortina de fumo que escondia um país miserável e iletrado.

O 25 de Abril denunciou esta alienação que impedia o proletariado de tomar consciência da sua condição revolucionária. No início, ainda se trocaram algumas idas ao estádio por comícios políticos, mas o jornal A Bola e os relatos de futebol (pouco televisionados nas décadas de 70 e 80) acabaram por desacelerar o desenvolvimento do materialismo dialéctico. Hoje, super-mediatizado, abafa qualquer espírito revolucionário dirigido pelos órgãos competentes do Apparatchik. Todavia, se por um lado parte da elite intelectual mantêm um desprezo inabalável no pontapé, e cabeçada, na bola, por outro há um compromisso de respeito crescente vinda de outra parte não despiciente da intelectualidade, habitando sobretudo na esquerda política (continua o debate sobre a possibilidade de haver verdadeiros intelectuais de direita).

Se abrirmos a análise ao planeta, durante muito tempo o futebol foi considerado uma espécie de peste emocional, anátema lançado por cérebros bem pensantes que só permitiam a inclusão de alguns desportos no reino do Espírito (por exemplo, o ténis, jogado de fato branco). Mas houve sempre quem resistisse a esta classificação bastante classista, Norbert Elias (1897-1990) considerava-o um espectáculo civilizado de “violência domesticada”. Se é verdade que o futebol alimenta o sexismo, o machismo, o racismo, a homofobia, o individualismo, o nacionalismo... para alguns pensadores ele parece ter um certo poder de emancipação, de criação colectiva pelo fortalecimento das ligações sociais. Talvez o primeiro intelectual de esquerda a celebrá-lo tenha sido Antonio Gramsci (1891-1937), vendo nele um “reino da lealdade humana exercida ao ar livre.” Eric Hobsbawm (1917-2012), historiador marxista, falava de uma “religião laica do proletariado”. Longe, portanto, do epíteto de “analfabetos em calções” que muitos lhe lançaram, e lançam. Opondo-se mesmo àquilo que Theodor Adorno disse em Minima Moralia: “Glorificar os infelizes pobres diabos leva a glorificar o maravilhoso sistema que faz deles o que são.”

Para noticiar uma nova tolerância dos intelectuais em relação ao futebol, o jornal francês Libération, de 16 deste mês, traz um artigo cujo título resume uma nova visão do mundo do futebol pelos adeptos do pensamento elaborado: “Desprezo intelectual, desprezo de classe: durante muito tempo o futebol foi uma paixão vergonhosa para os belos espíritos. Hoje, ela ter-se-á tornado um novo conformismo.” O artigo insiste na velha polarização, mas inclina-se, não fosse ele de esquerda, para o reconhecimento: 1) refere as críticas por ser mais uma forma de alienação; 2) mas realça a nobreza, quase revolucionária, por se tratar de um desporto que quis desviar-se das leis evolucionistas e, numa “bizarria antropológica”, centrar a sua acção no pé em vez de na mão. Além disso, citando Jean-Philippe Toussaint (Football, Minuit, 2015), “Diante de uma partida de futebol, o futuro está fundamentalmente irresoluto. É esta qualidade de suspense que faz com que, à maneira de um divertimento evocado por Pascal, o futebol nos mantenha radicalmente à distância das nossas preocupações do quotidiano, das misérias da nossa condição e da morte.” Ainda no campo da quase sagração, agora com Robert Maggiori (jornalista filosófico no Libération e adepto da Juventus): “Todos os desportos reproduzem mais ou menos os quatro pólos da actividade humana: o jogo, a guerra, a arte e o trabalho. Mas o futebol é o único que os sublima a todos.”

E é por isto que não tendo uma força revolucionária, o futebol, no ganho inelutável de reconhecimento social que parece adquirir, se tornou um verdadeiro novo conformismo cheio de intensidade emocional.

[1] Em boa verdade, um futebolista que lesse Kant ou Proust, que tivesse uma cultura alargada e refinada, não podia ser futebolista, ter-lhe-ia faltado tempo de treino para apreender e incorporar (tornar corpo) fintas e remates, corridas e paragens, saltos e quedas. Parece, pois, inevitável, que um jogador de futebol tenha de ser culturalmente (“alta cultura”) limitado.

[2] O belo projecto de um continente unido, solidário e pacífico ficou mais frágil depois deste divórcio.

Insónia

(ante-sriptum: isto é também um texto de auto-ajuda)

Em Minima Moralia, Theodor Adorno escreve que “o que origina essas noites de insónia, em que o tempo se contrai e foge, inútil, das mãos, são os terrores. Alguém apaga a luz com a esperança de dilatadas e reparadoras horas de descanso. Mas quando não pode serenar os pensamentos, desperdiça o valioso provimento da noite, e até conseguir não ver já nada por trás dos olhos fechados e avermelhados sabe que é muito tarde, que depressa o despertará com sobressalto a manhã. De um modo semelhante, implacável, inútil, se esgota talvez, para o condenado à morte, o último prazo.”[1]

Byung-Chul Han recupera este antigo fragmento para exemplificar a “duração vazia”, inscrevendo o insomníaco (escolhi esta possibilidade morfológica) numa “terrível infinitude”. Dormir bem, continua Han, seria, pelo contrário, uma forma de finitude, um fluxo agradável entre o esquecimento e o delírio que, como refere Marcel Proust em Do Lado de Swann, traz felicidade ao ser humano.[2]

Nesta linha de entendimento revela-se a nossa pior relação com o tempo, porque não o queremos viver, mas suprimi-lo, apagá-lo, passar da cronologia, raiz da vida biográfica, ao instante. O ideal é que num clique adormeçamos e acordemos na manhã seguinte como se tivéssemos dado um salto metafísico. Porém, sendo eu um profissional do sono fracassado, um insomníaco, como disse, compreendo diferentemente as noites vigilantes.

É quase insuportável viver anos a fio na angústia da insónia. Quando a incompetência para dormir surge, desenham-se mais ou menos três vias: 1) consumo de fármacos (placebos ou moléculas activas); 2) reeducação de uma parte importante do estilo de vida; 3) e suicídio. Evitei a primeira, (ainda) não passei pela terceira, escolhi, lenta mais inexoravelmente, a segunda.

Ponto de ordem: não tenho qualquer dificuldade em adormecer, faço-o à maneira dos justos que cumpriram todos os deveres do dia, duas páginas de filosofia e desligo praticamente todo o mecanismo perceptivo. Como raramente me lembro dos sonhos, entendo o meu sono como um apagamento integral. Mas por volta das 4 da manhã, depois de adormecer cerca das 23, eis que regresso da terra feliz dos desaparecidos.

Quando esta interrupção no ciclo do sono surgiu, pensava, ou sentia, como Adorno e Byung-Chul Han. Furioso e desbaratado, forçava o regresso do sono, mas como isso raramente acontecia, passava à fase, igualmente inconsequente, de suplicante cronológico, isto é, implorava por uma aceleração do tempo para que a manhã chegasse rapidamente. Fracassados os intentos, apoderava-se de mim uma resignação triste, entrecortada por assomos de indignação e gritos abafados (o silêncio da noite impede toda a amplitude desses impulsos primitivos libertadores). Semanas depois, tinha comprometido algumas relações sociais devido ao mau humor que se apoderava do tempo de vigília. Quando não se dorme e não se sabe gerir esse défice, fica-se mais susceptível do que uma princesa sem ninguém para casar. As energias, ou forças, ou emoções, ou ideias negativas que acumulava durante o dia acabavam por perturbar o tempo do sono, reforçando as insónias. Um verdadeiro e irremediável círculo vicioso.

Apanhado nesta disfunção vital, lancei-me à procura de soluções. Li e segui muitas receitas do tipo “banha da cobra” (“arejar e arrefecer o quarto”, “esquecer o dia”, “jantar frugal”, “banho quente”....), mas nenhuma funcionou. Decorrido algum tempo, varri para longe as receitas supostamente milagrosas e investi ainda mais na “resignação triste”. Finalmente, na fase três, já em desespero de causa, comecei a levantar-me e a transmutar a insónia em vigília assumida. Em filosofia, poderia chamar-se uma inversão ontológica (os filósofos cultivam o mistério e os arremessos linguísticos).

O rito, já ritual, passa por mal acordo e prevejo que não voltarei a adormecer, levanto-me e entro em modo vigília. Tomo o pequeno almoço, leio, escrevo, vejo televisão (pouca), passeio pela casa, acaricio os gatos, olho o firmamento, ponho likes no facebook... E assim, levantando-me de bonne heure (boa hora; agrupada, bonheur, significa felicidade) o tempo da insónia passa a ter uma duração preenchida, a “insónia mortificadora” transforma-se em tempo útil e prazeroso. O fluxo biográfico deixa de estar em tensão entre o desejo (de dormir) e a impossibilidade (insónia), constituindo-se, antes, uma harmonia fisiológica e psicológica que perdura, apesar do cansaço, durante o dia todo.

 

 

[1] Tradução de Artur Morão [1951, Suhrkamp Verlag], Lisboa: Edições 70, p. 168.

[2] Cf, Byung-Chul Han, O Aroma do Tempo. Um Ensaio Filosófico sobre a Arte da Demora, [2009, trad. Miguel Serras Pereira] Lisboa: Relógio D’Água, 2016.