1984, modos de escrever de George Orwell

A vigilância generalizada, sintetizada nos conceitos Big Brother ou Big Data, inquieta muita gente. A mim também, sobretudo porque pode desbaratar o anonimato da minha vida privada. George Orwell, um dos pais fundadores das modernas distopias geradas nas sociedades de informação, acusado por muitos de ser um anti-soviético primário, sempre se opôs, é bom dizê-lo, ao capitalismo e aos totalitarismos de direita, lutou, aliás, na guerra civil espanhola, ao lado dos comunistas, tendo até sido ferido por uma “bala fascista”. Mas essa experiência mostrou-lhe que o maniqueísmo fascismo/comunismo era incrivelmente redutor. Por exemplo, em 1937, viu como os comunistas anarquistas de Barcelona foram abatidos pelos comunistas estalinistas, sob o pretexto de que faziam “objectivamente” o jogo dos franquistas. Foi isso que o levou a analisar mais cuidadosamente as técnicas de manipulação dos totalitarismos nazi e soviético (monstruosos mas também sedutores, só assim, aliás, se entende a sua perigosidade), verificando que o uso de tecnologias de comunicação de massas elevava a outro patamar o poder de manipulação, capaz agora de influir rapidamente na vida de milhões de pessoas, invadindo facilmente o lar de cada família, a intimidade de cada indivíduo. Inventando-se mesmo línguas burocráticas completas (a célebre Novilíngua de 1984, extirpada das suas subtileza e complexidade para melhor alienar os falantes) capazes de dar verosimilhança às mentiras produzidas pelos sistemas de propaganda. Assim, além de querer a submissão do povo, qualquer pensamento-único deseja também o conformismo, isto é, a aceitação acrítica do projecto político que é propagandeado. Já não se trata apenas de “pôr na linha” comportamentos recalcitrantes, pretende-se uma mutação interna da sensibilidade e do pensamento. Transformar o “faço isto porque sou obrigado” num “faço, penso e sinto isto porque, em boa verdade, eu o quero”. Um amor fati pífio. Isto mesmo vai sendo expresso nos ensaios e artigos que Orwell escreve durante a Segunda Grande Guerra, mas só com 1984 tirará todas as consequências do que viu e pensou. A ficção revelou-se-lhe o melhor meio para expor o que os Ocidentais pareciam incapazes de perceber. A inspiração veio também de outro livro distópico, o Nós (Мы,1921, URSS) de Yevgueny Zamyatin, onde um sistema racional extremado procura controlar tudo, fazendo tábua rasa das liberdades individuais em favor de um igualitarismo e conformismo irreprimíveis. E talvez possamos também evocar o panopticon de Bentham (séc. xviii), esse edifício que permite observar secretamente; no caso de 1984, para lá dos mecanismos tradicionais de controlo, um écran oculto examina cada um, até ao mais íntimo, em sua casa, uma omnipresença asfixiante. A finalidade da vigilância completa será a de condenar/eliminar todas as heterodoxias, levando os espíritos livres a uma nostalgia kamikaze. Sendo que, para Orwell, o pior estava, contudo, na destruição da verdade objectiva, arruinando-se simultaneamente o passado e o futuro, pilares essenciais do sentido não manipulado do presente. Um esmagamento impiedoso da liberdade individual, o maior dos bens para Orwell, e da realidade, permitindo a vitória da ilusão. Na vida real (que significa isto?), Orwell antagonizou-se com elementos do PEN Club de Londres em 1945 devido a controvérsias sobre a importância da liberdade de expressão, que muitos defendiam dever ser de geometria variável, criticável quando, por exemplo, era praticada na Índia, mas aceitável se tivesse o objectivo de emancipar o proletariado. Pedia-se na altura aos intelectuais que se autocensurassem por um “breve período de tempo”, até que a Revolução vencesse e o mundo fosse uma grande e magnífica cantata. 

A casa e a horta de Orwell na ilha de Jura, 

A casa e a horta de Orwell na ilha de Jura, 

A narrativa pessimista de 1984 pretendia alertar, conjugar resistências, evitar aquilo que descrevia. Hoje, há quem julgue que o Big Data faz o Big Brother parecer um brinquedo inofensivo, mas há também quem veja quer o livro quer o histrionismo dos anarcas anti-vigilância como um exagero crítico bastante irrealista. Continuamos no jogo agónico entre previsões apolíneas e dionisíacas, optimistas e pessimistas, respectivamente. Um jogo sem verdadeiro vencedor, porque cada um utiliza as suas próprias regras. É por isso que quero desviar-me dessa polémica e convocar nas próximas linhas um elemento importante do MODO DE ESCREVER 1984. Acompanhado da tese sobre a relevância do sítio onde se escreve, da envolvência humana e, por exemplo, da saúde física para o resultado da escrita. Eu, mais um exemplo, sem algum gato por perto tenho sempre mais dificuldade em pôr correctamente as vírgulas (haverá tal coisa? Talvez não, mas o fascínio pela precisão lexical é muito intenso).

Em Maio de 1946, Orwell vai viver com o filho Richard para a ilha Jura, ao largo da Escócia, arquipélago das Hebrides, numa casa isolada (ainda que passasse algumas temporadas em Londres), imitando, mutatis mutandis, Henry Thoreau. O objectivo da autocracia foi escrever 1984, como se esta narrativa ficcional necessitasse de um isolamento especial para a concentração profunda no processo de escrita. No entanto, pelo que nos conta no seu domestic diary (vol. III), Orwell sentia-se demasiado ocupado pela caça e o cultivo da horta, confessando ter dificuldade em escrever algo que o satisfizesse. De qualquer forma, a insularidade, ainda que entrecortada, permitiu-lhe concluir um esboço de 1984 no Outono de 1947. A ilha, a horta e os tiros tinham dado frutos. Mas uma inflamação dos pulmões, rapidamente diagnosticada como tuberculose, obrigaram-no depois a frequentes hospitalizações e a uma luta “contra a morte” para terminar o opus magnum (apesar do já relativo sucesso de Animal Farm, publicado em 1945 após várias recusas). A versão definitiva do texto ficou pronta em Novembro de 1948 (inspiração para o título), pouco depois, Janeiro de 1950, findava a sua vida.

Casa de Orwell na ilha de Jura

Casa de Orwell na ilha de Jura

Assim, Nineteen Eighty-Four foi um livro escrito por um solitário, durante algum tempo livreiro (Booklover’s Corner), obrigando-se a fitar nos olhos o fim da literatura, e corrigido por um convalescente. Não quero abusar na relação entre o modus vivendi do escritor e o carácter distópico da obra. É possível, sem dúvida, escrever uma utopia tenebrosa vivendo hedonisticamente numa constelação de amigos e futilidades luxuosas. Mas estranho que Orwell, até ali de uma vitalidade quase heróica (lutou contra o franquismo, defendeu no terreno os mineiros do norte da Inglaterra, foi um cronista prolífico...), sem, contudo, nunca perder um halo de pessimismo, se tenha empenhado, exaltando uma fantasmagoria mortífera, em narrar uma história sobre o definhamento irredutível da liberdade individual, o apagamento da verdade objectiva, a censura da alegria de viver, o aniquilamento das emoções festivas... Se não houve uma relação causa-efeito simplista entre lugar e vitalidade do autor e tipo de obra, acredito pelo menos numa influência importante. Talvez até, ainda que parcialmente, uma influência procurada, isto é, projectando escrever um livro niilista, Orwell buscou o isolamento, afectivo e social, que lhe desse o tom existencial certo para o fazer. A meu ver, mais um exemplo da interdependência entre vida e obra (por isso "só interessa o que se escreve com o próprio sangue"), que, transformado num lema fácil de usar, daria: “adequa a vida à obra que queres escrever”. 

Como eleger um tipo com vontades várias e dispersas, dando-lhe uma unidade que nunca terá

Naqueles dias, havia uma grande máquina ruidosa que fazia “pum, pum, pum”. Nessa máquina habitavam estranhos seres quadrados, feitos de uma matéria que dir-se-ia papel, mas que, na realidade, consistia em coisas “digitais”

(Não que os dedos fossem necessários; não, é uma expressão feita, assim, “digital”, diz-se mesmo assim: “di – gi – tal”.)

É claro que não levou muito tempo até haver um quadrado com ar de círculo que disse: “Ena Pá! Isto era mesmo o que eu andava à procura! Uma máquina que faz ‘pum, pum, pum’, só que sem eu querer. Isto quer dizer que, sem a minha vontade, tudo pode acontecer por si”. Chamemos “indivíduo” a este sujeito. Indivisível, portanto, e irrepetível como todos nós. Ao contrário da crença comum, o mal não é todo igual, varia muito e tem vontades muito dispersas. A alguns apraz arrancar unhas, a outros ver alguém arrancar unhas. Depende muito. Não das unhas, claro – da vontade.

Entretanto, a inércia, essa estranha senhora subtil e mal-amada, com olhar de gema e sorriso de ferro, disse melancolicamente: “ah, se eu falasse”. Prostrou-se num canto e continuou, com a sua habitual bonomia, a rezar.

Nisto, um desses quadrados que tem nome, neste caso K, teve um problema. K pensou que tinha muita importância o que escrevesse, escrevinhasse, com os dedos, nessa tal coisa sem papel. Pressuposto: os (as) milhares de capas do mundo inteiro podiam fazer com que biliões de pessoas (“as” pessoas) começassem a achar que determinado indivíduo (o tal indivíduo irrepetível) era uma inversão de todos os valores do mundo – como se todos os valores do mundo se pudessem inverter sem ajudas externas. A dos (das) capas, em específico.

A inércia continuava a olhar, e pela primeira vez na vida disse: “parem! parem!”. É que lhe custava – num sentimento que não saberia dizer se era inveja ou cobiça – exortar a que os outros preguiçassem como ela. Num certo sentido, a inércia tem atributos que se assemelham a uma divindade pan-helénica.

Bom, nisto o quadrado K viu que tinha criado algo bom. Como estava ainda no primeiro dia, achou que era cedo para descansar. Viu que a poia que fizera era grande e bonita, fumegava, transbordava opinião, ruía e falava. Estava cheia não de boas intenções, mas das suas boas intenções. Só não calava. Não, em certo sentido, anunciava: dizia, o indivíduo é a encarnação de todo o mal.

Entretanto, na Transilvânia parisiense, vários quadrados nunca tinham ouvido falar assim do indivíduo. Pensavam: “é pá, ele não é assim tão mau”. Assim mesmo, por estas palavras. Por “pensavam” entende-se o seguinte: “produzir pensamento sobre”, algo que, na larguíssima maioria dos casos, os homens estão habilitados a fazer, a não ser que estejam em coma profundo (e até isso parece-me discutível). Custa admitir, aos (às) capas, mas é absolutamente comum, banalíssima até, a capacidade biológica de produzir pensamento. Homens e mulheres. Homens, mulheres e crianças. Coisas não. Animais também o farão, mas não da mesma forma. Bom, “homens” em sentido lato. É melhor falar em “humanidade”. Não se ofendam. Guardem os vossos dedos para a digitalização do mundo, que corre dentro de momentos.

(Se ainda não entenderam, isto é uma rábula sobre Donald Trump, vá, desculpem lá o eventual equívoco, sei que é difícil, mas as boas alegorias e parábolas são difíceis de acompanhar. Um dia Jesus disse “amai-vos uns aos outros” e os discípulos perguntaram-lhe, “Senhor, porque falais em parábolas?”, não necessariamente por esta ordem; ou seja, mesmo as palavras simples são parábolas, não por acaso eram a mesma palavra antes de serem duas).

Então, esta humanidade, que tem a capacidade de pensar, começou, precisamente, a pensar sobre o indivíduo. Olhou bem para ele, e viu que era extremamente tonto. Olhou para si e pensou, e pá, eu sou bem tonta. Ficou feliz, porque a identificação é um processo bastante bonito de apropriação do mundo. É assim que crescemos, que porra. É lindíssimo.

O quadrado K olhou para esta parte da humanidade e pensou que ela estava a pensar cada vez pior. Convocou todos os (as) capas e decidiu que estava na altura de começar a digitar mais com os dedos. Bombardear com ideias verdadeiras a humanidade que pensa mal. O indivíduo, insistiam, é um idiota. Um tonto. Um estúpido. Um verme. Um cabrão. Um preconceituoso. Um fascista. Um homem que representa uma época que não deve mais existir.

Nisto, a humanidade, metade dela, extremamente digitada porque conhecia perfeitamente a máquina que fazia “pum, pum, pum” ou conhecia alguém que lia bastante a máquina que fazia “pum, pum, pum”, começou a pensar: ó diacho, estão-me a chamar idiota? Tonto? Estúpido? Verme? Cabrão? Preconceituoso? Fascista? Sou de uma época que já não deve existir? Ai é?... Ai é?... (nunca, nunca subestimem o poder do “ai é!”, decorrente da identificação)

Reparem no espanto, na estupefacção com que a humanidade, metade dela, saboreia as últimas palavras, “uma época que já não deve mais existir”. É revoltante, eu próprio sinto-me revoltado, com este perigoso insulto ontológico. Dizerem-te que não tens época é quase como forçarem-te a suicidar. Com a agravante metafísica.

Claro que o quadrado K, e os (as) capas, continuavam a digitar furiosamente, construindo uma idealização do mal puro, abstracto, filosófico, imaterial. Ou simplesmente digitando indiscriminadamente contra. Ou “partilhando conteúdo” (que coisa horrível de se fazer, que nojo).

A outra humanidade, que desconhecia conceitos pouco tangíveis como o da imaterialidade, nada entendia, e começava cada vez mais a convencer a outra humanidade de que ela própria existia, caramba, era presente, estava ali. Tinha época.

Nunca tinha ouvido falar assim do indivíduo, pensava até que era bem sucedido e rico, o que é uma coisa que grande parte da humanidade, mesmo a outra – percentualmente, se querem números científicos, representa cerca de 91,27% do total das humanidades do mundo, sei porque uma cegonha mo disse – considera até bastante positiva.

A inércia, entretanto, lacrimejava e olhava com piedade para os dedos furiosos, furibundos e cansados dos (das) capas. Desistira de tentar fazer o que quer que seja, e sentiu-se bem com isso. Estava, digamos assim, na sua natureza. E ainda nem era terça-feira.

K, que nunca foi “o” K, mas simplesmente um mero e insignificante K, como o indivíduo, estava estupefacto com a humanidade. Achava-a mal. Como podia ela gostar de uma idealização do mal puro, abstracto, filosófico, imaterial? Tal como ele o construiu? De uma época que já não existe?

As épocas gostam muito de aparecer. Sacanas.

Retaliando cada vez mais, os (as) capas digitaram e regurgitaram as suas amadas verdades e meias-verdades, porque não há que olhar a meios para atingir fins. (A inércia não, para o bem ou para o mal, nunca intervém em assuntos de estado, a não ser que seja preciso, necessário. Não achou, portanto, que fosse necessário).

Entretanto, o indivíduo, que até conhecia algumas coisas de digitação, nunca teve tantas oportunidades para digitar ele também, uma vez que os dígitos dos outros lhe permitiam uma profusão de digitamentos que nunca esperou.

Uma ideia foi crescendo dentro dele: “Oh lá! A humanidade não é tão estúpida como eu pensava. Há muita gente que pensa como eu”.

Houve, então, um enorme polegar que lhe respondeu afirmativamente; parece que toda aquela parte abominada pelos (pelas) capas se erguia num só gesto viril, fálico, impetuoso, fácil. “Gosto”. Seria esta a forma verbal que resumiria uma época.

Ficou muito feliz com o sucedido e continuou o seu nobre caminho, com vigor e felicidade renovados (ou “renovadas”, vamos lá a concordâncias politicamente correctas).

Escusado será dizer que os (as) capas digitaram ainda mais, em intensa e epopeica retaliação.

Por cada digitalizador surgiam, porém, inexoravelmente, pelo período variável de um instante a uma vida inteira, dois que não queriam digitalizar, mas iriam agora, com certeza, votar. Diziam nesse momento: “Ai é?”. Não vos disse? Não subestimem o poder do “ai é?”. Qualquer criança sabe disso.

K continuava sem acreditar na existência carnal de metade do mundo. Sabia que ela existia, mas apenas como conceito. Essa metade do mundo, porém, sabia bem da existência carnal de K, porque se achava incapaz de imaterialidades. Ele, aliás, gritava-a, com os seus amigos, na máquina que fazia “pum, pum, pum.” Nesse ambíguo equívoco, e num certo sentido, essa época nunca poderia deixar de ser essa época ou outra que era a mesma.

(Volto a lembrar que isto é uma alegoria, ou parábola. Como a de “amai-vos uns aos outros.”)

Bom, um belo dia, a 9 de Novembro de 1638, nada aconteceu porque não conheço bem a história de 1638.

Hoje, porém, todos sabem o que aconteceu.

K ficou imensamente perturbado. Achou que a sua digitação era um anátema-karma contra aqueles que existindo deviam deixar de existir.

A partir desse dia, o indivíduo não cresceu mais, porque já era adulto, e tornou-se presidente de algo grande, mas passível de ser nada. Os (as) capas continuaram a fazer dele um exemplo pleno do mal radical, do mal absoluto, do mal encarnado. E não é que se veio a tornar isso mesmo (esta profecia depende do momento em que leem estas linhas; se, por exemplo, um camião acabou de vos atropelar ou estão a morrer de fome numa crise ambiental à escala global, altura em que, aliás, vos desaconselho vivamente a que continuem a ler estas linhas – recomendo, se ainda não leram, um dos grandes mitos da humanidade, “Crime e Castigo” de Dostoievsky, porque tenho um fundo profundamente sarcástico e humano ao mesmo tempo, perdoem-me...)? Claro que os políticos lhe iam apertando a mão ou fazendo a guerra. Ou as duas coisas ao mesmo tempo. Muitos outros indivíduos foram nascendo e morrendo, como em todas as épocas do mundo.

No fim, já sabem, veio um meteorito e destruiu tudo.

Entretanto, não se esqueçam: “quem toma o homem por uma só, bela e pura natureza é tão estúpido como aquele que pensa que todos são como ele”.

Não demos, portanto, muito importância a quem diz que vai construir muros e tem a sinceridade (sim, sinceridade) de dizer aquilo que metade da humanidade agora, por breves momentos, pensou. Sublinhemos muito, muito, muito quem destruiu muros, amou quando pôde quem pôde e deixou uma época um pouquinho, infimamente melhor para quem se seguiu. Guardem para o fim das vossas digitações um pequeníssimo apontamento sobre o que julgam ser o mal encarnado. Um apontamento breve e sugestivo, subtilmente relacionado com o que se está a dizer, cria mais ideias do que três milhões de discursos e crónicas localizadas. A sugestão é um processo muito interessante. O indivíduo que o diga. É claro que, com estas prudentes sentenças, acabei de encontrar uma solução para o mundo.

E sim, isto é uma parábola.

Com os melhores cumprimentos, e aguardando resposta,

Pedro Braga Falcão

Trump, democracia e Stephen King

Donald Trump veio agitar as águas meio adormecidas da virtude democrática. Sempre houve, sempre haverá, anti-democráticos, algo, aliás, que a própria democracia não só deve aceitar como estimular, caso contrário entra em auto-contradição e tenderá a cristalizar. Mas com Trump as dúvidas adensam-se, mesmo no país onde, como referiu Tocqueville, as “ideias democráticas constituem uma forma de religião cívica”.

Ultimamente, escreveu-se muito sobre o declínio da democracia, evocando como prova o candidato à Casa Branca do partido Republicano. “Se uma personagem tão insensata e mentirosa pode liderar o país mais poderoso do planeta, então a democracia não pode ser um bom regime político!” Ora, é justamente porque quase tudo cabe na democracia, isto é, na vontade do povo (manipulada ou não, esta é outra questão), que Donald Trump pode ser Presidente. Noutros termos, se houvesse critérios de virtude irredutíveis para a escolha dos candidatos, então não seria uma democracia, mas uma normocracia, se me permitem o neologismo. Mais, imaginem que todos eles tinham de ter dito “a verdade, e nada mais do que a verdade”, quantos seriam verdadeiramente elegíveis? E não me refiro a mentiras piedosas.

Dito isto, sou relativamente agnóstico em relação às eleições americanas porque não quero prenunciar-me com base em preconceitos, mas parece-me que só a cair de bêbado votaria em Donald Trump. Justificação? Desagrada-me o seu carácter (o visível) e a sua mensagem (nacionalista, belicista e quase racista). Mas mais do que isto, escolho como minha a argumentação que Stephen King (raramente o li) expôs no The Guardian, Agosto de 2016:

“Não acredito no suposto nivelamento por baixo dos americanos; mas, à medida que a leitura quotidiana perde terreno – e é o caso –, o pensamento analítico também decai. A leitura é um prazer, e para mim isto é muito importante; todavia, ela estimula também os sentidos e permite detectar claramente o cheiro da imbecilidade. […] Em mim, não é o democrata que Trump arrepia, mas o escritor e o leitor. Ouvir os seus discursos é como ouvir um piano a cair numas escadas. Só se ouvem notas falsas, nada de música. Vou realmente lamentar Obama... Nas suas palavras havia sempre poesia, música...”

Sobre o prémio Nobel da Literatura

Estava a comer um pão com queijo quando soube que Bob Dylan tinha vencido o prémio Nobel da literatura. Não tinha manteiga.

Os prémios com manteiga sabem sempre melhor. Tornam o pão menos seco, mas não fazem bem ao colesterol.

O pior é quando a dieta que nos impuseram é à base de opiniões. Muitas opiniões. É que eu engordo facilmente.

No outro dia, só para dar um exemplo, estava a andar na rua e caiu-me uma opinião. Olhei para o chão. Estava muito sozinha, ali no solo, coitada, quase que alguém a pisava. Mas depois pensei: pobrezinha, vou pegar em ti e pôr-te na minha boca outra vez.

Era de noite, e num beco escuro alguém me olhava de soslaio. Olhei outra vez. Era impressão minha, não era ninguém.

Depois, ouvi uma voz. Falava americano. “Pedro, és tu?” Nem queria acreditar, era o Bob Dylan, mas a coisa pareceu-me artificial, porque não disse “Pedro, is that you?”. Mesmo assim fiquei bastante perplexo, pois tendo passado toda a adolescência a pensar noutra coisa qualquer, nunca soube reconhecer ícones. Se a Madona passasse por mim não saberia quem era. Essa que está viva, claro, não o fóssil.

Bom, nem queria acreditar.

“Pedro, és tu?”

Eu perguntei – que outra coisa poderia fazer? – “mas quem és tu?”

Ele respondeu: “então nos últimos parágrafos já tinhas admitido que eu era eu”.

“Eu?”

Fiquei confuso, mas depois pensei: bom, não me conheço assim tão bem, pode ser que algo de estranho se tenha passado.

“És tu, Bob?”

O silêncio respondeu-me torto. O silêncio responde sempre torto. Entretanto, já tinha comido todo o pão que tinha para comer, nem tinha fermento nem nada.

Sobejamente confuso, olhei para a chávena de café e pensei: “caramba, era capaz de jurar que nunca tinha falado em chávenas de café”.

Pus uma pitada de opinião e segui em frente.

Entretanto, um sujeito muito estranho começou a olhar para mim, porque o verbo começar implica que ele já lá estava.

E pensei: oh lá, aqui há gente que conhece muito bem as coisas. Mas olhem para mim, todo sujo de opiniões, estava a andar e tropecei numa. Estatelei-me...

Outros poderiam pensar que um prémio é só um prémio. Aparentemente este é “o” prémio. Aparentemente é do caralho.

“O” prémio.

Com que então há prémios. Boa, adoro prémios. Gosto de pôr manteiga nos prémios, para o pão não ficar tão seco. Aí sim emito uma opinião forte, vigorosa, viril: adoro pão com queijo.

“Pedro, és tu?”

Desculpe, meu querido poeta, não o conheço, mas estou certo de que “o” prémio vai ser muito importante para si e para os seus, e especialmente para quem não o recebeu, e mais ainda para os que acham que “o” prémio devia ou não devia ser seu.

“Olhe, desculpe, mas deixou cair esta opinião.”

Olhei para trás. Uma velhota começou a aparecer, o que é confuso, porque não se pode começar a fazer uma coisa que é surgir. Tinha razão, olhei; de facto, tinha deixado cair uma opinião.

Aparentemente – pensei – é muito importante sublinhar em voz alta aquilo que pensamos. Simular nas nossas vidas os noticiários e as/os magazines culturais do mundo. Só assim poderemos verdadeiramente apreciar um/uma  bom/a sandes de queijo.

Bom. Nisto ficou tarde. À tarde, quando posso, gosto sempre de ouvir um pouco de música.

Ia a meio de uma música de que gosto muito, quando apanhei um susto imenso. Era o prémio Nobel de 1575. Era zarolho. Disse, “meu amigo, dás-me um pouco de pão?”

Disse-lhe, sim, claro que sim, conheço-te de retratos, estás envelhecido, companheiro, mas toma, claro, toma lá, gostas de pão com queijo? Isto era tudo bastante inverosímil, uma vez que anteriormente já tinha ficado definido que o narrador comera o pão todo, até ao fim, porque nunca se come o pão todo até ao princípio.

Ele disse-me: “é assim que tratas um Nobel?”

Pedi-lhe desculpa, mas em 1575 ainda era uma criança, não sabia bem que existiam prémios, achava que as pessoas simplesmente faziam – quando lhes deixavam – a poesia que podiam fazer.

“És tremendamente ingénuo”, bradou uma voz dos céus. Ou dos seus? Já não sei.

Olhei à volta, e obviamente não tinha sido o zarolho. Entretanto atirara-se com uma voracidade épica ao meu pão com queijo, que vi desaparecer com alguma pena, mas com o sentimento de dever cumprido.

“Roberto, sois vós?”

Ainda o ouvi sussurrar estas palavras. Mas, entretanto, estava na hora de sair de casa, e nunca se deve ficar em casa quando é hora de sair de casa.

Um abraço,

Pedro Braga Falcão

Intelectuais

Jean-Paul Sartre e Michel Foucault em 1972

Jean-Paul Sartre e Michel Foucault em 1972

[nota prévia: há uma quantidade surpreendentemente grande de artigos, entrevistas, ensaios... sobre os intelectuais. Julguei que fosse uma moda mais francesa, onde o termo e a pose modernas nasceram. Mas não, ela está bastante disseminada e até Portugal, onde não goza de muita fama, pensa e escreve bastante sobre essa figura clara-obscura. No final do artigo estão links para se aprofundar o tema, revelam também algumas das minhas linhas de inspiração.]

Se perguntarmos por um intelectual, a resposta cairá mais facilmente para o lado do “quem, aquele gajo que tem a mania que é bom?”, do que “quem, aquele que é”... seguindo-se uma enumeração das suas características mais importantes. Trata-se de desprezo e confusão, em relação a esta recordo-me de exclamar com um amigo, numa sala tingida de noite e embalados por generosas quantidades de whisky, que éramos intelectuais sem termos feito muito para isso, sentido apenas dificuldade em encontrarmos uma inabalável pose de seriedade. Mas deve descontar-se o vapor da ebriedade que nos parasitava (por vezes, álcool e cérebro agem em simbiose, mas são momentos raros, a quem devemos pedir, inutilmente como Fausto: “És tão belo! Demora-te.”). Em boa verdade, custa muito fabricar intelectuais, porque não basta haver talento, eles só emergem dentro de ecossistemas culturais complexos, um intelectual isolado é uma contradição nos próprios termos (talvez por isso os americanos usem a expressão public intellectual), ainda que eles instiguem singularmente a nossa admiração, e inquietação, arrebatando-nos por si mesmos a cada instante. Neste artigo vou tentar, em contracorrente (à força de tantas heterodoxias teremos qualquer dia a mais pura das ortodoxias), definir alguns traços do intelectual, um esquisso menos demonstrativo do que gostaria.

custa muito fabricar intelectuais, porque não basta haver talento, eles só emergem dentro de ecossistemas culturais complexos, um intelectual isolado é uma contradição nos próprios termos (talvez por isso os americanos usem a expressão public intellectual), ainda que eles instiguem singularmente a nossa admiração, e inquietação, arrebatando-nos por si mesmos a cada instante

Comecemos por onde deve ser, mesmo repetindo histórias. O termo intelectual é bastante recente, e muito francês, substituindo até certo ponto o de filósofo. Nasceu social e politicamente no caso Dreyfus, embora semanticamente já se usasse antes. Foi o J’accuse de Émile Zola (contribuindo para que Dreyfus tivesse um segundo julgamento, onde ficou provada a sua inocência), publicado em Aurora no dia 13 de Janeiro de 1889 (carta aberta ao Presidente da República, Félix Faurel), que tornou o intelectual um dos novos heróis da República (paradoxalmente, usando a acusação que os detractores de Dreyfus fizeram aos seus contendores: chamavam-lhes “meros intelectuais” para glosar a sua ignorância).[1] Mas já naquele tempo continha uma carga narcísica que nunca mais cessou de curto-circuitar a sua possível grandeza. Depois, a palavra foi-se fixando e, como acontece muitas vezes, vieram os profissionais da definição tentar espartilhar o seu sentido, mas sem abandonarem completamente o tom dissensual: Julien Benda, Raymond Aron, Jean-Paul Sartre, Albert Camus, Gilles Deleuze, Michel Foucault, Noam Chomsky, entre outros.

1- Antigamente, quando era feliz devido a uma dose exacta de ignorância, tinha para mim como certo que havia em Lisboa duas divisões de intelectuais: na 2.ª divisão, os que iam ver filmes (sempre de “qualidade”) ao Quarteto (agora evangeliza de outra forma), jornal Expresso debaixo do braço; na primeira divisão, os que iam à Cinemateca “ver arte”, acompanhados pela publicação que na altura tinha o recorde mundial das gralhas (mágicas, algumas), o Jornal de Letras. Os dois jornais eram em formato XL e sugeriam que quem se escondia por detrás deles devia ter em casa uma biblioteca-e-pêras, lida e sublinhada, discutida com pessoas do mesmo calibre, pronta a ser incendiada, ou vendida ao quilo (bem pior), pelo filho misólogo que esses pais por vezes educam.

Estas ilações cândidas desapareceram quando me abri ao mundo e o cepticismo entrou, creio que de rompante, nas minhas interpretações: afinal, nem todos os filmes do Quarteto tinham realmente “qualidade” e no Expresso havia artigos de semiologia fina mas também narrativas melodramáticas; a Cinemateca era frequentada por alguns divergentes que viam nos Cahiers du Cinéma uma Bíblia estético-política e as gralhas do Jornal de Letras também eram erros ortográficos. Caí, pois, lentamente na incerteza hermenêutica e cheguei mesmo a desconfiar do meu gabarito mental, o que desfez totalmente a pose que copiara dos meus ídolos.

Antigamente, quando era feliz devido a uma dose exacta de ignorância, tinha para mim como certo que havia em Lisboa duas divisões de intelectuais: na 2.º divisão, os que iam ver filmes (sempre de “qualidade”) ao Quarteto (agora evangeliza de outra forma), jornal Expresso debaixo do braço; na 1.º divisão, os que iam à Cinemateca “ver arte”, acompanhados pela publicação que na altura tinha o recorde mundial das gralhas (mágicas, algumas), o Jornal de Letras

2- Isso foi antes de ler Michel Foucault, esse filósofo que ousou contestar a ideia do oráculo Sartre sobre o filósofo engagé: super-pensador militante, decidido a ver o mundo pela lente moral da esquerda, um intelectual universal. A esta figura demiúrgica opôs-lhe a do “intelectual específico”, conhecedor de uma ou outra área particular, militante de baixa intensidade, resistindo a ser porta-voz de qualquer movimento político-social. Em 1971, Foucault aproveitava uma entrevista a um jornal de Genève para se demarcar do intelectual dominante francês, criticando também os profissionais da indignação, porque ela não potencia qualquer horizonte político, esgota-se no mediatismo, é fugaz e não produz forças de mudança. A intolerância, mais foucaldiana, conduz, pelo contrário, a acções revolucionárias. Na mesma altura, aproveitando o púlpito da Academia Sueca, Albert Camus criticava os intelectuais tradicionais por se afastarem da vida e da sociedade na ilusão de criarem as suas próprias regras, acabando por acreditar em Deus (Discours de Suède). Camus disse no mesmo discurso que cada geração pensava refazer o mundo, mas que a sua não teria essa possibilidade. Talvez ficasse, porém, com uma tarefa maior: impedir que o mundo colapsasse (acho que ainda estamos neste ponto). Hoje, Alain Badiou, no seu Logique des mondes (2006), tenta recuperar um pouco do intelectual universal, no entanto as verdades do século passado (o comunismo, para ele) não se adequam a este, profundamente diferente. Neste sentido, continuo com Badiou, não basta a uma verdade ser universal, ela deve ser eterna. Mas estes iconoclastas conceptuais são-no a partir da sua condição de intelectuais (inovadores na conservação), tomando a palavra para defender uma ideia global superior às ideias particulares, isto é, falam-nos da superação do intelectual universal situando-se justamente na posição de um intelectual universal.

O que temos agora, segundo o historiador das ideias Christophe Prochasson, é uma massificação dos intelectuais, em oposição ao modelo antigo da figura singular, heróica mesma

Bom, mas desde o pós-modernismo francês e, sobretudo, das alegações foucaldianas, poucos já se atrevem, além de Badiou, a apontar um intelectual desse tamanho e potência, capaz de descobrir os veios do mundo e fazer profecias a condizer. O que temos agora, segundo o historiador das ideias Christophe Prochasson,[1] é uma massificação dos intelectuais, em oposição ao modelo antigo da figura singular, heróica mesma. Hoje, a Universidade produz e alimenta milhares de putativos intelectuais, nomeadamente nas ciências sociais e humanas, que tendem, diz com ironia Prochasson, a ficar cada vez mais ligados entre eles, “cultivando as delícias do entre-si”. Portanto, parecem ter desaparecido os velhos senhores do pensamento, capazes de dominar sobre vastos reinos espirituais. Simultaneamente, expiraram também as grandes narrativas, produzidas e alimentadas por instituições que tinham como função explicar de fio a pavio o mundo, para depois o mudar, lembro-me do marxismo, do existencialismo e do estruturalismo. Revogou-se, refere Prochasson, o modelo feudal sobre o qual assentava o intelectual clássico: “um mestre (Bergson, Sartre, Foucault, Bourdieu, etc.) e os seus discípulos, “adubados e/ou repudiados". Agora, o pensamento fervilha e são imensos os que se dedicam a pensar, mas isto parece ser a “marca do declínio”.[2] O autor que vimos acompanhando arrisca, contudo, reconhecer três estilos de intelectuais: 1) o “intelectual especialista”, fechado num círculo de competências únicas e que recusa evadir-se; 2) o “intelectual mediático”, oposto ao primeiro, sem qualquer especialização, próximo do senso comum, legitimador de ideias feitas; 3) mais residual é o “intelectual do partido, ou do sindicato”, como ainda existem nas extremas esquerda e direita, as teses são aí mais performativas do que descritivas, trata-se quase sempre de ser o porta-voz da instituição a que pertence.

“A rive sud do Tamisa é menos elegante mas intelectualmente mais viva do que a rive gauche do Sena.”

Numa das outras geografias principais do pensamento escrito e divulgado, a Grã-Bretanha, festeja-se a falta de intelectuais. O historiador Stefan Collini, em Absent Minds: Intellectuals in Britain, destaca a tradição britânica de negação da intelectualidade, pensadores que noutros países receberiam com honra o epíteto de intelectual, recusam aí serem-no. Collini chama-lhe a “tese da ausência”; na evidência de que os intelectuais só começam em Calais; aliás, dizer “intelectual britânico” seria um oximoro. Daí as alcunhas pejorativas egghead, highbrow, boffin, telly don... Ou o nojo que esta etiqueta provocava em Orwell. Ainda assim, Collini distingue três tipos de intelectuais: 1) alguém que lê muito, interessado pelas ideias, dedicado à vida do espírito (sentido subjectivo); 2) intelligentsia enquanto classe, universitários (sentido sociológico); 3) por último, alguém que atinge um certo nível de criatividade, de análise ou de investigação, e que depois se serve dos médias para intervir sobre assuntos que interessam a um público alargado, aos olhos dos quais ele se torna uma referência (sentido cultural). Além disso, contra a aparente fobia dos ilhéus ao intelectual, assegura que a Grã-Bretanha deve ter hoje uma das culturas intelectuais mais prolíficas da Europa, parecendo consensual reconhecer-se que aí se discutem ideias, política, livros... sendo fácil encontrar debates autênticos, sólidos, inovadores, arriscados, e que cativam um público alargado. Por isso, Timothy Ash (cf. link abaixo, “Qu’est-ce qu’un intellectuel?”) refere com algum humor e um leve espírito de vingança: “A rive sud do Tamisa é menos elegante mas intelectualmente mais viva do que a rive gauche do Sena.” E a BBC Radio continua fiel a um dos seus princípios maiores: instruir. Dando a oportunidade a muitos pensadores de aí divulgarem as suas teorias. Já para não falar em revistas intelectuais de primeira água: Prospect, The Times Literary Supplement, The Guardian Review, The London Review of Books, OpenDemocracy. Acrescente-se uma blogosfera realmente interessante, de que destacamos, sem reais fronteiras étnicas ou políticas, mas vivendo na língua inglesa, a Literary Hub. Único bemol, Timothy Ash critica o facto de na Grã-Bretanha apenas 3% dos livros serem traduções (contra mais de 25% em França, por exemplo), havendo um perigo real de vedar aos britânicos, cada vez mais satisfeitos com o seu imperialismo linguístico, novos intelectuais de outras línguas, conduzindo-os não para o mundo mas para uma torre de marfim cheia de ideias fixas. Afirmando o mesmo autor, em semi-lamento, que afinal a rive gauche está bem aberta à vida, enquanto a rive sud do Tamisa se encontra encerrada num autocontentamento estéril. E o fechamento, sabem-no bem os portugueses, traduz-se em raquitismo.

3- Por seu turno, Patrice Maniglier (no Le Magazine Littéraire 553 de Março de 2015, pp. 86-89), ajudando-me  a sistematizar um pouco este artigo, propõe cinco condições para a formação de um intelectual: 1) tem de irromper qualquer coisa de novo; 2) esse aparecimento não deve estar apenas localizado numa obra: 3) a unidade do percurso não deve ligar-se a uma tese mas a um problema, algo que dê a pensar, que exija uma abordagem plural; 4) esse problema não deve ser principalmente um problema especulativo ou filosófico, mas qualquer coisa de mais “necessário e cego [aveugle]”, algo que venha de fora do pensamento para nos obrigar a questionar as mais sólidas evidências; 5) finalmente, importa que instaure um “depois”, isto é, que não cesse de interrogar a actualidade. Além disso, não como um suplemento mas mais como uma condição de possibilidade geral, um intelectual arrisca, não uma ou outra vez, mas sistematicamente, pelo menos sempre que consolida uma teoria e esta começa a ser percebida e vulgarizada, quando isso sucede chegou o momento de partir à aventura, deixando-se inquietar por um novo exterior que promete boas batalhas especulativas. 

Filomena Molder diz que “desconfia dessa palavra”, é uma palavra, continua, “um bocadinho irritante por causa desse fechamento no intelecto.” Além disso, “Não existem revistas ou publicações de saber intermédio, entre o facilitismo e a coisa hermética da cátedra.” Uma ponte entre arte, pensamento e quotidiano, como o fazia Eduardo Prado Coelho.

4- Mas estas caracterizações necessitam do aval de quem é considerado intelectual, vaga ou mais objectivamente. É bastante irrelevante designarmos como intelectual alguém relutante em sê-lo. Neste aspecto, convém ler uma reportagem do Expresso de 21 de Setembro de 2014 (Link abaixo), onde José Gil, Pedro Mexia, Filomena Molder, António Pinho Vargas, António Pinto Ribeiro e Rui Ramos mostram muitas reticências, quase à maneira inglesa, em relação ao termo intelectual. Filomena Molder diz que “desconfia dessa palavra”, é uma palavra, continua, “um bocadinho irritante por causa desse fechamento no intelecto.” Além disso, “Não existem revistas ou publicações de saber intermédio, entre o facilitismo e a coisa hermética da cátedra.” Uma ponte entre arte, pensamento e quotidiano, como o fazia Eduardo Prado Coelho. Rui Ramos começa por afirmar que é um “editor de ideias”, mas conclui que se trata de uma ”figura algo vaga, contaminada pela nostalgia e pelo que nela se projecta de capacidade de organizar e interpretar um colectivo”. José Gil, impregnado de filosofia francesa, continua as tese foucaldiana do desaparecimento do intelectual universal, embora a sua sombra ainda ajude a pensar “uma relação de verdade e de liberdade”. Depois, como se exumasse um figura antiga, diz: “Uma das características tradicionais do que se chamava ‘intelectual’ era abanar os conformismos e ir contra o bom senso, aquilo em que se acredita, os clichés, a mesmice.” No mesmo sentido nostálgico, António Pinto Ribeiro argumenta que “já houve épocas, e tenho um pouco inveja disso, em que os intelectuais se permitiam ser portadores de um princípio de potência, de energia.” Pedro Mexia, lapidar, “Não me vejo como um intelectual”. Do mesmo modo, António Pinho Vargas, “Não sei o que isso seja”. Há ainda os lamentos sobre a ambivalência em relação às multidões, fascinantes e desprezíveis, ou à especialização dos pensadores. Mas concordam que os dois mundos onde hoje se exerce o métier de intelectual são o dos média e da Universidade. Outro bom articulista português, Vítor Belanciano (Público), critica também o intelectual especializado, contrapondo-lhe o imperativo da rua, quando, por exemplo, Zizek vai ao encontro de um público alargado. Aqui, “As pessoas refugiam-se na especialização e nas universidades utiliza-se uma linguagem difícil. Não se traz o debate para a rua […] Em Portugal ainda todos querem ser engenheiros e os burocratas reinam nos lugares de poder.” (Público de 05/08/2001). Mas será, Vítor, que a rua quer ouvir os intelectuais que forem ter com ela?

Conclusão: a figura do intelectual é inseparável da do anti-intelectual, quando queremos usar uma caricatura insultuosa, podemos simplesmente chamar “intelectual” ao nosso detractor. Por outro lado, o termo pode trazer proveitos materiais e simbólicos a quem o imprima na pele, desde que seja reconhecido por alguns mandarins. Ao mesmo tempo, dentro da ambivalência que referi há pouco, persiste uma imagem idílica do intelectual como alguém que defende desinteressadamente os valores da justiça, da verdade e da liberdade. Não uma verdade universal, mas, seguindo Foucault, a sua verdade, veracidade, dizer-verdade, falar franco, instaurando uma relação entre o verdadeiro e a democracia (Foucault dava o exemplo de Robert Oppenheimer, que passou do projecto Manhattan a um grande crítico das armas nucleares). Talvez tenha sido isso que fez Sócrates: nunca se inibiu de dizer aquilo que realmente pensava, desagradasse ou não aos atenienses, arriscando, de verdade, a própria vida, jamais alienando a sua autonomia e batendo-se pela justiça. Isto é o que mais me interessa, reviver um modelo de cidadão culto que intervém publicamente para defender a justiça, a verdade e a liberdade.

Links:

Os intelectuais de direita estão a sair do armário

Para que servem os intelectuais?

Os intelectuais sob escrutínio

O intelectual acabou?

Contra o fim dos intelectuais em Portugal

Pedro Mexia. ‘Não sou nem quero ser um intelectual’

Os intelectuais e a superação da crise nacional no início do século xx em Portugal

Os intelectuais

O regresso dos intelectuais

Qu’est-ce qu’un intellectuel?

The Role of the Public Intellectual

What does it mean to be a public intellectual?”

Who Is a Public Intellectual?

[1] Cf. Le Magazine Littéraire 553 de Março de 2015, pp. 90-91.

[2] Mesmo assim, há selectividade. Em 2015, a revista britânica Prospect consultou os leitores acerca dos maiores intelectuais mundiais do momento, sobre 100 nomes propostos, eis o resultado, do primeiro ao décimo, respectivamente: Noam Chomsky, Umberto Eco, Richard Dawkins, Václav Havel, Christopher Hitchens, Paul Krugman, Jürgen Habermas, Amartya Sen, Jared Diamond e Salman Rushdie. Lamentamos a ausência de, por exemplo, George Steiner, Peter Sloterdijk, Bruno Latour, Bernard-Henri Lévy, Slavoj Zizek, Vargas Llosa... ou os nossos Eduardo Lourenço, José Gil e Filomena Molder.

[1] Cf. Le Magazine Littéraire 553 de Março de 2015, pp. 90-91.

 

[1] Embora Jacques Le Goff coloque o nascimento do intelectual na Idade Média (cf. Les intellectuels au Moyen Âge).