Little Poor Rich Girl (1965)

Revolve-o em profundidade ou amacia-lhe as superfícies. A ausência de definição da figura permite esse trabalho substancial sobre a imagem. E a imagem, aqui, com o seu carácter massiço de “matéria-forma”(ou “informe”) – o seu registo é o da “metáfora-deformação” a que se refere Jean Epstein -, adequa-se à noção de Imagem-Tempo de que falará Deleuze. A “duração” constitui afinal a substância, profundidade (como em Orson Welles), da imagem. Dilatando os poros da pele, os contornos da figura, o tempo acentua o efeito de branqueamento geral que trabalha o modelo das Odaliscas de Ingres por uma anamorfose que evoca tanto o (quase) nu de Kiki de Montparnasse em L’Étoile de Mer de Man Ray /Robert Desnos (1928) como os corpos derramados de Bill Brandt (nos anos 50).

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A persistência das Imagens

A persistência das Imagens

 1. Talvez haja um momento, não necessariamente pensado pelos futuristas com a sua utopia de uma mecanização do “humano” como uma ainda sua possível extensão (“declaramos sem sorrir que na carne do homem dormem asas” e que ele “será dotado de órgãos inesperados, órgãos adaptados às exigências de um ambiente feito de choques contínuos”, proclama Marinetti no manifesto O Homem-Multiplicado e o Reino da Máquina)[1], um momento, afinal, em que as máquinas, os espelhos, os diferentes dispo-sitivos, de tanto se reflectirem – de tanto pensar ou ser obrigados a trabalhar as proprie-dades da sua matéria e processos -, se tornam autosuficientes e acabam por produzir, a partir de si mesmos, as suas ideias, emoções e imagens.

    Nos anos 20 do século parece que passado – quando o mundo, dizia-se, era “moderno” -, num contexto em que se vivia uma relação extrema com o poder de abertura e de revelação do sujeito e do “humano” pelo real, os objectos e a máquina (o pintor, “mura-lista” e ocasionalmente cineasta, Fernand Léger, anunciava em 1924 “ a vinda [l’avène-ment] do objecto” que constituía, para ele, “o problema plástico da actualidade”)[2], essa possibilidade (oportunidade?) era pensada (vivida) como o devir-outro, in(h)umano, do sujeito enquanto parte (engrenagem) da instalação material das coisas (real) – do seu Dasein não só físico (“natural”) mas também tecnológico, traduzisse-se isso num devir-cosmos ou máquina (o que, muitas vezes, era o mesmo).

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12 Years a Slave

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12 Years a Slave não é um filme histórico, nem sequer um drama. É um filme de terror. O título diz tudo: 12 Years a Slave mostra-nos os 12 anos que Solomon Northup (Chiwetel Ejiofor) passou como escravo em várias plantações do sul americano, depois de ter sido raptado e antes de recuperar a liberdade com que nascera, para escrever o livro no qual o filme se baseia. Violinista profissional em Saratoga, Northup é levado para Washington, onde é aprisionado e lhe mudam o nome e a identidade, até ser transportado para New Orleans onde será vendido a um dono de uma plantação. Depois de um confronto com um capataz, Northup vê a sua vida em perigo, e o seu relativamente benevolente (para as circunstâncias) dono opta por entregá-lo ao dono de outra plantação, o bem mais aterrador Epps (Michael Fassbender).

 12 Years a Slave é realizado por Steve McQueen, o seu terceiro filme depois de Hunger e Shame. Tal como os anteriores, 12 Years a Slave é extraordinariamente bem filmado. O Sul filmado por McQueen é tão bonito quanto o que lá se passava era aberrante. Uma cena em que Northup é pendurado pelo pescoço numa árvore, à beira de sufocar, demora tanto tempo que é impossível não pensarmos, primeiro, no quão agradável à vista é o cenário, e como a brutalidade do que estamos a ver se torna ainda mais chocante pelo contraste. McQueen é um realizador lento, a câmara mexe-se devagar, como se nos quisesse fazer sentir que, como Northup, falta ainda muito tempo para sairmos dali. Quando, numa noite, Northup queima uma carta que tentara escrever à família, McQueen não termina a cena enquanto a chama não se apaga completamente, deixando o ecrã nas trevas. É aí que o filme nos deixa também.

 Nenhum dos anteriores dois filmes de McQueen me tinha agradado. De ambos fiquei com a impressão de que, a par da sua qualidade visual, estava um enorme vazio, a falta de algo a dizer. Hunger parecia uma exploração quase gratuita da greve de fome do seu protagonista (e do actor que a teve de simular, Fassbender), e Shame um filme motivado, na melhor das hipóteses, por uma tentativa pretensiosa de compreender a sexualidade humana, ou na pior, pela vontade de chocar o espectador com o que era mostrado. McQueen filmava o sofrimento, mas o sofrimento maior era o meu, a tentar não perder a paciência com os seus filmes.

 Em 12 Years a Slave, o estilo de McQueen encontrou um tema que lhe dá sentido. O sofrimento que mostra é gratuito, a violência que exibe é extrema, mas há um sentido para tudo isso: é a escravatura que é extrema, que é violenta, que é aberrante. O sofrimento que provoca no espectador não é o de aguentar um filme monótono, é o de estar a ver algo que é perturbador e real. A sua violência não está só nas chibatadas que mostra, nas feridas causadas pelo chicote de Epps, nas mães separadas dos filhos, no copo atirado à cara de uma escrava pela mulher de Epps (Sarah Paulson, uma das caras conhecidas de Deadwood que entra no filme). Está também – acima de tudo – na ideia de que seres humanos fizeram e fazem de outros seres humanos “propriedade” com a qual podem “fazer o que quiserem”, como Epps não se cansa de dizer; está na cara de Northup sempre que pensa que não pode dizer quem realmente é, que sabe ler e escrever, que não pertence ali, com medo de ser morto; está mesmo no fim do filme, depois de Northup ter regressado a Saratoga, quando milhares de outros escravos continuam ainda cativos.

Após ter sido raptado, Northup diz aos seus raptores que “quando isto terminar, irei obter satisfação deste mal”. Mas é impossível sair de 12 Years a Slave com a ideia de que Northup, tal como cantavam os outros senhores, obteve satisfação alguma. 

Paul Thomas Anderson

 

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Quando, em Novembro do ano passado, fui ver The Master, o mais recente filme de Paul Thomas Anderson, lembro-me de nem conseguir dormir de tanto que fiquei a pensar no que acabara de ver. O mesmo já me tinha acontecido quando vi There Will Be Blood, o filme anterior de Anderson: também não soube bem o que pensar. Dos seus anteriores filmes, coisas como Hard Eight ou Magnolia faziam crer que Anderson era uma espécie de fruto de um caso amoroso entre Robert Altman e Martin Scorsese; Boogie Nights era uma mistura de GoodFellas com Spinal Tap. Punch Drunk Love já era algo vindo de outro planeta, mas o estilo era o mesmo. There Will Be Blood não – parecia ser algo realizado por Kubrick, com planos longuíssimos mas sem o movimento constante que os filmes anteriores exibiam. Era brilhante, sim, mas não aquilo a que eu estava habituado.

Tal como com There Will Be Blood, o amor ilícito que deu à luz The Master foi o de Kubrick e Terrence Malick em vez do de Altman e Scorsese. Mas sendo o segundo filme que Anderson faz nesse estilo, desta vez não foi isso que me deixou “desorientado”. Desta vez, foi outra coisa: se uma pessoa for rapaz (ou rapariga) de certa predisposição mental e emocional, The Master esmurra-nos a cara sem piedade com tanto brilhantismo que é impossível perceber exactamente o que acabou de acontecer.

O filme centra-se na relação entre um veterano da Marinha americana na II Guerra (Joaquin Phoenix) e o líder de uma seita religiosa (Philip Seymour Hoffman) que o “acolhe”. Nas duas horas que se seguem, Phoenix e Hoffman entretêm-se a tentar mostrar-nos quem é o melhor actor, e fica provado à sociedade que é impossível escolher: há uma cena passada entre os dois numa cela de prisão que toda a gente mencionará como prova da qualidade sobrehumana das duas interpretações, mas honestamente qualquer outra poderia servir de exemplo. E depois há Amy Adams, que até a ser execrável e assustadora consegue ser adorável: sempre que aparece, Adams puxa tudo na sua direcção e (em alguns casos literalmente) agarra o que vier com as duas mãos, só largando quando quer e depois do trabalho estar feito.

Anderson dá espaço e tempo para estes três brilharem: a câmara fica neles enquanto for preciso. Mas ao contrário de There Will Be Blood, não é quase estática. O uso do “slow-motion” que enchia Hard Eight, Boogie Nights ou Magnolia está de volta, como se Anderson quisesse combinar as duas fases da sua carreira num só filme. The Master é, no fundo, o filme mais Paul Thomas Anderson –como adjectivo- que Paul Thomas Anderson já fez: pode não ser o seu melhor filme (e talvez seja), mas é sem dúvida aquele em que o seu estilo está mais amadurecido, em que tudo aquilo que ele já fez se junta num só filme. Se Anderson não quiser (e eu espero que queira), não precisa de fazer mais filmes – tudo o que havia para fazer, fez com The Master.

E fê-lo de forma ainda mais conseguida do que havia feito até aqui: nenhum dos travelling shots scorsesianos que celebrizaram Anderson é tão deslumbrante como um em que Phoenix foge por uma plantação agrícola ao nascer do sol; nenhuma das sequências em “slow-motion” dos filmes anteriores é tão encantatória como a de uma festa em que Hoffman é o convidado de honra; e se as personagens de Mark Whalberg ou Julianne Moore em Boogie Nights, ou qualquer uma em Magnólia, arrasavam o bem-estar emocional de qualquer um, em The Master basta olhar para a cara perturbadoramente alterada de Joaquin Phoenix para questionarmos a nossa própria sanidade mental.

Tudo isto salta para a nossa frente quando se vê o filme. Violentamente: o filme é um assalto de brilhantismo e é impossível acabar de o ver sem se ficar impressionado (nem que seja a detestar o filme, o que vai acontecer a muitos dos que o virem). O que parece ser difícil é perceber o que tudo aquilo quer dizer, qual o significado de todas as coisas que nos são atiradas à cara durante mais de duas horas. Talvez o filme não tenha significado, talvez não queira dizer nada: talvez seja só um olhar sobre a vida daquelas três pessoas, uma “experiência” – nada mais que um conjunto de “estados de espírito” filmados para os reproduzir em quem estiver a ver. À medida que a insónia dessa noite em que vi o filme se prolongava, comecei a achar que não, que o filme tinha um significado, que bastava pensar nos outros filmes de Anderson para perceber qual era.

 

Depois do Fim

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Before Midnight, de Richard Linklater, passou pelas salas de cinema portuguesas sem que eu o tenha ido ver. Logo eu, exactamente o tipo de pessoa para quem o filme foi feito.

Na adolescência, uns anos depois de ter sido filmado, apanhei na televisão Before Sunrise, o primeiro dos filmes de Linklater em que os actores Ethan Hawke e Julie Delpy davam vida a Jesse e a Celine, um americano e uma francesa que se juntavam por acaso ou destino nas ruas de uma cidade europeia. Não sei explicar o quanto adorei o filme.

Em Before Sunrise, Jesse e Celine conhecem-se num comboio a caminho de Viena e acabam por decidir passar um dia na cidade, antes de na manhã seguinte seguirem os seus respectivos caminhos (ele num avião para a América, ela num comboio para Paris). Durante a hora e meia que dura o filme, vemos Jesse e Celine a apaixonarem-se um pelo e outro e a serem forçados a confrontarem-se com a inevitável separação que virá na manhã seguinte. Os dois decidem nunca mais se ver e fazem daquela noite algo único e especial. Mas chegada a manhã, dizem um ao outro que não querem ficar sem se ver e que voltarão a encontrar-se no mesmo sítio, seis meses depois.

Lembro-me de ter achado este final genial, ambos a prometerem um reencontro em Viena, e nós desconhecendo se a promessa seria mantida. Mas em 2004, Linklater, Hawke e Delpy voltaram a juntar-se para Before Sunset, em que Celine aparece numa apresentação de um livro de Jesse sobre um encontro fortuito de dois estranhos num comboio para Viena, e nós descobrimos o que afinal aconteceu: Jesse aparecera seis meses depois, Celine não. Mais velhos, Jesse e Celine estavam também mais desiludidos com o caminho que as suas vidas tinham levado, e com a mágoa de nunca terem sabido o que poderia ter acontecido se tivessem ficado juntos.

Agora, em Before Midnight, eles estão mesmo juntos, com filhos, a passarem férias na Grécia. E eu tenho com este filme o mesmo problema que já tivera com Before Sunset: não sei se eles deviam sequer existir. Pois a sua mera existência como que “estraga” o primeiro filme, ao revelar o que acontece após o seu final. Eu não queria saber se Jesse e Celine se voltavam a ver ou não, se tinham um futuro juntos ou não; o que interessava era que, naquela altura em que se despedem um do outro, ambos queriam voltar a ver-se, e ambos temiam que isso não viesse a acontecer. Podia ser um final em aberto, mas era um final, e um final perfeito. Com duas sequelas, o “final” deixa de o ser.

Mas talvez seja aí que esteja o mérito destes três filmes, tomados em conjunto: a vida, ao contrário dos filmes, não tem finais. Continua. E as sequelas de Before Sunrise são o filme sobre o que acontece depois do fim do filme. Mostram como, por muito “mágico” que possa ser um momento das nossas vidas, elas continuam. Mostram que aquilo que receamos - ou aquilo que queremos que aconteça - pode mesmo acontecer, e temos de lidar com isso. Before Sunrise era um filme perfeito, um exemplo de como o cinema pode ser – mais uma vez – “mágico”. Before Sunset e Before Midnight, só por existirem, mostram-nos como a magia do cinema é um truque, uma ilusão. A existência das duas sequelas “estraga” mesmo Before Sunrise, mas aquilo que as faz estragá-lo é precisamente o que as torna brilhantes. Este é um texto sobre um filme que não vi, sim, mas também sobre um filme que quero ver.

Bruno Alves