Já tinham terminado a refeição há algum tempo mas permanecem sentados à mesa, olhando silenciosamente para a televisão. O noticiário abrira com pormenores sobre um novo caso de corrupção envolvendo políticos e, logo de seguida, passara a antecipar e detalhar a forte possibilidade de duas ou três agências de rating descerem a notação de alguns bancos. Ouvem, indiferentes e apáticos, como se o que escutam nada tenha a ver com as suas vidas e apenas se mantenham aparentemente atentos porque não se lembram de nenhuma alternativa.
Então, por fim, ela levanta-se da mesa e leva os pratos cobertos de restos de salmão para a cozinha, cambaleando ligeiramente; ele deixa-se estar sentado durante uns segundos mas, de repente, acaba por se decidir a ir à casa de banho, onde lava as mãos cuidadosamente, até sentir que extinguiu o odor a casca de laranja. Quando ambos regressam à sala (quase em simultâneo, o que não deixa de ser peculiar: se a companhia do outro não é desejada, por que não aproveitaram a oportunidade para se refugiarem num qualquer recanto seguro da casa?), a televisão ainda fala de agências de rating e aumentos de juros e possibilidades de falências. Ele desliza para o sofá e deixa-se estar, imóvel e inerte, talvez pretendendo desligar-se do mundo (ou apenas da vida familiar), entrando numa espécie de hibernação protectora; ela, por seu lado, recolhe algumas migalhas acumuladas na mesa (migalhas dele, que ela nunca toca em pão), uma a uma, com excessiva e desnecessária concentração; e apanha, também, uma microscópica fibra de casca de laranja (dele), que caíra ao chão e fora inadvertidamente esmagada.
Quando passa junto da televisão (migalhas e casca de laranja bem presas na mão), diz sem o olhar:
– Espanta-me que nunca ninguém se tenha lembrado de criar uma agência de rating que se dedique a prever os riscos de falência dos casamentos. Que analise uma relação e diga: prevejo consideráveis riscos de incumprimento a curto prazo. Ou: na actual conjuntura, é altamente previsível que as expectativas se deteriorem.
Ele continua prostrado no sofá, estático e silencioso, respirando devagarinho, com os olhos fechados; mas acaba por sorrir timidamente, quase com gosto. E responde:
– Uma escala que meça o risco de falência dos casamentos? E o faça antes das pessoas casarem? Realmente, parece boa ideia. Na verdade, ter-nos-ia dado muito jeito, não achas?
Ela aproxima-se dele e estende a mão na direcção do seu rosto, como se o fosse acariciar; mas não lhe toca: limita-se a abrir a mão e deixar cair sobre o seu cabelo desgrenhado as migalhas e a casquinha de laranja que tinha recolhido. Ele abre os olhos mas não se mexe, olhando-a com alguma curiosidade, com alguma surpresa, com (alguma?) vontade de se indignar; e ela, quando percebe que ele nem se irá dar ao trabalho de sacudir as migalhas do cabelo, suspira em silêncio (um suspiro interior, simultaneamente secreto e ostensivo) e marcha para a cozinha, onde liga a máquina de lavar louça e fica à espera durante cinquenta minutos para de lá retirar dois pratos, quatro talheres e um copo; os mesmos que servirão para o jantar do dia seguinte, de todos os dias seguintes. E enquanto espera, lembra-se mais uma vez do lamento que a mãe repetia com frequência: o casamento é uma fábula.