Maria Eduarda

 You just get out what they put in
and they never put in enough
Love is like a bottle of gin
but a bottle of gin is not like love 
 

The Magnetic Fields, “Love is like a bottle of gin”

 

Maria Eduarda vê a sala encher-se de gente. Mendelssohn numa recôndita sala de espectáculos de uma cidade de província faz o povo chorar pontualmente às quartas-feiras à noite, independentemente da classe social. Traz ópio num dos bolsos, tem calçadas sapatilhas de pano e quando os músicos começarem a tocar, vai finalmente poder cair do Olimpo, ter o prazer de conspirar consigo mesma. O que Maria Eduarda já sabe: o seu amor é desonesto. O que Maria Eduarda ainda não aprendeu: imaginação e pensamento não são a mesma coisa, não vêm do mesmo lugar. Maria Eduarda imagina muitas coisas, mas pensa muito pouco. Maria Eduarda tem uma tendência para pensar que amor mais imaginação é igual a trabalho (o único possível). As evidências do presente sistema capitalista negam as hipóteses desta suposição, algo que Maria Eduarda tem e terá dificuldades em aceitar, independentemente da conjuntura económica. Bittersweetness não explica tudo mas é para muitos um modo de vida. Maria Eduarda só pode oferecer-se para dar alguma coisa se ninguém lhe pedir nada, de outro modo, sentir-se-ia comprometida (nos dois sentidos do termo). Maria Eduarda sai assim que o concerto acaba. Assim, do escuro da sala para o escuro da rua. Noite escura. 

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Espadas de aço fino

Francis Bacon 'Study for Portrait II (after the Life Mask of William Blake)', 1955

Francis Bacon 'Study for Portrait II (after the Life Mask of William Blake)', 1955

Nunca a horas. Sem dinheiro para apanhar um táxi. Os autocarros atrasados. Mais um sermão do psiquiatra. O senhor é uma criança, cumprir compromissos não é consigo, o que é feito dos duzentos euros de dízima? Um calhau no meio do caminho e os olhos pregados ao relógio parado e a criatura afocinhando no alcatrão, entrando na clínica a escorrer sangue do nariz. Pálida de espanto, a recepcionista abriu a boca mas não falou. Um homem ensanguentado perguntava-lhe pelo doutor, se já tinha chegado, se faltava muito para a consulta, se a consulta tinha sido adiada. A boca da senhora aberta de admiração. Um homem coberto de sangue. A criatura enfiou a língua para dentro da boca aberta da recepcionista e depois de ser mordida sentou-se no chão e perguntou pelo doutor. Que estava desesperado, que os medicamentos não faziam efeito, que as obsessões tinham regressado. Que não saberia exprimir-se de maneira conveniente. Que só o doutor o ouvia.  Com os lábios manchados de sangue, a recepcionista abriu a porta do consultório e afirmou entre, que Zeus aguarda-o vai para meia-hora. Zeus esperava impacientemente, chupando um cigarro maior do que uma caneta e tremendo da perna, hipereufemismo, provocando terremotos mediante patadas na mesa. A criatura ajoelhou-se, colou a testa aos sapatos do doutor e suplicou ajude-me, tentei matar-me ontem à noite, a mulher saiu de casa e levou os miúdos e as vozes dentro de mim. O doutor não quis ajudar logo, disse eu sou Zeus e não nasci para esperar, nem para mendigar, lamba-me os sapatos e talvez a partir daí possamos dar início a um diálogo, digamos, profícuo. A criatura lambeu e mordeu o cachucho do doutor quando este lhe esticou o anelar. O que lhe aconteceu à fronha?, perguntou o doutor. Caí, não tive tempo de me limpar, respondeu a criatura. O doutor pediu-lhe, não pediu, Zeus não pede, ordenou que explorasse melhor esse assunto da mulher e dos filhos. A criatura repetiu que a mulher tinha desaparecido com os miúdos. Qual mulher? A minha. Zeus puxava a criatura para os factos: você não tem mulher, a sua falecida esposa enfiou-se com os miúdos numa fogueira há uma vida, não é assim? É, é, doutor, é assim, mas sinto como se fosse agora. Uma dor profunda que escavaca como uma picareta. O doutor prosseguiu: e se lhe disser que nunca teve mulher? A criatura acreditava, Zeus não se enganava. Altere-me a medicação doutor. A criatura desesperançada. Receite-me mais comprimidos, injecte-me mais daquele líquido. Ontem tentei matar-me com uma faca. A criatura acordara de madrugada, dirigira-se à cozinha e espetara uma faca no ombro. Esperava morrer com uma faca no ombro? A criatura pediu licença para se explicar melhor: não me tentei matar, doutor, tentei substituir uma dor por outra, substituir a saudade ou amor ou paixão, ou o que raio lhe chamam as gentes normais, por uma dor física, substituir uma dor por outra. Zeus de cigarro na boca. Amor?, perguntou.

Risco de Falência

Sonja Valentina

Sonja Valentina

 

Já tinham terminado a refeição há algum tempo mas permanecem sentados à mesa, olhando silenciosamente para a televisão. O noticiário abrira com pormenores sobre um novo caso de corrupção envolvendo políticos e, logo de seguida, passara a antecipar e detalhar a forte possibilidade de duas ou três agências de rating descerem a notação de alguns bancos. Ouvem, indiferentes e apáticos, como se o que escutam nada tenha a ver com as suas vidas e apenas se mantenham aparentemente atentos porque não se lembram de nenhuma alternativa.

Então, por fim, ela levanta-se da mesa e leva os pratos cobertos de restos de salmão para a cozinha, cambaleando ligeiramente; ele deixa-se estar sentado durante uns segundos mas, de repente, acaba por se decidir a ir à casa de banho, onde lava as mãos cuidadosamente, até sentir que extinguiu o odor a casca de laranja. Quando ambos regressam à sala (quase em simultâneo, o que não deixa de ser peculiar: se a companhia do outro não é desejada, por que não aproveitaram a oportunidade para se refugiarem num qualquer recanto seguro da casa?), a televisão ainda fala de agências de rating e aumentos de juros e possibilidades de falências. Ele desliza para o sofá e deixa-se estar, imóvel e inerte, talvez pretendendo desligar-se do mundo (ou apenas da vida familiar), entrando numa espécie de hibernação protectora; ela, por seu lado, recolhe algumas migalhas acumuladas na mesa (migalhas dele, que ela nunca toca em pão), uma a uma, com excessiva e desnecessária concentração; e apanha, também, uma microscópica fibra de casca de laranja (dele), que caíra ao chão e fora inadvertidamente esmagada.

Quando passa junto da televisão (migalhas e casca de laranja bem presas na mão), diz sem o olhar:

– Espanta-me que nunca ninguém se tenha lembrado de criar uma agência de rating que se dedique a prever os riscos de falência dos casamentos. Que analise uma relação e diga: prevejo consideráveis riscos de incumprimento a curto prazo. Ou: na actual conjuntura, é altamente previsível que as expectativas se deteriorem.

Ele continua prostrado no sofá, estático e silencioso, respirando devagarinho, com os olhos fechados; mas acaba por sorrir timidamente, quase com gosto. E responde:

– Uma escala que meça o risco de falência dos casamentos? E o faça antes das pessoas casarem? Realmente, parece boa ideia. Na verdade, ter-nos-ia dado muito jeito, não achas?

Ela aproxima-se dele e estende a mão na direcção do seu rosto, como se o fosse acariciar; mas não lhe toca: limita-se a abrir a mão e deixar cair sobre o seu cabelo desgrenhado as migalhas e a casquinha de laranja que tinha recolhido. Ele abre os olhos mas não se mexe, olhando-a com alguma curiosidade, com alguma surpresa, com (alguma?) vontade de se indignar; e ela, quando percebe que ele nem se irá dar ao trabalho de sacudir as migalhas do cabelo, suspira em silêncio (um suspiro interior, simultaneamente secreto e ostensivo) e marcha para a cozinha, onde liga a máquina de lavar louça e fica à espera durante cinquenta minutos para de lá retirar dois pratos, quatro talheres e um copo; os mesmos que servirão para o jantar do dia seguinte, de todos os dias seguintes. E enquanto espera, lembra-se mais uma vez do lamento que a mãe repetia com frequência: o casamento é uma fábula.

 

Amor fati

Voltei à casa que, contando com a minha, já conheceu cinco gerações na nossa família, em Malpica do Tejo, na raia, bem perto da fronteira com Espanha. O primeiro que fiz foi pedir emprestada uma espingarda ao primeiro vizinho que encontrei e matar o cão a quem só caíam alguns ossos quando alguém de longe em longe se lembrava. Encontrei-o num estado perfeitamente comatoso, cheio de feridas e manco. Foram precisos três tiros. Nunca tinha premido um gatilho e não sabia precisamente para onde apontar.

Dei uma volta pelas imediações. Restavam algumas oliveiras e algumas figueiras. Um regato onde secava um fio de água. Fiz uma cova e enterrei o cão. Agora estava completamente sozinho. Pus-me a descascar o tronco de uma árvore enquanto pensava como estarias. Fiquei com as unhas pretas. Ali as pessoas não me rodeavam. Era indiferente o que fazia. Ainda não tinha entrado em casa. As malas estavam à porta. Deitei-me no banco improvisado que tínhamos debaixo da janela. Uma tábua larga, quase branca de tão seca pelo sol, sustentada por duas latas vazias de cal.

A primeira vez que te vi, sem me conheceres no meio de toda aquela gente, chocaste o teu copo de champanhe contra o meu. Sorrias para as coisas lá em baixo, ainda não te apaixones por mim, não vou sequer cruzar o meu olhar com o teu, os teus lábios vermelhos não de personagem insolente mas de linda menina, não me lembro da cor do teu vestido, eu a vasculhar uma necessidade absoluta dentro da tua mala enquanto o teu vestido passeava de fugida nas tuas pernas alheio, sempre alheia, à consistência que também desapareceu da minha vontade. Italiana, fêmea, habituada.

Não desfiz a mala. A porta esteve todo o tempo aberta com a chave na fechadura. A viagem havia que fazê-la mas não pensava ficar um único dia. Mesmo assim procurei tornar minimamente aproveitáveis os quilómetros acabados de percorrer. Entrei e abri todas as janelas. Deixei correr a água estancada nos canos. Estavam dois pássaros mortos na chaminé. Muito pequenos. Cortei diversos panos em bocados e enchi um balde de água. Não tinha detergente e não queria conversas com ninguém da aldeia. Foram suficientes as perguntas indiscretas do dono da espingarda. Embora o entenda: emprestar uma arma sem procurar averiguar se não se está perante um suicida ou, pior, um homicida, é uma imprudência enorme. Limpei a casa de cima a baixo e de ponta a ponta. Acabei o trabalho e fiquei a olhar para a fachada da casa, agora com as janelas abertas. O banco improvisado, a tábua apoiada nos dois baldes de cal, continuava a dar um aspecto contingente ao espaço. Limitei-me a descascar mais um pouco do tronco da árvore. Estava cansado e não era aconselhável iniciar a viagem de volta. Decidi esticar as costas no banco improvisado. Pouco depois levantei-me e desci até ao regato. Cavei e depus algumas pedras a interromper o avanço da água, construí uma mini-barragem que a determinado passo estreitava e estancava a corrente e depois a precipitava de uma pequena altura. Voltei ao banco e fechei os olhos. Esperei que o som da água me ajudasse a adormecer e a esquecer-me de ti durante pelo menos um momento de reunião com a liberdade, na raia dos contrabandistas dos primeiros vícios, as unhas negras do tronco da oliveira a ludibriar doravante a formalidade dos apertos de mão, sopesando a sorte e a irracionalidade dos pássaros que se atiram ao vazio pela primeira vez. Pela última vez.

O tempo que se vai não volta mais

Era muito, muito novo quando pela primeira vez me senti abandonado. Tenho alguma dificuldade em definir abandono. Recordo-me de, com escassos meses de vida, estar a chorar nos braços de alguém, talvez da avó levada pelo cancro, com medo de que a minha mãe não voltasse para mim. Associei quase desde espermatozoide a palavra abandono ao receio de ficar à mercê da cruel natureza. Fiz a escola primária no campo, mas antes de chegar ao campo experienciei inúmeras aventuras, infelizmente, quase nenhuma agradável. Passei os meus dois ou três primeiros anos de existência nos subúrbios de Lisboa, em casa do meu avô paterno, um viúvo vaidoso e egoísta. Reza a lenda que o meu avô cortou relações comigo por não ter apreciado uma camisa às riscas por ele oferecida. Rejeitei vestir a dita camisa para agradar à minha mãe, que naquela altura tinha deixado de falar com o velho. Ainda hoje me apetece conhecer melhor o homem, pena que tenha morrido. Aos quatro anos a minha mãe abandonou o meu pai adolescente, crónico adolescente, em casa do velho caturra. Instalámo-nos numa pensão rasca localizada numa vila marítima. A sala, o quarto e a cozinha comprimiam-se em cerca de dez metros quadrados e a casa de banho era frequentada por todos os hóspedes. Aí me senti abandonado como nunca antes. A minha mãe trabalhava num café e à noite num bar. Eu ficava sozinho, saía e chegava à pensão quando me apetecia. Chegava depois da meia-noite. Passava fome. Nunca me esquecerei do sabor da fome, da desesperança que se abatia sobre mim por não poder comer um prato de comida, por não poder beber um copo de água. Um dia acordei em pânico e saltei para a rua de pijama, faminto e gritando pela mamã. O abandono equivalia a não ter quem me amparasse. Foram tempos duros em que roubava de tudo, desde comida a brinquedos. A minha mãe nunca me fez um pequeno-almoço, nem me penteou. Recordo-me disso agora. Inscreveram-me um dia num infantário e mais do que uma vez lá se esqueceram de mim. Vinham buscar-me depois da hora de jantar. As freiras que geriam o infantário diziam que seria bem tratado no orfanato para o qual me levariam. Via a minha mãe e a minha tia com muitos, com namorados a mais, muitos deles casados, e também comecei a desejar  mulheres. Juntei moedas e pedi em casamento duas mulheres que trabalhavam numa agência de viagens. Tinha erecções. Via a minha mãe e a minha tia nuas e tinha erecções. O meu pai aparecia muito raramente, oferecendo-me uns cromos como presente. Buscando conforto material, a minha mãe juntou-se a um homem que lhe batia, o vira-latas, como lhe chamava. O vira-latas não me bateu mas bateu na minha mãe e partiu o nariz à minha tia. O vira-latas atropelou uma menina. Eu ia no carro e vi, apavorado, uma menina morta enfiada numa valeta. Cheguei à aldeia para a escola primária. Em vez de voltar para casa da minha avó, a minha mãe decidiu ir para casa de uma senhora que explorava um bar que não era bem um bar mas um sítio de engate, uma espécie de bordel. A minha mãe trabalhava lá como uma espécie de menina para todo o serviço. Os homens que a engatavam apelidavam-me de filho. Num tom de gozo e enquanto passavam a mão pelas pernas da minha mãe, minha bêbeda mãe. Fazia cenas de ciúmes, querendo captar a atenção dela, mas dela ouvia meros “cala-te”, “vai chatear outra”, “procura meninos da tua idade”. Que meninos da minha idade se encontrava em locais como aquele? Cheguei cansado à escola primária, não tinha qualquer vontade de ficar sentado várias horas no mesmo sítio. Queria fazer o que me apetecia: andar atrás da minha mãe. Preocupava-me com ela. Era um suplício estar na escola e não saber dela. Poderia acontecer-lhe algum acidente, poderiam bater-lhe, poderia estampar o carro. Abandono era pensar que a minha mãe poderia desaparecer. Temi sempre o seu desaparecimento e um dia desapareceu mesmo. Não ter direito, não tens direito a pertencer, a perguntar, a vestir como os outros. A certo ponto interiorizei estas mentiras ou ficções. A sorte batia à porta alheia. A felicidade não existia. A nossa, a minha missão no planeta consistia em suportar um caos asfixiante, em trepar uma escadaria de dores cada vez mais lancinantes. Andar de bicicleta libertava-me da frustração de estar encurralado numa aldeia agarrado às promessas de uma mãe que tardava em assumir o papel de cuidadora. Pedalava até não aguentar mais, pedalava e arfava, afirmava não aguento mais, trepava aquelas ladeiras e não aguento mais. Aprende-se que se aguenta um pouco mais se o esforço não nos matar. Pedalava para fora da aldeia, perseguia sonhos que piscavam e se apagavam como pirilampos. Pedalava tardes a fio, lanchava uvas roubadas. Ia à praia de bicicleta e ainda jogava à bola com amigos ou sozinho - preferia jogar sozinho, entretinha-me mais fazendo o relato das minhas próprias jogadas. A minha mãe não estava, poucas vezes a via. Abandono significava silêncio, o cri-cri dos grilos, o uivar dos cães à noite, o barulho das janelas que batiam com a força do vento. Abandono significava não ter acesso a luxos maiores do que um pão com manteiga ou um copo de água ou, vá lá, um iogurte de morango. Abandono era não ter mãe, não passear de carro ao domingo, não ter possibilidade de tomar banho todos os dias. Ninguém, és ninguém, ouvia, não podes beber sumo, não podes isto, nem aquilo. Perdi o direito de existir. Perguntar algo a alguém ainda é um terror. Começo com um “posso perguntar-lhe” quando outros começam logo com a questão. Pedir licença para existir, como se alguém me fosse recriminar ou dizer que não tenho direito a perguntar o que pergunto, a ser como sou ou como quero ser.