Caderno 2

Amadeu Baptista | Andreia C. Faria | Catarina Santiago Costa | César Rina | Daniel Francoy | Dirceu Villa | Duarte D. Braga | Emanuel Amorim | Fernando Guerreiro | Isabel Milhanas Machado | João Miguel Henriques | João Moita | José Manuel Teixeira da Silva | Luís Ene | Manuel A. Domingos | Miguel Cardoso | Nuno Brito | Patrícia Lino | Paulo Kellerman | Paulo Rodrigues Ferreira | Raquel Nobre Guerra | Rui Almeida | Samuel Filipe | Tatiana Faia | Victor Gonçalves | Victor Heringer | György Petri / João Miguel Henriques et al (trad.) | Nick Laird / Hugo Pinto Santos (trad.) | Salvatore Quasimodo / João Barcelos Coles (trad.) | Cassandra Jordão

Capa: João Alves Ferreira

Enfermaria 6, Lisboa, Junho de 2014, 124 pp.

6€

Uma versão impressa deste livro pode ser comprada na Fyodor Books ou enviando-nos a sua encomenda para enfermariaseis@gmail.com.

A Enfermaria 6 é uma plataforma editorial sem fins lucrativo. Todo o dinheiro resultante da venda dos exemplares será usado para financiar futuras publicações.

Risco de Falência

Sonja Valentina

Sonja Valentina

 

Já tinham terminado a refeição há algum tempo mas permanecem sentados à mesa, olhando silenciosamente para a televisão. O noticiário abrira com pormenores sobre um novo caso de corrupção envolvendo políticos e, logo de seguida, passara a antecipar e detalhar a forte possibilidade de duas ou três agências de rating descerem a notação de alguns bancos. Ouvem, indiferentes e apáticos, como se o que escutam nada tenha a ver com as suas vidas e apenas se mantenham aparentemente atentos porque não se lembram de nenhuma alternativa.

Então, por fim, ela levanta-se da mesa e leva os pratos cobertos de restos de salmão para a cozinha, cambaleando ligeiramente; ele deixa-se estar sentado durante uns segundos mas, de repente, acaba por se decidir a ir à casa de banho, onde lava as mãos cuidadosamente, até sentir que extinguiu o odor a casca de laranja. Quando ambos regressam à sala (quase em simultâneo, o que não deixa de ser peculiar: se a companhia do outro não é desejada, por que não aproveitaram a oportunidade para se refugiarem num qualquer recanto seguro da casa?), a televisão ainda fala de agências de rating e aumentos de juros e possibilidades de falências. Ele desliza para o sofá e deixa-se estar, imóvel e inerte, talvez pretendendo desligar-se do mundo (ou apenas da vida familiar), entrando numa espécie de hibernação protectora; ela, por seu lado, recolhe algumas migalhas acumuladas na mesa (migalhas dele, que ela nunca toca em pão), uma a uma, com excessiva e desnecessária concentração; e apanha, também, uma microscópica fibra de casca de laranja (dele), que caíra ao chão e fora inadvertidamente esmagada.

Quando passa junto da televisão (migalhas e casca de laranja bem presas na mão), diz sem o olhar:

– Espanta-me que nunca ninguém se tenha lembrado de criar uma agência de rating que se dedique a prever os riscos de falência dos casamentos. Que analise uma relação e diga: prevejo consideráveis riscos de incumprimento a curto prazo. Ou: na actual conjuntura, é altamente previsível que as expectativas se deteriorem.

Ele continua prostrado no sofá, estático e silencioso, respirando devagarinho, com os olhos fechados; mas acaba por sorrir timidamente, quase com gosto. E responde:

– Uma escala que meça o risco de falência dos casamentos? E o faça antes das pessoas casarem? Realmente, parece boa ideia. Na verdade, ter-nos-ia dado muito jeito, não achas?

Ela aproxima-se dele e estende a mão na direcção do seu rosto, como se o fosse acariciar; mas não lhe toca: limita-se a abrir a mão e deixar cair sobre o seu cabelo desgrenhado as migalhas e a casquinha de laranja que tinha recolhido. Ele abre os olhos mas não se mexe, olhando-a com alguma curiosidade, com alguma surpresa, com (alguma?) vontade de se indignar; e ela, quando percebe que ele nem se irá dar ao trabalho de sacudir as migalhas do cabelo, suspira em silêncio (um suspiro interior, simultaneamente secreto e ostensivo) e marcha para a cozinha, onde liga a máquina de lavar louça e fica à espera durante cinquenta minutos para de lá retirar dois pratos, quatro talheres e um copo; os mesmos que servirão para o jantar do dia seguinte, de todos os dias seguintes. E enquanto espera, lembra-se mais uma vez do lamento que a mãe repetia com frequência: o casamento é uma fábula.

 

Arquivo

sonja valentina

sonja valentina

- Se alguma vez escrevesse um livro, chamava-lhe “Arquivo”.
- Porquê?
- Porque um livro é precisamente isso, um arquivo. Um arquivo de ideias e pensamentos, de ilusões, de fantasias, de segredos, de disfarces, de medos e esperanças. Percebes? Como se fosse um legado, uma herança; como se fosse um testamento de sentimentos e emoções. Algo concreto que se deixa ao outro, para que ele use ou não. Uma dádiva. 
- Por acaso, não concordo com essa perspectiva.
- Não?
- Nem por isso. Penso que não gostaria que a minha herança para os outros fosse um arquivo. Um arquivo é sempre algo extático e definitivo, não achas? E um livro também, por acaso. Sabes que preferia deixar como legado? Um caderno em branco, um caderno vazio, um caderno novinho; um caderno, para que o outro o pudesse preencher como desejasse, construindo o seu próprio arquivo. Preferia deixar possibilidades e não arquivos. 

Caderno 1

Bruno Alves 
Carlos Alberto Machado
Catarina Barros
Catarina Costa
Fernando Guerreiro
Helena Bento
Hugo Milhanas Machado
Luís Ene
Margarida Vale de Gato
Maria Sousa
Paulo Kellerman
Paulo Rodrigues Ferreira
Pedro Bernardo Costa
Ricardo Domeneck
Samuel Filipe
Tatiana Faia
Samuel Beckett traduzido por Hugo Pinto Santos
Victor Gonçalves

Capa 
João Alves Ferreira

Enfermaria 6, Lisboa, março de 2014, 68 pp.
5€

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enfermariaseis@gmail.com

O corpo diz o que as palavras não conseguem (ou não querem ou não podem)

© sonja valentina

© sonja valentina

Finalmente, beijámo-nos. 

Há muito que havia trocas de olhares e de sorrisos, toques cúmplices e abraços demorados, conversas que apenas não duravam indefinidamente porque eram sempre interrompidas por alguém. Há muito que havia vontade. Há muito que o primeiro beijo era imaginado e antecipado, desejado, fantasiado. Mas apenas hoje aconteceu. 

E foi uma decepção. Quando nos separávamos, ainda sentia o sabor da sua saliva na minha boca; mas o que pensava era isto: será possível anular um beijo? Como voltar atrás, como retirar um beijo que demos a alguém?

Não sei o que esperava; mas julgo que sempre acreditei que o primeiro beijo que dou a alguém deverá ser mágico, deverá ser insuportavelmente intenso e transcendental; deverá fazer-me tremer, fazer-me voar, deverá fazer-me morrer e ressuscitar em simultâneo. Talvez seja excessivamente romântica, talvez seja excessivamente idiota; mas acredito que um primeiro beijo deverá ser tão forte que me faça sentir que, após esse beijo, nada mais será igual, algo mudará de forma subliminar mas inquestionável e irreversível. Contudo, nada disso aconteceu; o nosso primeiro beijo foi, simplesmente, murcho. Tão murcho que desejei apagá-lo, eliminá-lo; para que depois pudesse haver uma segunda tentativa de primeiro beijo? Ou para que o pudesse esquecer para sempre? Não importava, queria apenas retirar algo que dera.

O que me decepcionou mais foi a sua apatia; um beijo sem paixão, sem amor, sem desejo, sem voracidade, sem desespero, sem fome; apenas algo rotineiro e eficiente, algo necessário, algo agradável; na verdade, apenas mais um beijo (pior: apenas mais um toque). Foi isso que me decepcionou: perceber que, para ele, um beijo, cada beijo, não é algo único e irrepetível, mágico, sagrado. Perceber que, para ele, um beijo pode ser apenas uma rotina. Perceber que, para ele, o primeiro beijo pode ser tão indiferente e banal, tão mecanizado, como os beijos de um casal que vive junto há cinquenta anos e não se ama há quarenta. Porque foi algo semelhante a isso que senti: o seu beijo pareceu-me o de um velho que já deixara de acreditar, desejar, sentir.

E o que fazer depois de um beijo assim? O passado não se apaga, é impossível anulá-lo ou cancelá-lo. Contudo, o pior é a incapacidade de apagar a memória; afinal, o passado talvez seja inofensivo e inócuo, o que nos perturba e destabiliza é a memória. Mas como impedir que o passado, ou a memória desse passado, nos condicione o presente, nos faça infelizes agora? 

Recordava a forma mole como a sua língua acariciara a minha e perguntava-me se, apesar da completa inaptidão do seu beijo, aquele poderia ser o homem da minha vida. E se estivesse a permitir que um mau beijo condicionasse todo o meu futuro? Afinal, até ao momento em que os nossos lábios se tocaram acreditara (ou melhor, fantasiara) que aquele homem poderia ser o meu futuro. E se o beijo tivesse sido apenas um erro momentâneo, um equívoco passageiro? Já se sabe que, por vezes (muitas vezes), o corpo diz aquilo que as palavras são incapazes de transmitir; deveria, por isso, escutar o que o seu corpo me dissera. As suas palavras tinham-me comunicado desejo e amor (sim, amor), enquanto o seu corpo transmitira-me rotina e apatia (na verdade, o seu corpo gritara-me: “foge”). Mas será que os corpos não se enganam, por vezes? Será que apenas as palavras são ilusórias e ardilosas? E os corpos, não?

Porque deveremos sempre acreditar nos corpos? Será que eles nunca mentem?

O beijo aconteceu ontem ao fim do dia, no escritório. Separámo-nos e durante a noite, pela primeira vez em muito tempo, não trocámos mensagens. Dormi mal, acordei mal. Apeteceu-me fugir (o que é um desejo estúpido, já que a decepção e a dúvida me perseguiriam, pois estão dentro de mim, são parte de mim); mas, neste momento, aguardo que a porta do elevador abra; entrarei no escritório e ele estará lá, à minha espera. Não sei o que acontecerá; o que dirão os corpos? E as palavras que acabarão por ser ditas que significado verdadeiro terão? Não sei mesmo o que acontecerá, apenas que no princípio haverá um olhar.

E tenho medo.