Victor Gonçalves, Leituras 2021

Não é um best of, mas aproxima-se. Dou nota aqui dos livros que mais me marcaram neste ano, os que me fizeram desviar do caminho traçado, previsível, trazendo iluminações ou obscuridades (inocular os nossos frágeis desejos de ceticismo é de uma relevância inquestionável), compondo pequenos fragmentos de sentido e sem-sentido. São livros, essas coisas cada vez mais raras, apesar de nunca se ter publicado tanto. Faltam leitores, faltarão sempre, como faltam boas pessoas. É a vida.

François Noudelmann, Un tout autre Sartre, compõe para a Gallimard uma biografia de Jean-Paul Sartre, que contou com a cumplicidade da «filha adotiva» do escritor de L’Être et le néant, Arlette Elkaïm, falecida há pouco. Um «outro Sartre» compõe parcelas encobertas do «intelectual total» que se quis campeão da transparência, que «incessantemente comentou o seu percurso intelectual e o incarnou num modo de existência». Em articulação com o Sartre visível, Noudelmann mostra-nos o prazer de Sartre pela música (tocava piano), por férias hedonistas, pelo dolce far niente; um Sarte que desdenha o Sartre comprometido (engagé), preferindo a leveza das conversas banais, das viagens de lazer, das pantomimas ao piano. No final, prova-o a vastidão e profundidade da sua obra, venceu o Sartre engagé, mas aquele com quem gostaríamos de ir tomar um café não foi um epifenómeno, teve suficiente importância para, a par das anfetaminas e do álcool, equilibrar os campos de luz-sombra de uma vida incrivelmente exigente.

Os Factos, Autobiografia de um Romancista, de Philip Roth, é um livro para quem o costuma ler, não porque encontre nele revelações que decifrem melhor a sua ficção, mas porque a prologam, embora noutros termos. Chamar-lhe «Factos» é um exercício de ironia à la Roth. Devemos, pois, lê-lo como mais uma história, que no final é até criticada pelo seu famoso alter ego Zuckerman.

Livro no qual Vergílio julga encontrar muitos traços da sua subjetividade. O lugar central é uma aldeia que, depois da pujança vital temporária trazida pelas minas e pela «tecnificação», vai desaparecendo, morrendo, em paroxismo há até personagens que nem sequer chegam a entrar em cena, pré-mortas (como um filho que se espera em vão). Um livro feminista que ensina o ser-para-a-morte. Um elogio ao indizível, também, posto que é fundamental para a vida e a ficção. Uma aldeia, vento, neve, montanhas, pinheiros queimados na lareira, pobreza (de todo o tipo) e a energia elétrica que não substitui a falha geral que conduz ao cansaço e à morte, espiritual antes da física.

Uma história de vida e morte, de sentido e sem-sentido, de amor e ódio. Uma história na qual um professor de Liceu, em Évora, percebe que o feminino é maior do que ele. Em que percebe, também, que as suas ideias são estéreis, ou criam ervas daninhas. Uma cidade na qual «é um milagre criares relações», um Alentejo comido pelo sol, um professor dominado pela situação julgando, ingenuamente, que a palavra justa, o gesto justo, a ideia justa podem salvar o mundo. Há neste livro um pouco de Manhã Submersa e a antecipação de Alegria Breve.

Um ensaio que serve de introdução (longa, 200 pp) ao pequeno texto de Jean-Paul Sartre O Existencialismo é um Humanismo (1945, que Vergílio traduz). Uma forma de entrarmos no pensamento sartriano, começando pela fenomenologia e passando pelo «existencialismo» heideggeriano. Mas é também uma obra que expõe o Vergílio filósofo, ou melhor, aprendiz de filósofo.

Um livro diferente e surpreendente de Han. Acompanha os principais momentos de uma viagem por três primaveras, verões, outonos e invernos, nos quais trabalhou num jardim. Misturando teologia e estética, refere que «O belo tem de ser tratado cuidadosamente. É uma tarefa urgente, uma obrigação da humanidade, tratar com cuidado a terra, porque a terra é bela e, mais ainda, esplendorosa.» E isto é tanto mais premente quanto «Perdemos por completo a veneração da terra.» Esse trabalho, do corpo e do coração, deu-lhe o acesso ao amor: «Não tenho filhos, mas com o jardim vou aprendendo lentamente o que significa oferecer assistência, ter preocupação com os outros. O jardim tornou-se um lugar de amor.»

Cerca de 30 críticos escrevem sobre cerca de 40 autores e uma dúzia de temas. O mais recorrente versa sobre o sentido do «cânone», são quatro artigos (António M. Feijó, Anna M. Kloblucka, João R. Figueiredo e Miguel Tamen) que nos dão a pensar acerca da construção de um espaço dos eleitos. O cuidado gráfico, a revisão esmerada e, sobretudo, a qualidade dos textos tornam este livro obrigatório. À sua escrita presidiu o seguinte horizonte (de vontade e sentido): «Não é boa ideia lê-lo como um guia neutro para a história da literatura portuguesa, ou como uma comemoração política das suas maravilhas. Este não é um livro sobre o esplendor de Portugal, é um livro de crítica literária.»

Publicado em 1964, o ano em que Sartre recusa receber o prémio Nobel da Literatura. O livro que o resgata do relativo fracasso de Les Chemins de la liberté, conta-se, de modo relativamente autobiográfico (este olhar para o passado é paradoxal com a importância do prospetivo), até aos 12 anos, explicando-se mais do que descrevendo-se. Trata-se de tentar perceber como surgiu, foi surgindo, a vocação de escritor. Mas também de lançar um olhar implacável sobre as distorções morais com que percorreu a sua infância. Quando apareceu, o livro teve talvez as melhores críticas de tudo o que escreveu Sartre. Gabaram-lhe o estilo (breve, incisivo, musculado, ácido, perscrutador), a concretização da sua psicanálise existencial, a inventividade lírica, a recuperação da ideia de genealogia da moral.

Criança frágil e feia, mas intelectualmente precoce, órfão de pai, posto de parte pelos seus colegas de escola, mimado por uma mãe e um avô que o veneram como um dom celeste, conforma-se ao gosto dos grandes, porque gosta de elogios e aplausos. Foi nesse meio que, falsificando amiúde a virtude (retrata-se muitas vezes como um impostor), nasceu o escritor incansável que foi Sartre. É por isso que no final de Les mots escreve: «faço, farei livros; são necessários; isso serve para alguma coisa. A cultura não salva nada nem ninguém, ela nada justifica. Mas é um produto do homem: projeta-se e reconhece-se nela; somente este espelho crítico lhe oferece a sua imagem.»

Cumpre-me ler pelo menos um comentário grande a Nietzsche todos os anos. Desta feita, escolhi Pierre-André Taguieff, seduzido pelo subtítulo: «Por, com e contra Nietzsche». É que sob o nome de «Nietzsche» encontramos de tudo, desde o início do séc. XX foi sucessivamente escrutado, glosado, reinventado, treslido, adulado, detestado, celebrado, vilipendiado… E tantas vezes usado para causas que nunca foram as suas. Esta obra apresenta-se, assim, como um panorama criterioso das interpretações políticas e ideológicas de Nietzsche. Ao mesmo tempo que reflete sobre as múltiplas contradições internas à obra, bem como as suas ambiguidades e a extrema singularidade do autor. Pierre-André percorre o grande bazar dos nietzschianos e anti-nietzschianos, de Paul Valéry a Peter Sloterdijk, de Thomas Mann a Albert Camus, de Stefan Zweig a Michel Foucault, de Gorki a Althusser, Deleuze, Rosset… Pega também nos bolcheviques e na nova direita, nos fascistas italianos e no Maio 68, evocando intelectuais, políticos e universitários.

Vaca Preta (Bestiário/Snob, 2021) é um livro marcante de um cérebro metido num corpo há cerca de 27 anos (a idade é outra coisa). Claro que se foi rodeando de mundo, aposto que um mundo todo ele traduzível, ainda que imperfeitamente, em palavras, mas há uma irrecusável, irreprimível singularidade nas sinapses de Marcos Foz, uma fábrica de pensamentos que roça a loucura do adivinho sóbrio, esse que destapa as pulsões linguísticas que se escondem por trás dos discursos compostos pelos costumes e pela lógica. Mais tarde, ver-se-á que nenhuma verdade adâmica virá ao de cima, mas perceber-se-á o desconforto com que habitamos o mundo, traídos por uma pureza que estava ao nosso alcance e que nos abandonou porque nos fez conversar sobre banalidades vitais.

Entre a poesia e a prosa, o ensaio e a ficção, o referencial e o autorreferencial, Vaca Preta é um palimpsesto enorme e anormalmente complexo (a normalidade prefere quase sempre o liso). Mistura sons, imagens e palavras, estica os sentidos até ao limite do absurdo (que ainda é sentido, mas paralelo). Gosta de representar o nada, ou melhor, a nadificação, despojos de uma desarticulação precisa do racional. Percorre o corpo e a mente humanas, o corpo e a mente sociais com a liberdade da criança de Assim Falava Zaratustra. Esculpe tabus até fazer deles setas suicidas, um patchwork sobre a forma como nos fazemos à vida, inexperientes criaturas sobrealienadas. O narrador, F e Z compõem um fragmento de mundo observando a humanidade enquanto questionam, subtilmente, a exatidão do olhar que lançam sobre os outros e sobre si. Há sempre ângulos mortos, mas poucos os amam.

Tudo isto perfaz uma espécie de surrealismo pós-moderno (parece um pleonasmo, mas não é), tudo, ou quase, são linhas de fuga, versões do real, ou melhor, dos vários reais, uma imensa liberdade de composição, para lá do sentido tradicional que se outorga aos textos, à posição do autor e dos leitores. E se alguma crítica política (no sentido largo) há, está na obsessão com que continuamos a sonhar (que não faz pular nem avançar, é mais do campo dos narcóticos), por que raio embrulhamos o sem-sentido com peripécias que nos fazem crer na nossa boa consciência? Por que raio nos socorremos da imaginação (menos livre do que se julga) para saltar por cima da porcaria das ações humanas (que na grande maioria desembocam em lixo e comida barata)?

Escreve Marcos Foz (?) sobre o cardápio dos que não aguentam, não se aguentam, e pulam e julgam avançar: «Há quem reaja a esta promessa de mundo sem tecto escrevendo um romance de oitocentas páginas enquanto pontapeia a mãe subsidiária, há os que vão viajar pelo oriente, entre fotografias e haikus, há os que fazem voluntariado na Guiné, há os que organizam manifestações ecológicas, há os que arquitectam tratados para a nova religião que despontará com o despertar transmecânico, há os que colocam todas as esperanças nos filhos, há os que matam os filhos por piedade, há os que se refugiam no ginásio, há os que levam questionários de inclusão aos bairros problemáticos da periferia, há os que gostavam que isto andasse dois passos para trás, há os que investigam até onde podem ir no sadomasoquismo e os seus quinhentos utensílios.» (pp. 40-41)

Além disso, a edição é magnífica.

Livros de 2020 – Uma Lista

Natalia Ginzburg e os seus gatos

Natalia Ginzburg e os seus gatos

 

Comecemos com uma declaração do que esta lista não é: não é uma lista exaustiva de todos os livros que li em 2020 e também não é uma lista com aspirações a nomear os melhores livros que li em 2020. Embora mérito literário e preferência coincidam claramente na maior parte dos casos, não em todos. Passei várias horas de 2020 a ler coisas de mérito literário discutível, que, no entanto, me ajudaram a criar a minha própria bolha autista e a traçar a partir de dentro nexos de sentido. Aqui ficam alguns apontamentos sobre isso.

 

Brunetti. Já não me lembro bem o porquê do meu interesse inicial no comissário Brunetti, comissário de polícia em Veneza. Donna Leon é americana, viveu muitos anos em Veneza, tem uma obsessão por ópera, os seus livros são um sucesso de vendas na Alemanha e ela recusa-se a tê-los publicados em Itália, onde não quer ser uma celebridade. A partir de Abril, quando as regras do confinamento em Inglaterra se tornaram mais austeras, devo ter lido compulsivamente qualquer coisa como 15 dos cerca de 30 romances que compõem a série. Há uma máxima que os classicistas gostam de citar que diz que o género policial é de todos os géneros o mais obviamente herdeiro da tragédia grega, porque o seu objectivo é uma reflexão cívica sobre problemas que nos afetam enquanto corpo cívico. Ora, Donna Leon começou a publicar os seus romances sobre o comissário Brunetti na década de 90, numa altura em que o mundo era mais ou menos adoravelmente chato. Os primeiros romances parecem-me mais marcadamente interessados numa certa tradição do género. As suas preocupações temáticas têm a ver com o modo como a psicologia de certos crimes afecta diferentes classes sociais. À medida que os volumes vão avançando, há temas a que Donna Leon volta cada vez mais insistentemente, atribuindo preocupações que são assumidamente suas a diferentes personagens. Uma das mais insistentes de todas é a degradação ambiental que a actividade humana vai impondo aos diferentes ecossistemas em redor de Veneza, o que reflecte a sua preocupação com o contexto de catástrofe ambiental em que estamos a viver. Ler estes romances em curta sucessão expõe o lado formulaico e ao mesmo tempo profundamente idiossincrático do género policial. Há uma profunda empatia e inteligência emocional em Brunetti, algumas das melhores coisas acercas dos romances são as suas cuidadosas observações de outras personagens, o seu vício com a literatura clássica e a sua relação com Patta, o seu chefe siciliano profundamente incompetente, que ele manipula com cuidada cortesia e às vezes perversidade, e de longe, a relação de Brunetti com a sua mulher, Paola Falier, descendente da nobreza veneziana, de um mundo socialmente muito afastado do de Brunetti, mas de uma inteligência e de um pragmatismo que desarmam Brunetti e o leitor.

 

Dos livros que li destacaria três. O primeiro, Death at La Fenice, em que o ponto de partida é a morte de um maestro alemão em La Fenice. É, de toda a série, talvez o romance onde todas as convenções do género são mais óbvias. No entanto, parece-me que se tornou inesperadamente actual, é um romance sobre a má memória do fascismo em Itália, sobre homens com poder que pensam que podem escapar com impunidade a quase tudo e sobre os modos como vingança, expiação e justiça podem convergir, mas não se confundem. É também uma espécie de carta de amor ao mundo da ópera em Veneza. Uniform Justice é o décimo segundo romance na série, é sobre um aluno de um colégio militar que é encontrado enforcado no seu dormitório. É uma narrativa sobre uma perda cruel, sobre as responsabilidades das instituições para com os indivíduos, sobre o lado opressivo das pequenas sociedades que construímos e em que vivemos, microclimas de macroestruturas decadentes, é talvez de todos os romances o mais amargo, o que de resto não é muito comum na série, sobre a impunidade de uma classe privilegiada. O último romance que recomendaria é o vigésimo primeiro. Beastly Things é sobre a crueldade dos homens com os animais e como esta é fatalmente nociva para ambas as espécies. Por outro lado, nunca pensei que a morte de um veterinário que se comporta quase toda a vida de um modo absolutamente anti-heroico e medíocre, mas que por um momento tem um assomo de consciência que dá em revolta, me pudesse comover tanto.

 

Daniel Mendelsohn tem uma respeitada carreira como professor de clássicas, tradutor da mais completa edição de Kaváfis em inglês, crítico de literatura na New Yorker (este ensaio sobre os romances de Mary Renault é uma pequena obra-prima). Em 2013 publicou um livro chamado The Lost: The Search for Six out of Six Million. É um livro sobre a busca, com muito poucas pistas, pelos seus seis familiares que pereceram no Holocausto, dos quais a família que sobrevivera sabia muito pouco, à excepção de um avô destroçado pela culpa que se recusava a falar sobre isso. Não sendo exactamente uma novidade, parece-me que é um livro que importa por dois motivos, por um lado a sua leitura devia ser profilática no sentido em que revisita a intolerável desumanidade de um totalitarismo, a sua falta de gentileza para com a vida humana, uma forma de maldade revoltante. Em contraponto, The Lost demonstra o quão precioso é mesmo o mais pequeno momento da mais anónima vida.

 

The Pike: Gabriele d’Annunzio. Poet, Seducer and Preacher of War de Lucy Hughes-Hallet é também um livro de 2013, uma biografia do escritor italiano Gabriele d’Annunzio. A nossa tendência, a minha pelo menos, é a de nos interessarmos mais pelos poetas do lado do bem, aqueles que ao longo do tempo se mantiveram do lado das resistências e da desobediência civil por razões morais. Esta biografia de d’Annunzio é um estudo exaustivo do percurso de um poeta que teve um papel nefastamente activo na invenção, através da sua obra literária, da ideologia do fascismo. Como disse um dos seus tradutores ingleses, d’Annunzio não era um fascista, mas o fascismo era d’Annunziano.

 

A NYRB publicou em 2019 uma nova tradução inglesa do mais conhecido romance da grega Margarita Liberaki, Three Summers. Three Summers (que não é o título original em grego) foi originalmente publicado em 1946, com Gabriele d’Annunzio morto há mais de uma década e é um romance exactamente nos antípodas do mundo deste autor. Aliás, escrito durante a Segunda Guerra Mundial talvez haja uma condenação implícita desta no facto de se encontrar neste livro apenas uma muito oblíqua alusão a este acontecimento. Three Summers conta a história de três irmãs à medida que elas passam à idade adulta, ao longo de três verões num subúrbio de Atenas. É uma grande alegria este livro. Traz com ele um regresso a um mundo em estado de puro verão. Um mundo imerso em beleza, ternura, personagens singulares e que termina com um gesto absurdamente inesperado, libertador e revolucionário, que desarruma o mundo no melhor dos sentidos. Vale muito a pena ler e reler este romance.

 

Natalia Ginzburg é uma destas escritoras que escreve sobre famílias e sobre amizades como ninguém. Cerca de uma década separa Todos os Nossos Ontens de Léxico Familiar. Todos os Nossos Ontens traça o percurso de um grupo de amigos, vizinhos, durante a Segunda Guerra, é um livro escrito com uma doçura amarga, com um humor diante da crueldade que nos lembra que os outros são uma forma de alegria, que os amores e as amizades verdadeiros têm um lado perene que escapa à mediocridade e à rotina, que se mistura com a discordância, com tensões, com modos muito diferentes de ver o mundo e que é uma forma de harmonia que se vai tentando cultivar em face de um mundo que não faz grande sentido. Os amores perdidos de Natalia Ginzburg, Pavese, Leone Ginzburg, talvez estejam em Cenzo Rena e em Hipólito, mas regressam como eles mesmos em Léxico Familiar, que é sem dúvida um dos grandes romances autobiográficos do século XX. Há um pai déspota em Léxico Familiar, tal como há um em Todos os nossos ontens, e há um momento em Léxico Familiar em que se escreve sobre irmãos e em que se diz que aquele grupo de irmãos vive em cidades diferentes e países diferentes, não se escrevem muito e não falam uns com os outros frequentemente, mas quando se juntam basta que um profira uma dessas expressões do léxico familiar para que se reconheçam imediatamente. Talvez As pequenas virtudes seja um livro de crónicas no mesmo espectro destes dois livros, fala-se de sapatos, amigos perdidos, conjugalidade, sobre ensinar aos filhos a pequena virtude do desprezo pelo dinheiro, há sobretudo uma clarificação de intenções éticas, da função da literatura, em que se diz que, porque vivemos no mundo em que vivemos não podemos mentir aos nossos filhos, a função mais importante da literatura é chegar à verdade.

 

O que me leva ao último livro que li em 2020, Os Anos de Annie Ernaux, que é também ele uma espécie de livro de memórias, uma biografia impessoal de alguém que cresce em França no pós-guerra e se estende até aos nossos dias. O muito pessoal mistura-se com a política, com a história, a biografia do corpo com a biografia do corpo cívico.

 

Queria terminar com uma nota muito breve sobre dois livros de poemas lidos em 2020, Atlas da galega Alba Cid, que venceu em Espanha o prémio Miguel Hernández para Jovem Poesia, um belíssimo livro de estreia que é um atlas de lugares, memórias e migrações, de que publicámos na Enfermaria alguns excertos, e The Years, uma plaquete do poeta britânico Jamie McKendrick, em que se revisitam certos lugares e personagens (incluindo um encontro connosco mesmos) ao longo dos anos. A cada poema corresponde um desenho do autor e é uma breve e maravilhosa viagem, que se estende de Espanha a Liverpool, pela mão daquele que é um dos mais europeus dos poetas ingleses. Também aqui se publicaram alguns poemas.

Livros de 2020: José Pedro Moreira

“Outra lista dos melhores do ano?” dirá o senhor leitor. Bem, mais ou menos, mas nem por isso. As demais listas dos melhores livros do ano são destiladas por críticos sábios, que lêem todos os livros publicados nesse ano, e têm o discernimento para eleger o que merece ser salvo para a posteridade. As nossas listas são antes exercícios de contabilidade pessoal, que partilhamos entre nós e convosco. Este ano coube-me a mim o salvo de abertura. Cá fica a lista dos livros que mais gostei de ler em 2020.

Tom Bissell, Extra Lives: Why videogames matter (2010)

 Tom Bissell (1974) é um autor premiado, com livros sobre política, religião, cinema, um livro de viagens, um livro de contos, e uma série de artigos em revistas reputadas. Tom Bissell é também alguém que adora videojogos, que escreveu argumentos para videojogos, e que passou dois anos a fazer pouco mais do que jogar Grand Theft Auto IV e snifar cocaína, como conta neste ensaio no The Observer, que é também o texto que encerra Extra Lives. Uma defesa da relevância cultural e artística de videojogos; mas também uma série de crónicas sobre alguns dos seus jogos preferidos e sobre as experiências únicas que só videojogos proporcionam.

 

 Orlando Figes, The Europeans: Three Lives and the Making of a Cosmopolitan Culture (2020)

 Ivan Turgueniev, Pauline Viardot, uma das maiores cantoras de ópera do seu tempo, e amante de Turgueniev, e Louis Viardot, marido de Pauline, agente cultural e político, tradutor, memorialista, numa viagem espiritual que atravessa a Europa. Outras personagens nesta viagem: George Sand, Berlioz, Dickens, Wagner, Saint-Saëns, Gounod, Chopin, Flaubert, Massenet, Meyerbeer, Rossini, Liszt, Delacroix, Tolstoi, Dostoievski, e muitos mais. Um livro que prova que o único meio de locomoção civilizado é o comboio.

 A descoberta dos livros de Figes trouxe-me imensa alegria este ano. O seu conhecimento histórico é acompanhada por uma mestria narrativa capaz de evocar pessoas e lugares com enorme detalhe e precisão. Dele li também este ano Natasha’s Dance, uma história cultural da Rússia, e Whispers, que acompanha uma série de famílias ao longo da União Soviética, ambos livros excelentes.

 

 Fernando Guerreiro, Ventos Borrascosos (2020)

 Uma narrativa em verso em torno de Emily Brontë, um ensaio sobre o ofício poético que retoma Lucrécio, uma dramatização do devir da existência. Um dos livros de poesia mais estranhos escritos em português na última década.

 Nunca tive muita paciência para quem se queixa dos críticos em Portugal, sobretudo porque este nem sempre é um lamento desinteressado. Temos a crítica que merecemos. Ainda assim, é difícil não ficarmos escandalizados com o silêncio, quando somos confrontados com um livro verdadeiramente único e importante.

 

Sid Lowe, Fear and Loathing in La Liga: Barcelona vs Real Madrid (2013)

 Eu adoro futebol. A intensidade do meu amor pelo jogo tornou-se dolorosamente clara quando as ligas europeias foram interrompidas, e eu dei por mim, como o amante abandonado examina velhas cartas de amor, a ler livro atrás de livro sobre futebol. Livros que tinha na minha lista de leituras há anos mas para os quais nunca tinha achado tempo, como a autobiografia de Johan Cruyff, Inverting the Pyramid de Jonathan Wilson, uma história das evoluções tácticas, ou The Ball is Round de David Goldblatt, foram lidos este ano. Todos são bons livros (se bem que o de Jonathan Wilson custou um pouco a ler), mas o que mais prazer me deu foi Fear and Loathing in La Liga, de Sid Lowe, uma história da rivalidade entre Barcelona e Real Madrid, e, implicitamente, uma história dos dois clubes.

 Sid Lowe é um dos contribuidores do The Guardian, cuja secção de futebol reúne alguma da melhor prosa escrita sobre o jogo hoje em dia. As crónicas semanais de Barney Ronay, Jonathan Wilson, Jonathan Liew e do próprio Sid Lowe tornaram-se leitura obrigatória para mim. E recomendo também Football Weekly, o podcast de futebol do The Guardian, em que estes autores regularmente participam.

 

Edwin Morgan, Última Mensagem - 100 poemas de Edwin Morgan (seleção por João Concha e Ricardo Marques, tradução de Ricardo Marques)

 A Fiona, uma amiga de Edimburgo, anda a tentar convencer-me a ler Morgan há anos. Ela gosta mesmo de Morgan, inclusive conheceu-o e escreveu uma tese sobre ele. O seu evangelismo morganiano levou-a a emprestar-me alguns dos seus exemplares da obra de Morgan (autografados). Há anos que acumulam pó na estante. A minha falta começou a ser reparada este ano. Livros feitos por amigos são priorizados na minha lista de leitura, e este é um livro editado (excelentemente) por um amigo e traduzido (excelentemente) por outro. Duas conclusões: Morgan é um grande poeta e eu sou um idiota por não o ter lido mais cedo. Perdão, Fiona. Obrigado, João Concha e Ricardo Marques.

 

Timothy Snyder, The Road to Unfreedom (2018)

 Um estudo sobre as ideias e realidade histórica que formaram a Rússia de Putin, o centro do movimento anti-liberal moderno, que nos deu prendas encantadoras como Trump e Brexit.

Livros dos editores (II)

 

 

João Coles

Claire-Louise Bennett é uma escritora inglesa que vive em Galway e estreou-se na ficção em 2015 com Pond. Na verdade, já havia publicado ensaios e histórias em várias revistas irlandesas; Pond é o seu primeiro livro. E foi uma belíssima surpresa. Nã…

Claire-Louise Bennett é uma escritora inglesa que vive em Galway e estreou-se na ficção em 2015 com Pond. Na verdade, já havia publicado ensaios e histórias em várias revistas irlandesas; Pond é o seu primeiro livro. E foi uma belíssima surpresa. Não se trata de um romance nem de uma recolha de contos. Digamos uma recolha de histórias ou de episódios encadeados, como cada dia que despertamos forma uma história diferente, umas mais outras menos longas. Bennett fala-nos sobre os prazeres e desprazeres da vida solitária contados por uma mulher que vive longe da cidade, dos devaneios e da dispersão da mente enquanto cozinhamos ou cortamos as unhas dos pés ou quando estamos de papo para o ar ou estamos a ler um livro, da relação íntima com a casa e com os objectos que nela habitam, desta poética do espaço de que falava Bachelard e que muitas vezes nos é alheia: “[home as] a stone plant with cosmic roots, a kind of intimate conduit between the subterranean and the aerial” - quando entrevistada à The Paris Review (PR). O livro é sobretudo isto, um relato da existência da mente em solidão. A solidão que, explica ainda na entrevista à PR, traz atmosfera a uma obra de ficção; a atmosfera rodeia mais eficazmente uma voz solitária tal como a chama de uma só vela.

Foi o primeiro livro de poesia de Bukowski que li por inteiro. Li sempre poemas soltos como se os lesse das várias revistas aonde ele os mandara. A poesia do velho Buk é, por um lado, como a sua prosa, desconstrói tudo aquilo que a precede (para cri…

Foi o primeiro livro de poesia de Bukowski que li por inteiro. Li sempre poemas soltos como se os lesse das várias revistas aonde ele os mandara. A poesia do velho Buk é, por um lado, como a sua prosa, desconstrói tudo aquilo que a precede (para criar há que destruir primeiro a matéria prima), por outro, é aqui que o vemos no seu melhor. Continuamos no seu imaginário de L.A., a sua linguagem crua, o seu humor aguçado, todo o álcool derramado também, claro, mas vemos com maior clareza o que nos romances e nos contos acaba por se camuflar, ou seja, o Charles Bukowski que em sua casa lê “The Shower” para as câmaras de filmar em pouco menos de 2 minutos. A epígrafe da primeira parte do livro resume-o muito bem: “one more creature dizzy with love”.

Outra vez Bukowski. Foi um ano passado em sua companhia, de maneira que repeti-lo é inevitável. Na correspondência com Sheri Martinelli, e não ocorria com muitos, segundo o editor deste livro, Bukowski deixa cair a máscara e envolve-se em discussões…

Outra vez Bukowski. Foi um ano passado em sua companhia, de maneira que repeti-lo é inevitável. Na correspondência com Sheri Martinelli, e não ocorria com muitos, segundo o editor deste livro, Bukowski deixa cair a máscara e envolve-se em discussões intensas sobre arte e literatura e estética. Sim, entrevê-se nestas cartas uma espécie de crítico literário desconhecido escondido entre o beberrolas e o durão das ruas de Los Angeles, ofuscado por Henry Chinaski. Sheri Martinelli foi das primeiras pessoas a publicar a obra de Bukowski, e a sua revista a primeira a recenseá-la. Tudo isto não antes de a chumbar numa primeira abordagem com uma carta de rejeição muito singular na qual lhe dá conselhos gratuitos num tom condescendente, o que, claro, leva Bukowski a reagir tempestuosamente, defendendo a sua estética e o seu estilo, o seu meio de expressão que não obedecia a quaisquer regras a não ser as dele. É assim que começa este livro, com as duas cartas que criaram a centelha desta relação improvável entre estes dois extremos opostos e que se manteve viva durante sete anos.

José Pedro Moreira

Todos temos livros a que precisamos de regressar. Não são necessariamente os melhores livros que lemos, mas são os livros que conseguem verbalizar impressões e sentimentos que nos acompanham, mas aos quais temos dificuldade em dar forma. Não são tan…

Todos temos livros a que precisamos de regressar. Não são necessariamente os melhores livros que lemos, mas são os livros que conseguem verbalizar impressões e sentimentos que nos acompanham, mas aos quais temos dificuldade em dar forma. Não são tanto um porto de abrigo, antes uma cidade estrangeira onde nos sentimos surpreendentemente em casa. No início de 2017, o Brexit e a eleição de Trump anunciavam um mundo mais sujo, mais desigual e mais indecente. Talvez por isso tenha sentido a necessidade de reler Antigos Mestres. Um velho crítico de arte misantropo tenta não se matar depois da morte da sua companheira, a única pessoa que tornava a existência tolerável. Thomas Bernhard escolheu, como subtítulo, comédia.

De como a literatura pode mudar um homem, ou de como a literatura nos pode fazer homens. Com alguma intriga académica pelo meio. Recomendado pelo Paulo Rodrigues Ferreira. Não lhe poderia estar mais grato.

De como a literatura pode mudar um homem, ou de como a literatura nos pode fazer homens. Com alguma intriga académica pelo meio. Recomendado pelo Paulo Rodrigues Ferreira. Não lhe poderia estar mais grato.

O melhor escritor de humor português escreve sobre o humor. O que raio é, para que serve, como fazer rir. Pelo meio cita-se Shakespeare, Beckett, Camilo Castelo Branco, Sartre, Chesterton e George Foreman. Sim, é bastante divertido.

O melhor escritor de humor português escreve sobre o humor. O que raio é, para que serve, como fazer rir. Pelo meio cita-se Shakespeare, Beckett, Camilo Castelo Branco, Sartre, Chesterton e George Foreman. Sim, é bastante divertido.

Uma história da Filosofia Ocidental, desde a Grécia Antiga até ao Renascimento. Sem ser chato ou abstruso, sem intimidar o leitor com longas notas biográficas, mas sem esconder as lacunas nem tratar os leitores como idiotas. Gottlieb é erudito, clar…

Uma história da Filosofia Ocidental, desde a Grécia Antiga até ao Renascimento. Sem ser chato ou abstruso, sem intimidar o leitor com longas notas biográficas, mas sem esconder as lacunas nem tratar os leitores como idiotas. Gottlieb é erudito, claro, um guia sóbrio e com sentido de humor. The Dream of Enlightment, a continuação, fará certamente parte das minhas leituras de 2018.

As referências constantes a Bukowski na poesia do João Bosco da Silva e as excelentes traduções que o João Coles tem publicado na Enfermaria tornaram inevitável que o lesse mais este ano. O João Coles escreve sobre o livro em cima muito melhor do qu…

As referências constantes a Bukowski na poesia do João Bosco da Silva e as excelentes traduções que o João Coles tem publicado na Enfermaria tornaram inevitável que o lesse mais este ano. O João Coles escreve sobre o livro em cima muito melhor do que eu seria capaz. Basta-me dizer que Love is a dog from hell foi o meu livro de poesia favorito do ano.

Jason Schreier é um dos editores do site Kotaku. Inteligente, liberal e provocador, é também uma das bêtes noires do movimento Gamergate (uma ramificação do fenómeno Alt Right), e uma das vozes mais interessantes a falar sobre videojogos.  Apes…

Jason Schreier é um dos editores do site Kotaku. Inteligente, liberal e provocador, é também uma das bêtes noires do movimento Gamergate (uma ramificação do fenómeno Alt Right), e uma das vozes mais interessantes a falar sobre videojogos.  Apesar de muitos de nós passarmos umas quantas horas por semana a jogar videojogos, sabemos muito pouco de como são feitos. Blood, sweat and pixels acompanha o longo e quase sempre tortuoso processo de criação de dez jogos recentes. Schreier é um jornalista exímio, e cada capítulo está apoiado em horas e horas de entrevistas. É também um bom contador de histórias, que consegue transportar-nos para o meio do caos que é um projecto criativo que envolve centenas de pessoas, pressionadas por prazos e expectativas irrealistas. Há tanta peripécia que por vezes nos esquecemos que não estamos a ler um livro de contos. Dei por mim a encontrar pathos onde menos esperava: o capítulo sobre Stardew Valley, por exemplo, obra solitária de Eric Barone (também conhecido Concerned Ape), lê-se como uma história de obsessão, amor, tolerância e desejo irracional de criar algo único, e é difícil não sentir empatia pela figura.

Em termos de banda desenhada, o meu 2017 foi marcado por finalmente ter lido a totalidade dos volumes de Preacher. Preacher conta a história de Jesse Custer, um pastor que adquire poderes sobrenaturais, e parte numa roadtrip pela América fora, na co…

Em termos de banda desenhada, o meu 2017 foi marcado por finalmente ter lido a totalidade dos volumes de Preacher. Preacher conta a história de Jesse Custer, um pastor que adquire poderes sobrenaturais, e parte numa roadtrip pela América fora, na companhia da sua namorada e do seu amigo vampiro. Vão à procura de busca de deus – que parece ter deixado os céus e estar a fugir deles.

Sabia que era uma das colecções mais importantes dos anos 90, e parece ser impossível descrever os livros sem usar as expressões  “iconoclástico” e “ridiculamente violento”. Não são desadequadas, Preacher compraz-se em chocar os leitores, mas minimizam a elegância de como a obra aborda temas de amizade, amor e religião. Que uma meditação humanista sobre deus coexista com uma personagem chamada Arseface ou um vilão que parece um caralho andante sem se perder num riso pueril atesta a qualidade da escrita de Garth Ennis.

Tatiana Faia (continuação)

Elizabeth Costello de J. M. Coetzee. Coetzee é um dos meus escritores favoritos. Acho que se pode ler qualquer coisa dele de uma assentada. Não sendo imediatamente evidente como é que um romance sobre uma escritora de idade avançada, apologista de u…

Elizabeth Costello de J. M. Coetzee. Coetzee é um dos meus escritores favoritos. Acho que se pode ler qualquer coisa dele de uma assentada. Não sendo imediatamente evidente como é que um romance sobre uma escritora de idade avançada, apologista de um vegetarianismo radical, que num dado momento a leva a estabelecer uma comparação entre o abate de animais e o holocausto, termina num ensaio sobre as raízes clássicas e bizantinas do mundo em que vivemos, sobre a religião, sobre África, sobre Kafka como autor fundamental do nosso tempo, sobre o vazio da vida de escritor, que surge como uma profissão que exige um compromisso e uma honestidade de pendor quase espiritual, quase uma independência sobre-humana. Perturbador, profundo, impecavelmente bem escrito. Não há neste livro nada que não seja relevante para pensarmos o que seja viver eticamente. 

Aftermath. On Marriage  and Separation de Rachel Cusk. Há no princípio deste livro uma citação do Agamemnon de Ésquilo, daquele passo muito debatido por classicistas, em que se lê, Zeus has led us on to know,/ The Helmsman lays it down as law /…

Aftermath. On Marriage  and Separation de Rachel Cusk. Há no princípio deste livro uma citação do Agamemnon de Ésquilo, daquele passo muito debatido por classicistas, em que se lê, Zeus has led us on to know,/ The Helmsman lays it down as law / That we must suffer, suffer into truth. Uma das unidades sociais mais básicas do mundo em que vivemos continua a ser o casamento. Não há nada de escandaloso ou chocante neste livro de Rachel Cusk, ainda que o livro tenha sido violentamente atacado. Aftermath é sobretudo um ensaio sobre o violento colapso de uma ordem, sobre feridas e cicatrização. Como arrancar um dente. The last supper, Outline, A life’s work, Aftermath. De um modo quase discreto, capturando o que parecem ser as situações mais comuns que estruturam as vidas de mulheres, o parto, o casamento, trabalhos e férias de família, os livros de Rachel Cusk lembram-nos que há na literatura um poder testemunhal que nos ajuda a viver um pouco melhor.

Livros dos editores (I)

Três dos editores da Enfermaria 6 trazem aqui alguns dos livros preferidos de 2017.

A lista continuará na próxima semana.

 

Victor Gonçalves

O melhor ensaio sobre Nietzsche publicado, pelo menos, nos últimos 10 anos. Depois dos grandes comentadores do século XX (Martin Heidegger, Karl Löwith, Gilles Deleuze, Giorgio Colli, Arthur Danto, Michel Haar, Cur Paul Janz, Peter Sloterdijk, Jean …

O melhor ensaio sobre Nietzsche publicado, pelo menos, nos últimos 10 anos. Depois dos grandes comentadores do século XX (Martin Heidegger, Karl Löwith, Gilles Deleuze, Giorgio Colli, Arthur Danto, Michel Haar, Cur Paul Janz, Peter Sloterdijk, Jean Wahl, Walter Kaufmann, Wolfgang Müller-Lauter), Dorian Astor mostra uma inteligência hermenêutica e um conhecimento da obra nietzschiana capazes de renovar o interesse, sem fetichismos, pelo solitário de Sils Maria. A sua escrita alia clareza e profundidade, o melhor de dois mundos, pois. 

O "nosso" Modos de Escrever, cheio de autores elegantes, capazes de olhar, como Janus, para o passado e o futuro, de se distanciarem dos seus próprios gestos de escrita e segredarem-nos receitas infalíveis ou reflectirem e suspeitarem desta velha te…

O "nosso" Modos de Escrever, cheio de autores elegantes, capazes de olhar, como Janus, para o passado e o futuro, de se distanciarem dos seus próprios gestos de escrita e segredarem-nos receitas infalíveis ou reflectirem e suspeitarem desta velha tecnologia de comunicação. Que tanto serve para tecer emoções como para geometrizar o mundo. Traduzir, expor o interior do corpo, refazer as relações sociais, programar o desaparecimento, repensar a escrita, anotar partituras, listar as tarefas diárias, versejar palavras banais... De tantos modos de escrever fala (ou escreve) esta obra. 

Uma magnífica descoberta, um encontro que mudou a maneira como pensava a ficção, uma extraordinária mistura de jornalismo e... Mas sobretudo um olhar desassombrado sobre o ser humano, as misérias das suas expectivas e a imensa corrupção das convicçõ…

Uma magnífica descoberta, um encontro que mudou a maneira como pensava a ficção, uma extraordinária mistura de jornalismo e... Mas sobretudo um olhar desassombrado sobre o ser humano, as misérias das suas expectivas e a imensa corrupção das convicções. Como se pode a partir de uma frase ou de uma imagem contaminar sem remissão a beleza e a grandeza da vida temerária. Um livro de história e um livro de antropologia, deixando que se encaixem nesses dois universais as pequenas histórias cheias de euforia e de disforia, uma a seguir à outra. Imprescindível. 

Não sei se é, como diz a publicidade, um "livro de combate pela liberdade e pela dignidade humanas", parece-me mais um livro sobre as imperfeições pérfidas do ser humano. A queda da grande utopia absolutista (é o absoluto que apodrece o utópico) com…

Não sei se é, como diz a publicidade, um "livro de combate pela liberdade e pela dignidade humanas", parece-me mais um livro sobre as imperfeições pérfidas do ser humano. A queda da grande utopia absolutista (é o absoluto que apodrece o utópico) comunista, um igualitarismo (pelo menos para a grande maioria) imposto à lei da bala e da prisão. Despir homens e mulheres da sua pele cultural e olhar directamente para as estratégias mais elementares, amorais, de sobrevivência, já sem raiva ou alimentados pelo espírito de vingança, em puro para lá bem e mal. E depois, uma extraordinária desvalorização da vida em favor da marcha da história, um caminho visionário que alguns acharam por bem, caprichosamente, elevar a lei cósmica. Uma Teodiceia ao contrário. 

Paulo Rodrigues Ferreira

Ler El Pasado, do argentino Alan Pauls, é das mais belas experiências que um leitor de livros pode ter. Depois de treze anos juntos, Sofía e Rímini separam-se. Este acontecimento banal dá origem a uma profunda reflexão sobre o amor, sobre não se sab…

Ler El Pasado, do argentino Alan Pauls, é das mais belas experiências que um leitor de livros pode ter. Depois de treze anos juntos, Sofía e Rímini separam-se. Este acontecimento banal dá origem a uma profunda reflexão sobre o amor, sobre não se saber estar no mundo sem a pessoa amada, apesar de todas as zangas e defeitos. Quinhentas e tal páginas, longuíssimas frases, reflexões sobre a vida, o amor e a dor, tudo para dizer que Sofía e Rímini não se conseguem afastar. Por mais que se afastem, estarão para sempre juntos. E acabam juntos. Este é um livro para leitores a sério.

 Este conjunto de palestras permite compreender o pensamento de um autor que, não sendo Borges, é das criaturas mais fascinantes que a Argentina viu nascer. Cortázar não se limita a dar opiniões sobre o que gosta e o que não gosta na literatura…

 Este conjunto de palestras permite compreender o pensamento de um autor que, não sendo Borges, é das criaturas mais fascinantes que a Argentina viu nascer. Cortázar não se limita a dar opiniões sobre o que gosta e o que não gosta na literatura, lê e comenta atentamente os seus próprios contos. Explica, por exemplo, que lhe interessa o universo do “fantástico”, na medida em que o fantástico é, ao contrário do que possamos pensar, algo que tem como objectivo fazer pensar. Acompanhar o pensamento de Cortázar é uma forma de regressar aos seus contos, de relê-los, de vê-los a partir de outros pontos de vista. 

Ler Alberto Manguel é quase como não ler, ou melhor, é como ouvir, falar ininterruptamente sobre livros, sobre literatura, sobre aspectos mais corriqueiros que quem possui livros sente agudamente (as tristezas e alegrias de comprar livros, de arrumá…

Ler Alberto Manguel é quase como não ler, ou melhor, é como ouvir, falar ininterruptamente sobre livros, sobre literatura, sobre aspectos mais corriqueiros que quem possui livros sente agudamente (as tristezas e alegrias de comprar livros, de arrumá-los, de não ter mais espaço, por exemplo). Em Manguel passamos de Homero a Borges sem darmos pela passagem de duzentas páginas. 

Este foi um ano em que descobri que amo a literatura argentina, que os escritores argentinos que tenho lido vão todos beber a Borges e, consequentemente, apresentam uma profundidade intelectual e inteligência que não são assim tão usuais em tudo o r…

Este foi um ano em que descobri que amo a literatura argentina, que os escritores argentinos que tenho lido vão todos beber a Borges e, consequentemente, apresentam uma profundidade intelectual e inteligência que não são assim tão usuais em tudo o resto que tenho lido. Este livro é uma criação genial de Piglia, uma investigação de Emilio Renzi, conhecida personagem ficcional, sobre um tio intelectual a tender para o libertário, que largou uma mulher rica para fugir com uma mulher de má fama e viver no mais puro anonimato. 

Tatiana Faia

A Sport and a Pastime de James Salter, originalmente publicado em 1967, é uma breve novela. O narrador evoca o percurso de Philip Dean, um jovem americano que desistira da universidade. Dean muda-se para Paris, aí apaixona-se, para ceder depois à pr…

A Sport and a Pastime de James Salter, originalmente publicado em 1967, é uma breve novela. O narrador evoca o percurso de Philip Dean, um jovem americano que desistira da universidade. Dean muda-se para Paris, aí apaixona-se, para ceder depois à pressão de regressar à América, ao destino convencional e medíocre a que primeiro tentara escapar. A Sport and a Pastime tem uma segunda parte aparentemente repetitiva, seguimos Dean e Anne-Marie, a rapariga por quem ele se apaixona, de hotel de província em hotel de província, noite após noite, em círculo, até que quando chegamos às últimas páginas entendemos que A Sport and a Pastime é um romance sobre a natureza e a fragilidade da felicidade, do veneno de sucumbir a convenções, abdicar de sonhos, abdicar de nós próprios, uma espécie de carta de resistência, tendo por cenário a beleza das pequenas cidades provinciais de França, intacta, espécie de sinal ao alto da potência da vida.

Luc Sante é um jornalista nascido na Bélgica que emigrou na infância para Nova Iorque e se radicou em Paris na década de 80. Em Novembro de 2015 publicou um livro intitulado The Other Paris: An Illustrated Journey through a City’s Poor and Bohemian …

Luc Sante é um jornalista nascido na Bélgica que emigrou na infância para Nova Iorque e se radicou em Paris na década de 80. Em Novembro de 2015 publicou um livro intitulado The Other Paris: An Illustrated Journey through a City’s Poor and Bohemian Past que a Paris Review, na entrevista feita ao autor, definiu como colossalmente sórdido. É um livro sobre os bairros de Paris mais afastados da circunferência imediata do Quartier Latin e do Boulevard Saint Michel. É de alguma forma um guia ilustrado sobre a formação da identidade contemporânea de Paris, particularmente concentrado nos séculos XVIII e XIX e nos bairros periféricos. The Other Paris é povoado de flânerie, personagens bizarras, ruas e cafés onde se deram os encontros e os acontecimentos mais estranhos. Um livro indispensável, não só porque amar Paris é indispensável, mas porque cada ano merece pelo menos um belíssimo livro sórdido.

Autumn de Ali Smith, o primeiro romance inglês do pós-Brexit, o que quer que isso queira dizer. No centro de Autumn está a amizade entre Elizabeth e David, um alemão emigrado em Inglaterra que carrega com ele a memória de um século. Autumn lança um …

Autumn de Ali Smith, o primeiro romance inglês do pós-Brexit, o que quer que isso queira dizer. No centro de Autumn está a amizade entre Elizabeth e David, um alemão emigrado em Inglaterra que carrega com ele a memória de um século. Autumn lança um olhar crítico à precariedade de Inglaterra para pensar no valor da arte, da fotografia, da cultura em criar pontes entre as pessoas, em treinar a empatia. É um livro fundamental sobre a ligação entre actos de decência básica, ausência de preconceito, beleza e amizade. Neste país tão amado, que parece à superfície estar condenado a virar-se para dentro, há aqui um voraz olhar para fora, acto sem o qual nunca estaremos exatamente vivos. Redescobrimos ainda aqui a arte das colagens de Pauline Boty. 

Within the Walls de Giorgio Bassani é um dos volumes da edição completa do Romanzo di Ferrara, presentemente a ser editado pela Penguin, nas brilhantes traduções de Jamie McKendrick. Bassani podia levar anos até dar um conto relativamente breve por …

Within the Walls de Giorgio Bassani é um dos volumes da edição completa do Romanzo di Ferrara, presentemente a ser editado pela Penguin, nas brilhantes traduções de Jamie McKendrick. Bassani podia levar anos até dar um conto relativamente breve por terminado, num desses processos de escrita que são afinal o que a expressão “o poema contínuo” pretende definir, a noção de uma obra nunca acabada, que continua a trabalhar no autor muito depois do ponto de publicação. O título é uma alusão ao facto de todas as histórias se passarem dentro dos muros de Ferrara. Escritas no pós-guerra, quase todas as histórias são marcadas pela memória violenta desse período. A vida de uma cidade de província que é uma epítome da história da Europa, da história do mundo. Num dos contos lê-se: “The truth is that the places where you have wept, where you’ve suffered, where you’ve had to find the many inner resources to keep hoping and resisting, are the ones you grow fondest of.” Assim Ferrara para Bassani.