"As Abelhas Produzem Sol" de Nuno Brito

traduz tu Ajax ou deus pastoral
a minha sede em água
as linhas da minha vida em rios
da minha medula faz nascentes de ribeiros frescos
— põe dois pastores em cada lado e um guarda-rios
mais a sua família feliz e o doce lar em que habitam
e que eles velem a minha descida pelas montanhas —,
desço por ti, fertilizo-te a terra
dos meus joelhos faz barcos,
das rótulas as velas, dos ossos dos dedos: canoas, o tronco seco
e do meu sopro os que nela andem e que neles remem.

Que os aldeões vejam o rio engrossar o seu leito
na medida proporcional da sua sede
e na medida proporcional da sua sede abram poços,
traduz, pois, Ajax ou deus pastoral os meus olhos negros
em poços fundos, para que eles venham com os seus baldes
beber-me um pouco mais

(...)

As Abelhas Produzem Sol , de que aqui se reproduz um excerto, é o mais recente livro de Nuno Brito, colaborador assíduo aqui na Enfermaria 6. O livro sai sob a chancela da Editora Exclamação e será apresentado no dia 28 de Maio pelas 18.30 no Teatro Rivoli, no Porto. Aqui fica a sugestão.  

Três Poemas de "Amanhã Alguém Morre no Samba"

outros experimentos falharam
chorar e seguir com a língua o caminho da lágrima
ralar o cotovelo e seguir com a língua o caminho da gota de sangue
ejacular e seguir com a língua
seguir o fio de sol
feito os trevos do antigamente no jardim
aqui
desde tanto
uma rua vazia e japonesa
minha cabeça é pior que o diabo
pior que o diabo que enfio entre as tábuas
as tábuas
desde que tanto cheguei aqui
é o diabo
melhor que seja
digo
a cor que isso vai tomando
sei que estou viva porque me vejo nos olhos do diabo
sei que respiro
porque o tenho tomando meu hálito
sei nada dos meus medos
porque sua cabeça linda, vermelha, tríplice
guarda noturno sonâmbulo diário crepuscular
ninguém meu amorninguém como nós conhece o sol*
meu diabo
às barbas do meu diabo
suas orelhas amplas
suas marcas nas minhas paredes
nasci para ser umidade cor de concupiscência
pensei
me visto de alçapão e choro
mas estou pelada

mas estou calva
estou feia e fútil
basta
basta quando que sou o alçapão
sou possuída e inquilina
céus
eu sou o alçapão
espia:
o diabo é minha carne pênsil.

* Sebastião Alba

*** 

significar o osso da coisa queridinha
os enfeites da casa gritam comigo
ombreiras esquadrias agulhas gatinhos da china
decoram as margens do meu amor
o osso
me afundo na tua reminiscência
o osso e as antenas
gritam
como se tudo fosse o grande do tempo
as esquadrias dos óculos gatinhos da china
omoplatas de prata queridinha
o bafo da trilha
a carne da coisa
tão necessária insignificante
na estrutura superfície da aberração amor

***

queria sondar o excêntrico intocável através do sangue da fulaninha
queria procriar e queria trucidar com a pressa do passo
lembra?
andávamos
sem a nós nos encontrar
ai meu amor que não chega
ai a melancolia no fundo do prato, anjo  

aquieta essa boca
amanhã alguém morre no samba


Amanhã Alguém Morre no Samba de Carla Diacov, editado pela Douda Correria, foi apresentado ontem e inclui os três poemas que aqui se reproduzem. Aqui fica a recomendação do livro. Pedidos por aqui

A Macieira Dos Insones: E uma sugestão de livro

Disseram-me que arrancaram a macieira porque secou, também eu sequei e nunca ninguém 
Me conseguiu arrancar as raízes, mesmo que tenha sido muitas vezes estrangeiro em casa 
E preferir a solidão do granito e o desolamento das ruínas dos verões quando a cinza já 
Assentou à força da chuva, o lameiro tem tão pouco do que trago, parece mais pequeno 
Apesar de terem derrubado a cerca que o dividia, enterraram um poço, o cão já se tinha 
Lá afogado, de certeza também a capacidade de ser feliz com um bocado de pão caseiro 
Com tulicreme que a tia preparou, a inocência como o amor, cega, mas uma cegueira por 
Ausência, a cegueira de quem tem as mãos vazias e está cheio de sonhos, a cegueira 
De quem confia na vida como na mãe e é para sempre e capaz de tudo menos de traição,  
Cega para a maldade, com os sentidos livres e limpos para receber a felicidade, ou apenas 
Estar e ser, ignorando que se é, aquela macieira em cuja sombra me deitei e senti 
A novidade da erva seca nas costas como a primeira vez em que li Walt Whitman, frescura 
Viva que mais tarde se transformou no cheiro a mijo cristalizado das folhas amarelecidas 
Pela experiência e o tempo, sentir o mesmo de forma inversa ao sentir o aroma azedo 
Da cerveja estragada no fundo das garrafas quase vazias e a companhia pouco simpática 
De outras barbas, eu quase, sentado a consumir-me em copos de plástico, tremendo com as 
Chamas das velas ao vento das saudades e uma quase hipocrisia por falar sozinho com a 
Memória de quem, espero, me dê o adiamento e a força inata, já que nasci de pouco 
E para quase nada, para acabar numa noite de luar, longe disto tido, no lameiro 
Daquela macieira onde me arrancaram, hoje tenho amigos poetas, pouco me conheço, 
E tenho dias em que quando acordo, demoro horas a encontrar-me por entre os papéis 
Manchados pela chuva e pelo carvão do sofrimento adiado pelo medo de mais um 
Momento inútil e perdido, para sempre, ao lado do lugar onde esteve a macieira, para nunca 
E até sempre, numa garrafa de vinho bordeaux, lá para os lados de Django Reinhardt e dos tios 
De França, porque tantas vezes o que procuras é apenas o inesperado, como o sabor daqueles 
Gauloises à beira do rio da aldeia, de madrugada, com os pés cheios de vinho tinto e língua 
Destravada, pronta para confissões lançadas para a fogueira purificadora da felicidade.  

Turku 

30.04.2014


Aproveitamos para recomendar vivamente o mais recente livro de João Bosco da Silva, Trepanação de Jerónimo Bosch, publicado pela Mariposa Azual em Abril de 2015. Pedidos por aqui

A noiva do tradutor (um excerto)

A velha sorri-me, a palavra não me sai da cabeça, kartofler, maldição para tudo isto, porque é que não penso em Helena agora, neste instante, e sou perturbado por tanta estupidez, coisas inúteis, é de bradar aos céus, um suplício, nasci na época errada ou poderia ter sido uma figura da mitologia grega, um deus caído em desgraça, o salvador da humanidade condenado a eternamente sofrer diante do absurdo, uma gigantesca pedra que rolo, carrego às costas, tudo em mim quer explodir, tremo de frio, a água escorreu-me pelo pescoço, o chapéu no eléctrico, sabe-se lá onde estará agora, terei de averiguar isso.

– Mas é claro, tudo para agradar os meus hóspedes! Ah, isto não é um verdadeiro negócio, mas sim uma família, não há quem mais bem trate aqueles que acolhe sob o seu tecto.

Uma alma radiante a desta senhora Lucrécia, trata-nos como família, sem dúvida, acolhe pobres desamparados sob o seu tecto, desde que lhe paguem o devido a tempo e horas, não se lhe pode exigir mais do que isso, é certo, a velha afasta-se alguns passos e, com uma das chaves que traz presas num molho atado à larga cintura, abre uma gaveta, tem lá dentro dúzias de velas.

– Tente poupá-la, por favor, estão ao preço do ouro e já é a segunda que lhe dou esta semana.

– Bem sei, dona Lucrécia, mas tenho de trabalhar, um homem tem de ganhar a vida!

– Sim, essa sua ocupação é muito desagradável, consome-o. Nunca pensou em procurar outro trabalho, algum em que tenha de sair de casa, ficar num escritório todo o dia, numa loja, aí o patrão paga-lhe o ordenado e as velas!

– Quem sabe, dona Lucrécia, talvez um dia, tenho pensado nisso mas esta é a única coisa que sei realmente fazer, não sou forte de braços, a bronquite ataca-me muito, mas pode ser que na Primavera, depois das chuvas…

Dona Lucrécia sorri em aprovação, eu afasto-me lentamente enquanto falo, tenho já um pé no primeiro degrau, ela lança-me ainda palavras esbaforidas.

– O almoço será uma delícia, já o estou a preparar.

– Obrigado, dona Lucrécia. Diga-me, por favor: que horas são?

– São agora precisamente oito e meia.

– Muito obrigado, dona Lucrécia, é uma fonte de inesgotável sabedoria. Só uma última coisa…

A velha aproxima-se, eu debruço-me sobre o corrimão, estou curvado no segundo degrau, molho o tapete, todo o meu corpo escorre água, tirito de frio, não consigo evitá-lo, é mais forte do que eu, terei de consultar um especialista sobre estes fenómenos, terá de existir uma explicação, a gorda viúva estica o pescoço, aproximo o meu rosto, sinto-lhe o hálito dos pesados assados de domingo, ainda não os digeriu, a noite não foi suficiente, ela aguarda ansiosamente, eu grito-lhe ao ouvido.

Kartofler, kartofler, kartofler!

Dona Lucrécia olha para mim incrédula, não sabe o que dizer, o ouvido provavelmente retine ainda, sofreu sob o meu grito, que hei-de fazer, não controlo tudo o que se passa no mundo, o meu corpo faz parte dele, não há como o dominar por completo, nem sequer em parte, estou aliviado, sinto-me muito melhor, a maldita palavra não me saiu da cabeça, não recordo o que significa, porém, soltá-la bem alto parece ter ajudado, quebrou um feitiço que tinha sobre mim, hesito diante do rosto da velha, ela não fala, eu ainda menos, decido subir rapidamente as escadas e falar sobre o ombro.

– Obrigado, dona Lucrécia, Deus lhe pague! Foi um alívio, acredite-me. Vemo-nos ao almoço.

Subo as escadas a correr, a vela na mão, não olho para trás, a minha senhoria estará ainda pasmada ao fundo da escadaria, todos os degraus gemem sob os meus pés gelados, retiro a chave do bolso das calças, a minha mão continua uma pedra, os dedos mal se mexem, abro a porta, estou de volta ao meu quarto, tremo de frio, não tenho aquecimento, apenas uma cama, uma cadeira, um armário, uma secretária cheia de papéis e livros, um alguidar com água, já me basta de água, pouca luz entra no quarto, fecho a porta, atiro a chave e a vela para cima da cama, que frio está aqui dentro, um homem trabalha para isto, vive uma vida triste, miserável, atura imbecis o dia todo, nem um pouco de calor recebe ao voltar a casa, começo a despir-me, tiro uma toalha lavada do armário, seco o corpo, que frio, nunca mais aquecerei, talvez morra aqui, já sinto a pneumonia, sim, afecta-me, arderei de febre até à morte, dona Lucrécia não chamará o médico, tem medo, pode ser ela a pagar, não, daqui só saio num caixão, sinto vontade de tossir, a doença é galopante, fulminante, estou todo nu, só a toalha me protege, a chuva cai agora mais esparsamente, o céu aparenta querer clarear, sim, vê-se o sol romper entre as nuvens, estivesse eu na rua e talvez assim não fosse, o universo conjuga-se para me matar, não tenho sorte, o infortúnio persegue-me, em vez de nascer iluminado por uma estrela, o meu nascimento foi acompanhado de um corno, um grande corno de boi, retorcido, branco e negro na ponta, que absurdo, não sei em que penso, a palavra volta, o alívio foi temporário, será que ela se sente bem?, o mar estará revolto, ela nunca andou de navio, ainda tem tantos dias de viagem, meu Deus, morrerei aqui, tenho de me vestir, ninguém olha pela minha saúde, tenho o estômago vazio desde o jantar de ontem, nada comi na rua, sinto-me fraco, visto roupas secas e esfrego o cabelo com a toalha, meto-me na cama, tapo-me com os cobertores, pela janela entra a luz de um sol tímido.


A Noiva do Tradutor de João Reis estará disponível na primeira quinzena de Maio, sob a chancela da Companhia das Ilhas