A velha sorri-me, a palavra não me sai da cabeça, kartofler, maldição para tudo isto, porque é que não penso em Helena agora, neste instante, e sou perturbado por tanta estupidez, coisas inúteis, é de bradar aos céus, um suplício, nasci na época errada ou poderia ter sido uma figura da mitologia grega, um deus caído em desgraça, o salvador da humanidade condenado a eternamente sofrer diante do absurdo, uma gigantesca pedra que rolo, carrego às costas, tudo em mim quer explodir, tremo de frio, a água escorreu-me pelo pescoço, o chapéu no eléctrico, sabe-se lá onde estará agora, terei de averiguar isso.
– Mas é claro, tudo para agradar os meus hóspedes! Ah, isto não é um verdadeiro negócio, mas sim uma família, não há quem mais bem trate aqueles que acolhe sob o seu tecto.
Uma alma radiante a desta senhora Lucrécia, trata-nos como família, sem dúvida, acolhe pobres desamparados sob o seu tecto, desde que lhe paguem o devido a tempo e horas, não se lhe pode exigir mais do que isso, é certo, a velha afasta-se alguns passos e, com uma das chaves que traz presas num molho atado à larga cintura, abre uma gaveta, tem lá dentro dúzias de velas.
– Tente poupá-la, por favor, estão ao preço do ouro e já é a segunda que lhe dou esta semana.
– Bem sei, dona Lucrécia, mas tenho de trabalhar, um homem tem de ganhar a vida!
– Sim, essa sua ocupação é muito desagradável, consome-o. Nunca pensou em procurar outro trabalho, algum em que tenha de sair de casa, ficar num escritório todo o dia, numa loja, aí o patrão paga-lhe o ordenado e as velas!
– Quem sabe, dona Lucrécia, talvez um dia, tenho pensado nisso mas esta é a única coisa que sei realmente fazer, não sou forte de braços, a bronquite ataca-me muito, mas pode ser que na Primavera, depois das chuvas…
Dona Lucrécia sorri em aprovação, eu afasto-me lentamente enquanto falo, tenho já um pé no primeiro degrau, ela lança-me ainda palavras esbaforidas.
– O almoço será uma delícia, já o estou a preparar.
– Obrigado, dona Lucrécia. Diga-me, por favor: que horas são?
– São agora precisamente oito e meia.
– Muito obrigado, dona Lucrécia, é uma fonte de inesgotável sabedoria. Só uma última coisa…
A velha aproxima-se, eu debruço-me sobre o corrimão, estou curvado no segundo degrau, molho o tapete, todo o meu corpo escorre água, tirito de frio, não consigo evitá-lo, é mais forte do que eu, terei de consultar um especialista sobre estes fenómenos, terá de existir uma explicação, a gorda viúva estica o pescoço, aproximo o meu rosto, sinto-lhe o hálito dos pesados assados de domingo, ainda não os digeriu, a noite não foi suficiente, ela aguarda ansiosamente, eu grito-lhe ao ouvido.
– Kartofler, kartofler, kartofler!
Dona Lucrécia olha para mim incrédula, não sabe o que dizer, o ouvido provavelmente retine ainda, sofreu sob o meu grito, que hei-de fazer, não controlo tudo o que se passa no mundo, o meu corpo faz parte dele, não há como o dominar por completo, nem sequer em parte, estou aliviado, sinto-me muito melhor, a maldita palavra não me saiu da cabeça, não recordo o que significa, porém, soltá-la bem alto parece ter ajudado, quebrou um feitiço que tinha sobre mim, hesito diante do rosto da velha, ela não fala, eu ainda menos, decido subir rapidamente as escadas e falar sobre o ombro.
– Obrigado, dona Lucrécia, Deus lhe pague! Foi um alívio, acredite-me. Vemo-nos ao almoço.
Subo as escadas a correr, a vela na mão, não olho para trás, a minha senhoria estará ainda pasmada ao fundo da escadaria, todos os degraus gemem sob os meus pés gelados, retiro a chave do bolso das calças, a minha mão continua uma pedra, os dedos mal se mexem, abro a porta, estou de volta ao meu quarto, tremo de frio, não tenho aquecimento, apenas uma cama, uma cadeira, um armário, uma secretária cheia de papéis e livros, um alguidar com água, já me basta de água, pouca luz entra no quarto, fecho a porta, atiro a chave e a vela para cima da cama, que frio está aqui dentro, um homem trabalha para isto, vive uma vida triste, miserável, atura imbecis o dia todo, nem um pouco de calor recebe ao voltar a casa, começo a despir-me, tiro uma toalha lavada do armário, seco o corpo, que frio, nunca mais aquecerei, talvez morra aqui, já sinto a pneumonia, sim, afecta-me, arderei de febre até à morte, dona Lucrécia não chamará o médico, tem medo, pode ser ela a pagar, não, daqui só saio num caixão, sinto vontade de tossir, a doença é galopante, fulminante, estou todo nu, só a toalha me protege, a chuva cai agora mais esparsamente, o céu aparenta querer clarear, sim, vê-se o sol romper entre as nuvens, estivesse eu na rua e talvez assim não fosse, o universo conjuga-se para me matar, não tenho sorte, o infortúnio persegue-me, em vez de nascer iluminado por uma estrela, o meu nascimento foi acompanhado de um corno, um grande corno de boi, retorcido, branco e negro na ponta, que absurdo, não sei em que penso, a palavra volta, o alívio foi temporário, será que ela se sente bem?, o mar estará revolto, ela nunca andou de navio, ainda tem tantos dias de viagem, meu Deus, morrerei aqui, tenho de me vestir, ninguém olha pela minha saúde, tenho o estômago vazio desde o jantar de ontem, nada comi na rua, sinto-me fraco, visto roupas secas e esfrego o cabelo com a toalha, meto-me na cama, tapo-me com os cobertores, pela janela entra a luz de um sol tímido.