The wind

Apocalyptic  screams,  enraptured  visions  yelled  at  the  moving air,  they  pronounce  obscenities  and  biblical  quotes,  whores eternally damned wander the streets, are they crazy, drunkards or just regular people, not even they know it for sure, freaks all around  me,  pink,  purple and rainbow  hair falling  over  pierced faces,  an  old  man  talks  about  the  wind  in  French,  he  barely walks,  his  foe  never  lies  down  to  rest,  a  tattooed guy  has  the dog on the leash, man, your dog is picking some shit from the floor,  on  the  sidewalk  open  hands  mingled  with  restaurant tables, «un peu money, s'il vous plait», blonde women all legs getting out of erotic clubs, the peep shows are on sale, pop-rock music  in  French  is  the  main  theme,  but  they're  playing deathrock at the Dollorama store, the second hand cd-dvd-book establishment overwhelms you, but not so much as the no-name trendy shop where they offer you a glass of vodka that can also be  tap  water,  stuffed  animals  and  used  clothes  only  sold  at weekends, the sun coming down on the city, a sofa just left near your  building,  its  color  goes  nicely  with  the  grass,  the  cold enemy  relentlessly  blows  and  you  know  an  afternoon in Montreal has just gone with the fucking wind.

A noiva do tradutor (um excerto)

A velha sorri-me, a palavra não me sai da cabeça, kartofler, maldição para tudo isto, porque é que não penso em Helena agora, neste instante, e sou perturbado por tanta estupidez, coisas inúteis, é de bradar aos céus, um suplício, nasci na época errada ou poderia ter sido uma figura da mitologia grega, um deus caído em desgraça, o salvador da humanidade condenado a eternamente sofrer diante do absurdo, uma gigantesca pedra que rolo, carrego às costas, tudo em mim quer explodir, tremo de frio, a água escorreu-me pelo pescoço, o chapéu no eléctrico, sabe-se lá onde estará agora, terei de averiguar isso.

– Mas é claro, tudo para agradar os meus hóspedes! Ah, isto não é um verdadeiro negócio, mas sim uma família, não há quem mais bem trate aqueles que acolhe sob o seu tecto.

Uma alma radiante a desta senhora Lucrécia, trata-nos como família, sem dúvida, acolhe pobres desamparados sob o seu tecto, desde que lhe paguem o devido a tempo e horas, não se lhe pode exigir mais do que isso, é certo, a velha afasta-se alguns passos e, com uma das chaves que traz presas num molho atado à larga cintura, abre uma gaveta, tem lá dentro dúzias de velas.

– Tente poupá-la, por favor, estão ao preço do ouro e já é a segunda que lhe dou esta semana.

– Bem sei, dona Lucrécia, mas tenho de trabalhar, um homem tem de ganhar a vida!

– Sim, essa sua ocupação é muito desagradável, consome-o. Nunca pensou em procurar outro trabalho, algum em que tenha de sair de casa, ficar num escritório todo o dia, numa loja, aí o patrão paga-lhe o ordenado e as velas!

– Quem sabe, dona Lucrécia, talvez um dia, tenho pensado nisso mas esta é a única coisa que sei realmente fazer, não sou forte de braços, a bronquite ataca-me muito, mas pode ser que na Primavera, depois das chuvas…

Dona Lucrécia sorri em aprovação, eu afasto-me lentamente enquanto falo, tenho já um pé no primeiro degrau, ela lança-me ainda palavras esbaforidas.

– O almoço será uma delícia, já o estou a preparar.

– Obrigado, dona Lucrécia. Diga-me, por favor: que horas são?

– São agora precisamente oito e meia.

– Muito obrigado, dona Lucrécia, é uma fonte de inesgotável sabedoria. Só uma última coisa…

A velha aproxima-se, eu debruço-me sobre o corrimão, estou curvado no segundo degrau, molho o tapete, todo o meu corpo escorre água, tirito de frio, não consigo evitá-lo, é mais forte do que eu, terei de consultar um especialista sobre estes fenómenos, terá de existir uma explicação, a gorda viúva estica o pescoço, aproximo o meu rosto, sinto-lhe o hálito dos pesados assados de domingo, ainda não os digeriu, a noite não foi suficiente, ela aguarda ansiosamente, eu grito-lhe ao ouvido.

Kartofler, kartofler, kartofler!

Dona Lucrécia olha para mim incrédula, não sabe o que dizer, o ouvido provavelmente retine ainda, sofreu sob o meu grito, que hei-de fazer, não controlo tudo o que se passa no mundo, o meu corpo faz parte dele, não há como o dominar por completo, nem sequer em parte, estou aliviado, sinto-me muito melhor, a maldita palavra não me saiu da cabeça, não recordo o que significa, porém, soltá-la bem alto parece ter ajudado, quebrou um feitiço que tinha sobre mim, hesito diante do rosto da velha, ela não fala, eu ainda menos, decido subir rapidamente as escadas e falar sobre o ombro.

– Obrigado, dona Lucrécia, Deus lhe pague! Foi um alívio, acredite-me. Vemo-nos ao almoço.

Subo as escadas a correr, a vela na mão, não olho para trás, a minha senhoria estará ainda pasmada ao fundo da escadaria, todos os degraus gemem sob os meus pés gelados, retiro a chave do bolso das calças, a minha mão continua uma pedra, os dedos mal se mexem, abro a porta, estou de volta ao meu quarto, tremo de frio, não tenho aquecimento, apenas uma cama, uma cadeira, um armário, uma secretária cheia de papéis e livros, um alguidar com água, já me basta de água, pouca luz entra no quarto, fecho a porta, atiro a chave e a vela para cima da cama, que frio está aqui dentro, um homem trabalha para isto, vive uma vida triste, miserável, atura imbecis o dia todo, nem um pouco de calor recebe ao voltar a casa, começo a despir-me, tiro uma toalha lavada do armário, seco o corpo, que frio, nunca mais aquecerei, talvez morra aqui, já sinto a pneumonia, sim, afecta-me, arderei de febre até à morte, dona Lucrécia não chamará o médico, tem medo, pode ser ela a pagar, não, daqui só saio num caixão, sinto vontade de tossir, a doença é galopante, fulminante, estou todo nu, só a toalha me protege, a chuva cai agora mais esparsamente, o céu aparenta querer clarear, sim, vê-se o sol romper entre as nuvens, estivesse eu na rua e talvez assim não fosse, o universo conjuga-se para me matar, não tenho sorte, o infortúnio persegue-me, em vez de nascer iluminado por uma estrela, o meu nascimento foi acompanhado de um corno, um grande corno de boi, retorcido, branco e negro na ponta, que absurdo, não sei em que penso, a palavra volta, o alívio foi temporário, será que ela se sente bem?, o mar estará revolto, ela nunca andou de navio, ainda tem tantos dias de viagem, meu Deus, morrerei aqui, tenho de me vestir, ninguém olha pela minha saúde, tenho o estômago vazio desde o jantar de ontem, nada comi na rua, sinto-me fraco, visto roupas secas e esfrego o cabelo com a toalha, meto-me na cama, tapo-me com os cobertores, pela janela entra a luz de um sol tímido.


A Noiva do Tradutor de João Reis estará disponível na primeira quinzena de Maio, sob a chancela da Companhia das Ilhas

O livro de Jón e uma Língua que não era a sua

É um livro, mas são cartas, mais precisamente 28, escritas por Jón, personagem fictícia e real, à sua mulher Þórunn. Ambos separados por uma ilha, ela no norte, ele no sul, onde se refugiou numa gruta após ser acusado de assassinar o abade que era seu superior e simultaneamente marido da mulher com quem veio a casar. Jón, o pastor sem congregação perseguido por obscuros rumores e que se diz ter realizado um milagre ao desviar um rio de lava, é ainda um desconhecido que chega com o seu irmão a um local estranho, um homem que passa a ser visto com mais suspeita do que aquela que lhe mereceria apenas a deslocação para terras mais meridionais devido às suas ideias, às melhorias que introduz na gruta e nas terras que pertencem por direito à esposa e, sobretudo, aos seus planos optimistas para uma nova Islândia livre do jugo e do monopólio comercial dos invasores dinamarqueses, tema recorrente na literatura histórica islandesa, onde o veio nacionalista se funde com o orgulho de um povo. Rumores, ideias, planos: são estes últimos aquilo que mais partilha com Skúli, seu frequente visitante, também ele – como muitos neste livro – um homem de carne e osso antes de o ser no papel, o meirinho geral que deseja reinventar a Islândia e torná-la um país independente e exportador dos mais variados bens.

                  O livro de Jón é, na sua língua, um romance sobre Jón, e se o último é o mais irmão à originalidade que lhe compõe o título, o primeiro não lhe será menos fiel, pois este é um livro sobre e de Jón: ele é o narrador presente, o autor das cartas, é ele quem nos descreve a Islândia, os episódios bizarros, o clima, as viagens, as suas frustrações, desejos, crenças, ideias filosóficas, desilusões, enquanto somos leitores e, simultaneamente, Þórunn, essa mulher amada e abandonada num período de angústia, num país em que – no ano maldito de 1755 – a terra treme e a lava corre em rios.

Ófeigur Sigurðsson.jpg

A escrita de Jón, que é, por sua vez, também ele Ófeigur Sigurðsson, é um misto de crença nas ideologias e na religião transmitida de geração em geração e das luzes que se fazem sentir na Europa, tardiamente chegadas a uma ilha remota nos confins do mundo habitável; Jón não esconde essa dualidade na sua escrita, nas cartas que envia, feitas de frases longas, onde se usa e abusa da /barra/, composto por afirmações e interrogações longas, repletas de referências culturais islandesas e europeias que tornam difícil a vida ao tradutor de um livro que, com poucos anos de impressão, têm na linguagem o peso de mais de três séculos e a distância de um mar que o separa de um país marginal mas unido ao continente que ambos partilham, tornando o seu trabalho pesaroso, extenuante, envolvente, duros de meses sentados a secretárias dolorosas.

                  Felizmente, para o leitor português, O Livro de Jón será bem mais fácil e celeremente tragado em toda a sua beleza linguística e sumarento conteúdo e, certamente, lido em peças de mobiliário que unirão o conforto da leitura ao das costas…