Katerina Gógou (1940-1993) é uma actriz e poeta grega, autora de poemas violentamente políticos, intimamente ligados à geografia de Atenas, muitos deles passados no bairro de Exárchia, historicamente território de activismo da extrema esquerda, foco de resistência contra a ditadura dos coronéis. José Luís Costa diz no prefácio que é um dos bairros da Europa que terá maior concentração de livrarias por metro quadrado e isto é absolutamente verdade. Há também os editores de vão de escada, os bares, as tabernas de toda a espécie, os traficantes na praça central do bairro, o cinema ao ar livre em Valtetsiou, os pintores que nos vêm vender desenhos e postais quando paramos nos cafés, onde há conversa e conversa que nunca mais acaba. Há ainda uma colina que tem uma vista sobre Atenas que nos deixa sem fôlego, Strefí. E havia os emigrantes e os refugiados, mas este é o bairro onde recentemente o governo de Mitsotakis, um dos governos com uma das agendas mais sinistras da Europa hoje, levou a cabo a sua expulsão de edifícios devolutos onde, segundo a tradição em Exárchia, comunidades solidárias de integração começavam a florescer.
Foi neste bairro que Katerina Gógou viveu boa parte da vida. Os poemas de Gógou são poemas zangados que falam de activismo, pobreza, decadência, desemprego, da letargia inspirada pelos diferentes modos em que o nacionalismo se vai infiltrando de novo na vida dos gregos no período imediatamente a seguir à queda da ditadura, em 1974. Atravessando toda uma geografia da cidade, chegam a nós com uma energia furiosa que nunca desiste de nos interrogar:
Eu cá os meus amigos são pássaros pretos
que andam de balancé em terraços de casas prestes a desabar
Exárkhia Patissíon Metaxourguío Mets,
Fazem o que calha.
Vendem livros de receitas e enciclopédias porta-a-porta
constroem estradas e ligam desertos
intérpretes em cabarés da Zínonos
revolucionários profissionais
que foram apanhados e lhes baixaram as calças
agora tomam comprimidos e álcool para dormir
mas os pesadelos não deixam.
Eu cá as minhas amigas são estendais
em terraços de casas velhas
Exárkhia Victoria Kukaki Guizi
Neles prenderam vocês milhões de molas de ferro
as vossas culpas, decisões saídas de reuniões, vestidos emprestados
queimaduras de cigarros estranhas enxaquecas
silêncios ameaçadores vaginites
apaixonam-se por homossexuais
dê-esse-tês o período que ainda não veio
o telefone o telefone o telefone
vidros partidos a ambulância ninguém.
Fazem o que calha.
Os meus amigos não param de viajar
Porque vocês não lhes deixaram nesga para respirar
Todos os meus amigos pintam com tinta preta
porque lhes deram cabo do vermelho vocês
escrevem num idioma de palavras de ordem
que o vosso só serve para lamber botas.
Os meus amigos são pássaros pretos e estendais
nas vossas mãos. No vosso pescoço.
Os meus amigos.
Muitas coisas neste poema falam das consequências do horror deixado para trás por um regime autocrático acerca do qual se adivinha que não haverá uma reflexão histórica que não excluísse aqueles que foram vítimas da sua violência. Esta falta de reflexão histórica é de um modo ou outro persistente nas democracias da Europa do Sul. O poema fala então desse cliché que tristemente parece tornar os poemas mais úteis, no sentido de justificar a sua existência: fala daqueles cuja voz é marginalizada, ou se marginaliza como reacção à sua ostracização, os que foram torturados e abusados, a quem se fez constantemente sentir que ficaram sem escolhas. E chega ao fim da sua sequência lógica com um peso ameaçador e quase metafísico que lembra a lucidez da loucura dos finais das tragédias de Eurípides, fala de como estas pessoas não desaparecem e se tornam a má consciência de novas ordens sociais. E enquanto não insistirmos em falar sobre isto nas nossas sociedades democráticas continuaremos a ser facilmente polarizáveis por mensagens populistas. E o que a polarização mascara e ajuda a perpetuar são formas de alienação social e desigualdade. Não é preciso ser muito inteligente para dizer que o preço a pagar por isso são sociedades mais instáveis, democracias mais frágeis, lugares onde não se vive bem.
A cabeça de Katerina Gógou prestes a desfazer-se em mil pedaços faz-me pensar noutra cabeça de poeta, a de Apollinaire. Não é raro perfis dessa cabeça aparecerem nas capas dos seus livros. Um desses perfis aparece por exemplo numa cópia de Calligrammes, onde um dos meus versos favoritos diz que a beleza de estar vivo ultrapassa em muito a tristeza de ter de morrer. A cabeça de Apollinaire foi ferida por um estilhaço em 1916, durante a Primeira Guerra. A ligadura que tapa a ferida da trepanação não tem nada em comum com uma ligadura que aparece num poema de Kaváfis, escrito em Alexandria três anos mais tarde, sobre alguém que recebe a visita de um amante que aparece com um ombro ferido e ligado, uma ferida que se volta a abrir quando ele tenta tirar da estante algumas fotografias.
He said he’d hurt himself against a wall or had fallen down.
But there was probably some other reason
for the wounded, the bandaged shoulder.
Because of a rather abrupt gesture,
as he reached for a shelf to bring down
some photographs he wanted to look at,
the bandage came undone and a little blood ran.
(tradução de E. Keeley e P. Sherrard, poema completo aqui)
Este poema de Kaváfis termina como muitos dos seus poemas acabam, numa reminiscência erótica vista à distância de um passado que fica longe. Há, no entanto, aquilo que o poema não esclarece, que é a origem daquela ferida, o que talvez deixe os leitores de repente olhar de relance para um mundo de gente que viveu perigosamente, à margem, até para lá da marginalidade obviamente imposta por encontros homossexuais clandestinos numa cidade de periferia na viragem no primeiro quartel do século XX. Nada sabemos da relação de Kaváfis com esse mundo. O vermelho desse sangue, por outro lado, não é o mesmo vermelho da tinta com que os amigos de Gógou não podem escrever. No entanto, a marginalidade que ambos supõem tem qualquer coisa em comum. Apollinaire sabia qualquer coisa de marginalidade, pelo menos em parte porque foi em tempos interrogado por uma tentativa de roubo da Mona Lisa. O facto de ele ser estrangeiro parece que teve qualquer coisa a ver com isso.
A última vez que parti a cabeça foi em Madrid. Abriu-se um golpe grande até à nuca, que não parava de sangrar, e a princípio não consegui parar de rir porque achei que seria engraçado poder morrer de outra coisa qualquer quando estávamos todos obcecados com a pandemia. Na manhã seguinte, uma amiga viu o corte, desinfectou-o, pôs-lhe um penso. Estou a pensar nos meus amigos que não param de viajar. O que é que a marginalidade dos poemas difíceis, escritos por pessoas marginais, aquela que é o oposto da retórica, tem em comum com a resistência à letargia e à indiferença?
Oxford, 24 de Outubro de 2021