"Produzo poesia, uma mercadoria inconsumível", Pier Paolo Pasolini

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Tradução: João Coles

Esta entrevista reproduz um trecho da intervenção de Pasolini na transmissão de um episódio do programa de Enzo Biagi “Terza B facciamo l'appello”, que deveria ter ido para o ar em Julho de 1971. Foi, contudo, suspenso graças a um processo judiciário que implicava Pasolini na qualidade de director responsável de “Luta Continua” (“instigação à desobediência” e “propaganda antinacional”). O episódio foi transmitido quatro anos mais tarde, no dia 3 de Novembro de 1975, no dia após o seu assassinato.

Entrevista:

O senhor escreveu: "No plano existencial eu sou um contestador global. A minha desesperada desconfiança em todas as sociedades históricas leva-me a uma forma de anarquia apocalíptica". Com que mundo sonha?

Durante um tempo, quando era jovem, acreditei na revolução como acreditam os jovens de hoje em dia. Hoje em dia acredito um bocado menos. Sou, neste momento, apocalíptico. Vejo defronte de mim um mundo doloroso, cada vez mais vil. Não tenho esperanças; portanto não esboço sequer um mundo futuro.


Quer parecer-me que já não acredita nos partidos.

Não. Se me diz que já não acredito nos partidos está a chamar-me qualunquista; eu, pelo contrário, não sou um qualunquista. Inclino-me mais para uma forma anárquica do que para uma escolha ideológica de algum partido, mas não significa que não acredite nos partidos.


Porque é que defende que a burguesia está a triunfar?

A burguesia está a triunfar porquanto a sociedade neocapitalista é a verdadeira revolução da burguesia. A civilização do consumo é a verdadeira revolução da burguesia. E não vejo outra alternativa, porque também no mundo soviético, na verdade, a característica do homem não é tanto a de ter feito a revolução e de a viver, mas a de ser um consumista. A revolução industrial nivela o mundo inteiro.


O senhor bate-se contra a hipocrisia, sempre. Quais os tabus que destruiria: as prevenções no sexo, o escapulir-se às realidades mais cruas, a falta de sinceridade nas relações sociais?

Dizia isto até dez anos atrás. Hoje já não digo estas coisas porque não acredito nelas. A palavra “esperança” foi apagada do meu vocabulário. Portanto, continuo a lutar por verdades parciais, de momento a momento, de hora em hora, de mês a mês, mas não perspectivo programas a longo prazo por já não acreditar nisso.


Já não tem esperança?

Não.


Esta sociedade que o senhor não ama deu-lhe, no fundo, sucesso e notoriedade...

O sucesso não é nada. O sucesso é a outra face da perseguição. E o sucesso é uma coisa péssima para um homem. Pode exaltar naquele momento, pode dar algumas satisfações e certas vaidades, mas na verdade, mal alcançado, compreende-se que é algo péssimo. Por exemplo, ter encontrado os meus amigos aqui, na televisão, não é bonito. Felizmente conseguimos ir além dos microfones e do vídeo e reconstruímos algo real e sincero; mas como posição é péssima e falsa.


Porquê? O que vê de tão anormal?

Porque a televisão é um meio de massa, que não faz senão alienar-nos.


Porém, fora os queijos e o resto, este meio leva a casa as suas palavras. Estamos todos a discutir com grande liberdade, sem qualquer inibição.

Não, não é verdade.


Sim, é verdade. Pode dizer tudo o que quiser.

Não, não posso dizer tudo o que quiser.


Pois diga.

Não, não posso, porque seria acusado de vilipêndio pelo código fascista italiano. Na verdade, não posso dizer tudo. E, objectivamente, perante a ingenuidade e desprevenção de alguns espectadores, eu próprio não quero dizer determinadas coisas. Mas posto isto de parte, é o meio de massa em si: a partir do momento em que alguém nos ouve desde um vídeo estabelece-se entre nós uma relação de inferior a superior, que é uma relação assustadoramente antidemocrática.


Julgo que em alguns casos também possa ser uma relação de igualdade: porque é que o não pode ser?

Alguns espectadores, por privilégio social, podem ser culturalmente semelhantes. Mas normalmente as palavras que caem do vídeo caem sempre de cima, até as mais democráticas, mesmo as mais sinceras. O conjunto da “coisa vista” em vídeo adquire sempre um ar autoritário, fatalmente, porque nos é sempre dada como uma cátedra. Falar desde o vídeo é falar sempre ex cathedra, mesmo quando isto é mascarado de democraticidade.


Foi, há muitos anos atrás, por Ragazzi di vita, um dos primeiros escritores italianos chamados a comparecer em tribunal sob a acusação de obscenidade: como encara alguns dos escritores eróticos de hoje e este alastramento do erotismo no cinema, nas livrarias e nas bancas?

Para mim, o erotismo na vida é uma coisa belíssima, mesmo na arte: é um elemento que tem direito de cidadania numa obra como qualquer outro. O importante é que não seja vulgar; mas por vulgaridade não pressuponho o que se entende geralmente, mas sim uma disposição racista ao observar o objecto do eros. Por exemplo, a mulher nos filmes ou nas bandas-desenhadas eróticas é vista de maneira racista como um ser inferior, logo é vista vulgarmente. Ora, neste caso o eros é puramente algo comercial, vulgar.


Como é que um marxista como o senhor extrai com tanta frequência inspiração de temas vindos do Evangelho ou dos testemunhos dos apóstolos de Cristo?

Obviamente que o meu olhar para as coisas do mundo, para os objectos, é um olhar natural, não laico: extraio as coisas como se fossem miraculosas. Cada objecto é para mim miraculoso: tenho uma visão – sempre de maneira informe, digamos assim – não confessional, em certa medida religiosa, do mundo. Eis porque dou uma investidura desta maneira de ver as coisas mesmo às minhas obras.


O Evangelho consola-o?

Não busco consolações. Busco de forma humana, de quando em vez, alguma pequena alegria, alguma pequena satisfação, mas as consolações são sempre retóricas, insinceras, irreais.. Disse o Evangelho de Cristo? Não, neste caso excluo completamente a palavra “consolação”: para mim, o Evangelho é uma mui grande obra intelectual, uma grande obra de reflexão que não consola: que preenche, que integra, que regenera... mas a consolação, que faço eu com a consolação? “Consolação” é uma palavra como “esperança”.


De acordo consigo, os intelectuais italianos comprometem-se demasiado: falemos de nomes, citemos casos...

O compromisso pode resumir-se a uma só questão: a de aceitar acriticamente – pois se fosse crítico, poder-se-ia admitir, aliás, creio que seria inevitável – a integração.


Tão-pouco a aceita?

Sim, mas de modo crítico (como vê, premuni-me). Isto é, claro que não posso não aceitá-la: tenho de ser consumista à força, porque também eu tenho de me vestir, tenho de viver; não só mas também tenho de escrever ou fazer filmes e, por isso, tenho de ter editores e produtores...


Portanto, também produz para o consumo.

A minha produção consiste em criticar a sociedade que num certo sentido consente, pelo menos por agora, que eu de algum modo produza.


A sociedade sempre amou imensamente quem produzia dizendo não amá-la.

Sim, é verdade. Pode ser que as senhoras da boa burguesia gostem, num certo sentido, de ser alvos. A sociedade procura assimilar, integrar, claro: é uma operação que tem de ser feita para se defender. Mas nem sempre consegue e às vezes há operações de rejeição. Tanto mais que não podemos falar de poesia como de mercadoria: eu produzo, mas não produzo uma mercadoria que na realidade seja consumável, e, portanto, cria-se uma relação entre mim e os consumidores. Imagine que a certa altura, na Lombardia, chega um sujeito que inventa um tipo de sapatos que não nunca se consumirá, e que seja uma indústria milanesa a produzir estes sapatos: pense na revolução que ocorreria na Valle Padana, pelo menos no sector do calçado. Eu produzo uma mercadoria, a poesia, que é inconsumível: morrerei eu, morrerá o meu editor, morremos todos nós, morrerá a nossa sociedade, morrerá o capitalismo, mas a poesia permanecerá inconsumpta.



Produco poesia, una merce inconsumabile

Pier Paolo Pasolini


Lei ha scritto: "Sul piano esistenziale io sono un contestatore globale. La mia disperata sfiducia in tutte le società storiche mi porta a una forma di anarchia apocalittica". Che mondo sogna?

Per un certo tempo, da ragazzo, ho creduto nella rivoluzione come ci credono i ragazzi di adesso. Adesso comincio a crederci un po’ meno. Sono, in questo momento, apocalittico. Vedo di fronte a me un mondo doloroso, sempre più brutto. Non ho speranze. Quindi non mi disegno nemmeno un mondo futuro.


Mi pare che lei non creda più ai partiti.

No. Se lei mi dice che non credo più ai partiti mi dà del qualunquista, invece io non sono qualunquista. Tendo più verso una forma anarchica che verso una scelta ideologica di qualche partito, ma non è che non creda ai partiti.


Perché lei sostiene che la borghesia sta trionfando?

La borghesia sta trionfando in quanto la società neocapitalistica è la vera rivoluzione della borghesia. La civiltà dei consumi è la vera rivoluzione della borghesia. E non vedo altre alternative, perché anche nel mondo sovietico, in realtà, la caratteristica dell’uomo non è tanto quella di aver fatto la rivoluzione e di viverla, ma quella di essere un consumista. La rivoluzione industriale livella tutto il mondo.


Lei si batte contro l’ipocrisia, sempre. Quali sono i tabù che lei distruggerebbe: le prevenzioni sul sesso, lo sfuggire alle realtà più crude, la mancanza di sincerità nei rapporti sociali?

Mah, questo l’ho detto fino a dieci anni fa. Adesso non dico più queste cose perché non ci credo. La parola "speranza" è cancellata dal mio vocabolario. Quindi continuo a lottare per verità parziali, momento per momento, ora per ora, mese per mese, ma non mi pongo programmi a lunga scadenza perché non ci credo più.


Lei non ha speranze?

No.


Questa società che lei non ama in fondo le ha dato il successo, la notorietà…

Il successo non è niente. Il successo è l’altra faccia della persecuzione. E poi il successo è sempre una cosa brutta per un uomo. Può esaltare, al momento, può dare delle piccole soddisfazioni a certe vanità, ma in realtà, appena ottenuto, si capisce che è una cosa brutta. Per esempio, il fatto di aver trovato i miei amici qui, alla televisione, non è bello. Per fortuna noi siamo riusciti ad andare al di là dei microfoni e del video, e a ricostruire qualcosa di reale e di sincero; ma come posizione è brutta, è falsa.


Perché? Che cosa ci trova di così anormale?

Perché la televisione è un medium di massa, che non può che alienarci.


Ma oltre ai formaggini e al resto, questo mezzo porta in casa adesso anche le sue parole. Noi stiamo discutendo tutti con grande libertà, senza alcuna inibizione.

No, non è vero.


Sì, è vero. Lei può dire tutto quello che vuole.

No, non posso dire tutto quello che voglio.


Lo dica.

No, non potrei, perché sarei accusato di vilipendio dal codice fascista italiano. In realtà non posso dire tutto. E poi, oggettivamente, di fronte all’ingenuità o alla sprovvedutezza di certi spettatori, io stesso non vorrei dire certe cose. Ma a parte questo, è il medium di massa in sé: nel momento in cui qualcuno ci ascolta dal video ha verso di noi un rapporto da inferiore a superiore, che è un rapporto spaventosamente antidemocratico.


Io penso che in certi casi sia anche un rapporto alla pari: perché non potrebbe esserlo?

Alcuni spettatori, per privilegio sociale, possono esserci culturalmente pari... Ma in genere le parole che cadono dal video cadono sempre dall’alto, anche le più democratiche, anche le più sincere. L’insieme della "cosa vista" sul video acquista sempre un’aria autoritaria, fatalmente, perché viene sempre data come una cattedra. Il parlare dal video è sempre parlare ex cathedra, anche quando questo è mascherato da democraticità.


Lei è stato, molti anni fa, per Ragazzi di vita, uno dei primi scrittori italiani chiamati a comparire in tribunale sotto l’accusa di oscenità: a distanza di tempo, come giudica certi scrittori erotici di oggi e questo dilagare dell’erotismo nel cinema, nelle librerie e nelle edicole?

Mah, per me l’erotismo nella vita è una cosa bellissima, e anche nell’arte: è un elemento che ha diritto di cittadinanza in un’opera come qualsiasi altro. L’importante è che non sia volgare; ma per volgarità non intendo quel che si intende generalmente, ma una disposizione razzistica nell’osservare l’oggetto dell’eros. Ad esempio, la donna nei film o nei fumetti erotici è vista razzisticamente come un essere inferiore, quindi è vista volgarmente. Allora, in questo caso, l’eros è puramente una cosa commerciale, volgare.


Come mai un marxista come lei trae tanto spesso ispirazione dai soggetti che escono dal Vangelo o dalle testimonianze dei seguaci di Cristo?

Evidentemente il mio sguardo verso le cose del mondo, verso gli oggetti, è uno sguardo non naturale, non laico: tratto le cose un po’ come miracolose. Ogni oggetto per me è miracoloso: ho una visione – in maniera sempre informe, diciamo così – non confessionale, in un certo qual modo religiosa, del mondo. Ecco perché investo di questo modo di vedere le cose anche le mie opere.


Il Vangelo la consola?

Mah, non cerco consolazioni. Cerco umanamente, ogni tanto, qualche piccola gioia, qualche piccola soddisfazione, ma le consolazioni sono sempre retoriche, insincere, irreali… Lei dice il Vangelo di Cristo? No, in questo caso escludo totalmente la parola "consolazione": per me il Vangelo è una grandissima opera intellettuale, una grandissima opera di pensiero che non consola: che riempie, che integra, che rigenera… ma la consolazione, che me ne faccio della consolazione? "Consolazione" è una parola come "speranza".


Secondo lei gli intellettuali italiani scendono a troppi compromessi: facciamo dei nomi, citiamo dei casi…

Il compromesso si può riassumere in un punto solo: quello di accettare in modo acritico – perché se fosse critico si potrebbe anche ammettere, anzi credo sarebbe inevitabile – l’integrazione.


Non l’accetta anche lei?

Sì, ma in modo critico (come vede, mi ero premunito). Cioè, certo non posso non accettarla: devo essere un consumista per forza, perché anche io mi devo vestire, devo vivere; non soltanto, devo scrivere o fare dei film e quindi devo avere degli editori, dei produttori…


Quindi anche lei produce per il consumo.

La mia produzione consiste nel criticare la società che in un certo senso mi consente, almeno per ora, di produrre in qualche modo.


La società ha sempre tremendamente amato chi produceva dicendo di non amarla.

Sì, è vero: può darsi che le signore della buona borghesia amino, in un certo senso, essere colpite. La società cerca di assimilare, di integrare, certo: è un’operazione che deve fare per difendersi. Però non sempre ci riesce, a volte ci sono delle operazioni di rigetto. Tanto più poi che non possiamo parlare di poesia come di merce: io produco, ma produco una merce che in realtà è inconsumabile, e quindi c’è un rapporto strano tra me e i consumatori. Immagini che a un certo punto, in Lombardia, arrivi uno che inventa un certo tipo di scarpe che non si consumeranno mai più, e che un industriale milanese costruisca queste scarpe: pensi alla rivoluzione che succederebbe nella Valle Padana, almeno nel settore dei calzaturifici. Io produco una merce, la poesia, che è inconsumabile: morirò io, morirà il mio editore, moriremo tutti noi, morirà tutta la nostra società, morirà il capitalismo ma la poesia resterà inconsumata.

À espera dos Bárbaros – Sobre Pasolini, Sena e Kavafis no Centenário do Nascimento de Jorge de Sena

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1.

Uma das peças de teatro mais violentas que conheço, Affabulazione, foi escrita por Pasolini em 1966. O mito acerca da origem do texto reza que Pasolini estava internado com uma úlcera e que escreveu o texto em poucos dias. O texto é tão amargo e violento quanto o que seria de esperar primeiro, bem, de um Pasolini inclinado à reflexão social, e depois de um autor que o escreveu violentamente doente. A publicação só aconteceria em 1968, na revista Nuovi Argomenti, e a primeira encenação só viria a acontecer em 1975, alguns meses depois do assassinato do autor, levada a cena por um jovem grupo de teatro amador em Turim. A peça inverte o mito de Édipo para se tornar uma espécie de re-encenação alucinada do mito de Cronos. Um pai, um rico industrial de Milão, desenvolve uma paixão mórbida pelo filho, incontrolável e irracional. A família, dominada pela figura opressiva do pai, torna-se uma metáfora para tudo o que existe de errado na Itália pós-fascista, desde a fraca consciência histórica, até à opressão de sistemas de poder patriarcais, passando pelo corte radical entre a geração nascida entre as guerras e os seus descendentes (o filho nada tem que ver com o pai, nem lhe importam as coisas que a ele o moviam, a saber, a trindade infernal do capitalismo – a acumulação de dinheiro, poder, uma imagem vazia de sucesso). À medida que a peça avança, a acção converte-se numa denúncia violenta da canibalização da geração dos filhos pela geração dos pais, através de uma paródia negra, nas páginas finais, da hipocrisia da guerra do Vietname. Texto eminentemente político, e de uma beleza maldita e surpreendente, trata-se da recriação de um mito clássico, e do exercício da função mais profundamente clássica do teatro, reflectir sobre a vida política e ética de um estado, a partir de um olhar crítico lançado sobre a estrutura ao mesmo tempo mais privada e mais pública de uma sociedade: a família. Essa mesma estrutura que, na Itália de Mussolini, tinha sido instrumentalizada e corrompida ad nauseam

Em vida de Pasolini, e até recentemente, Affabulazione, peça tão investida em irritar o público levando a cena tabus de ordem sexual que convocam o nosso horror, e ao mesmo tempo peça tão profundamente moral, foi um texto raramente levado a cena. Parece, no entanto, por um motivo ou outro, estar a ter um ressurgimento. 

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2. 

Cinco anos antes de Pasolini jazer numa cama de hospital a recuperar de uma úlcera, entretendo o tempo de convalescença com reescritas escandalosas de Sófocles, em 1961, Jorge de Sena, já no Brasil, começava a escrever os contos que viriam a ser coligidos no seu terceiro livro de contos, Os Grão-Capitães, um dos mais importantes livros escrito sobre Portugal no século XX. O período de escrita parece ter sido rápido. De acordo com o prefácio do autor à edição de 1971, entre Março de 1961 e Junho de 1962 todos os contos pareciam estar escritos e revistos. Entre 1963 e 1964, em cartas a José Augusto França e Vergílio Ferreira, respectivamente, Jorge de Sena fala do livro talvez um pouco como o aluno que sabe que terminou de escrever o exame final dez minutos depois de este ter começado e que agora terá de permanecer indefinidamente à espera para poder abandonar a sala onde tudo se passou. Não parecem exactamente cartas de uma melancolia infernal, mas em retrospectiva poucas coisas devem ser mais intoleráveis para um escritor. Numa carta a José Augusto França, datada de 1963, Sena diz que continua a pôr e a tirar vírgulas desse livro que a ser publicado resultaria na sua “excomunhão total;” na carta a Vergílio Ferreira, datada do ano seguinte, conclui o autor que a “violência escatológica” do livro, na sua agressividade, tornava o livro “absolutamente impublicável” em Portugal. Um ensaio da especialista em Jorge de Sena, Margarida Braga Neves, intitulado “Os contos impublicáveis de Jorge de Sena,” discute com o tipo de pormenor que não é do âmbito desta nota minimalista, a questão da ficção breve (e menos breve) de Jorge de Sena enquanto objecto impossível de publicar durante a ditadura de Salazar. 

3.

Um pouco como o que sucedera com a peça de Pasolini, levada a cena pela primeira vez apenas em 1975, já nos meses finais da guerra do Vietname, os contos coligidos em Os Grão-Capitães só iriam ver a luz do dia em 1976, dois anos depois da queda da ditadura. Na carta escrita a Vergílio Ferreira, citada no ensaio que mencionei acima, no entanto, Jorge de Sena, para tirar as suas conclusões sobre a impossibilidade de publicação do volume, enumera os elementos e agentes sociais a que os contos se referem: “...exército, marinha, clero, guerra de Espanha, guerra de Angola, família, prostitutas e pederastas, literatos...;” e conclui na nota que parece aproximar este volume da peça de Pasolini: “...tudo é descrito, referido e dito, nos termos da obsessão sexual que corresponde à castração da vida portuguesa nos últimos anos...” 

Os contos mais conhecidos de Os Grão Capitães são, respetivamente, “Homenagem ao Papagaio Verde” e “Grã-Canária.” Um é a evocação de uma infância solitária, em grande parte definida pela personalidade largamente ausente e opressiva de um pai oficial de marinha, uma infância cujo isolamento é interrompido apenas pela presença de um amigo inesperado que se apresenta na figura de um papagaio verde; no outro trata-se da narrativa da viagem de um grupo de jovens oficiais, que termina ela própria em opressão e vingança. Há, em todos os contos, um ângulo quase neo-realista e um lado profundamente estético. O volume contém um conto menos famoso, “Os Irmãos,” que é, à superfície, sobre prostituição masculina, um engate num café com uma geometria tão intricada como a de um quadro cubista, que sucede talvez em dois eixos temporais, mas cujo pano de fundo é a decadência de um regime obscurantista e corrupto, o salazarista, cuja corrupção opera por uma mistura de opressão mantida sobre corpos e mentes, quase invisível, como no poema de Sophia, Elsinore (“No entanto o mal não se via/ era apenas um leve sabor a podre que fazia parte/ Da natureza das coisas” – este poema pode ser encontrado no livro Ilhas, datado de 1989). A corrupção da juventude e da beleza por uma combinação perversa de homofobia (a sexualidade como segredo sujo, para ser exercido elicitamente e como vil moeda de troca), pobreza e abuso de uma geração mais jovem por outra mais velha, que na verdade, não o explicitando Sena no conto mais do que pelo que fica implícito na narração milimétrica de todos os movimentos de um rapaz numa cena de engate onde figuram, entre três elementos, um proxeneta e o que se infere ser um prostituto, são elementos que são vitais para entender porque é que a ditadura em Portugal conseguiu durar muito mais do que em qualquer outro país do sul da Europa. Mas talvez fosse importante notar aqui o que Sena não diz – a palavra prostituto nunca é mencionada em relação com o rapaz no centro do esquema narrativo do conto, do mesmo modo que a única vez que a palavra amor é utilizada para referir um encontro entre duas pessoas do mesmo sexo é para ser vilmente escarnecida. 

4.

Thomas Couture, Les Romains de la Décadence, 1847 (Musée d’Orsay)

Thomas Couture, Les Romains de la Décadence, 1847 (Musée d’Orsay)

Em 1953, muito cedo na história das traduções de Kavafis na Europa, o atentíssimo jovem Sena publicou em jornais uma série de poemas do autor alexandrino, numa altura em que, tanto quanto sei, os únicos editores europeus de Kavafis tinham sido E. M. Forster e Leonard Woolf (as traduções de John Mavrogordato, que seriam a base destas traduções de Sena foram primeiro publicadas na The Hogarth Press em 1951). Na lista desses poemas que mais tarde viriam a ser coligidos no volume 90 e Mais 4 Poemas (primeira edição de 1970), a primeira tradução portuguesa, em livro, de Kavafis, figurava o poema À Espera dos Bárbaros.

Esse poema, À Espera dos Bárbaros, que foi escrito originalmente em 1898, uma década antes de Kavafis encontrar a maturidade do seu estilo, por volta de 1911, tem um precedente visual e um eco próximo num quadro datado de 1847, de Thomas Couture, que está hoje no Musée d’Orsay, Romains de la Décadence. No centro, os romanos da decadência entretêm-se com uma orgia, mas nas margens do quadro, à esquerda um rapaz desvia um olhar entre o reprovador e o melancólico, e à direita, duas figuras, cujas barbas e togas coloridas sugerem que eles são bárbaros, lançam olhares de reprovação e não se juntam ao centro. A época deste quadro é a mesma em que Baudelaire começaria a escrever sobre os Salons, sobre Ingres e Degas até chegar ao ensaio O Pintor da Vida Moderna, sobre um ilustrador vagamente obscuro, Constantin Guys, cujos interesses de ilustração não eram tanto os bárbaros como carruagens e mulheres às janelas das cidades de todos os dias. 

À Espera dos Bárbaros é, no entanto, um dos poemas fundamentais de Kavafis, e um dos mais citados e a sua publicação em 1953 por Sena é um acto de resistência e desafio. Como no quadro de Couture, é sobre o que se adivinha ser a necessidade dos bárbaros, que tardam em chegar a uma cidade em declínio, o declínio de uma civilização, corrupção, e uma perspectiva ética às margens do centro, essa mesma marginalidade que Kavafis revisitaria obsessivamente nas personagens que povoam os seus poemas, que surge de outro modo na figura do rapaz do conto de Sena, embora ele pareça à partida privado da dignidade que encontramos em muitas das personagens de encontros homossexuais clandestinos em Kavafis. Alguns destes elementos ressurgem na peça de Pasolini, no abismo entre a geração do pai, a geração da Itália do pós-primeira guerra, cuja ordem social era ainda reminiscente (e em muitos casos) saudosa do fascismo, e a do filho, a geração da década de ’60, essa cuja canibalização por parte da geração dos pais teria na guerra do Vietname o seu símbolo global mais terrível e evidente, e nos acontecimentos do Maio de ’68 em Paris um grito de revolta.

Os acontecimentos e estruturas sociais que Pasolini critica em Affabulazione – uma hipocrisia social oriunda de uma opressão constante que desumaniza as pessoas –, têm um eco no tipo de comentário social que o teatro desse conto vagamente obscuro de Os Grão-Capitães encena. Talvez nenhum tema tenha definido tanto o percurso intelectual de Sena como este e talvez nenhum permita entender tão bem porque é que ele é um escritor à escala dessas figuras centrais da literatura europeia do século XX, nomes como Kavafis ou Pasolini. Sena apontaria talvez na necessidade desta comparação um sintoma do nosso provincianismo cultural, mas o que queria fazer com esta nota era apontar apenas que, um pouco como no poema de Kavafis e na peça de Pasolini, os contos impublicáveis de Sena eram, à data em que eram impublicáveis, um modo de almejar pelos bárbaros, uma das muitas formas pelas quais a literatura pode dramatizar a necessidade de chegada de um mundo sem o qual nem se chega verdadeiramente existir (o irmão gémeo, do lado da “lusofonia” deste volume de contos, será Nós Matámos o Cão Tinhoso, do autor moçambicano Luís Bernardo Honwana, cuja escrita é contemporânea dos contos de Sena). Talvez nada seja para ser celebrado e recordado tanto neste centenário de Sena, quanto isto. 

Oxford, 10, 17 e 24 de Novembro de 2019

Subsídios para a criação de uma polícia poética

para o Ricardo Marques

 

é altura de admitir
que os esforços
de um ou dois críticos
apesar de heróicos
não são suficientes
e que hoje
mais do que nunca
é necessário
que o estado
tome medidas firmes
sobre o oeste selvagem
que se tornou
a poesia em Portugal

uma entidade isenta
que certifique
a verdadeira poesia
legisle
sobre a temática
regule a forma
promova
a criação de léxicos
de termos poéticos
e anti-poéticos
nomeie comissões
de eventos
defina critérios de avaliação
sem esquecer
os anos de serviço
seja firme
na defesa do interesse público
contra os lobbies
do verso branco
e decida por fim
a penosa questão da rima

e sobretudo
que proteja
os cidadãos cumpridores
da poesia iníqua
o artifício
desprovido de sentido
aplique coimas
aos que escrevem poemas
sobre escrever poemas

"Cascando" de Samuel Beckett

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Tradução de Tatiana Faia

1


por que não apenas os desesperados
de ocasião de
derramamento de palavras 

melhor antes abortar do que ser estéril

as horas depois de te ires embora são tão de chumbo
começam sempre a arrastar-se demasiado cedo
as garras rasgam cegamente o leito da carência
trazendo ao de cima os ossos os velhos amores
cavidades preenchidas outrora com olhos como os teus
tudo sempre é melhor demasiado cedo que nunca  
a negra carência salpica-lhes os rostos
diz nove dias nunca fizeram flutuar o amado
nem nove meses 
nem nove vidas

  

2

diz de novo
se não me ensinares não aprendo
diz de novo há uma última
mesmo última das vezes
última das vezes para suplicar
última das vezes para amar
para saber não saber para fingir
uma última mesmo última das vezes para dizer
se não me amas não serei amado
se não te amo não amarei

palavras rançosas batidas no coração de novo
amor amor amor baque de um velho pistão
pisando o inalterável 

coalho de palavras
aterrorizado de novo
para não amar
para amar e não tu
para ser amado e não por ti
para saber não saber para fingir
para fingir
eu e todos os outros que te hão-de amar
se te amarem

3

a menos que te amem