Eufeme 18

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Eufeme 18 (Jan/Mar 2021):

Editor e coordenador: Sérgio Ninguém;

Revisor: Luís A. Montes.

Com: Eduardo Quina; Filipe Ribeiro; Isabel Cristina Pires; Joan Perucho (trad. Yvette K. Centeno); Jorge M. Telhas; Luís Filipe Parrado; Luís Fernandes; Neal Whitman (trad. Sérgio Ninguém); Rosa Oliveira; Sérgio Nazar David; Sofia Sampaio; Vesna Lecher-Švarc (trad. Sérgio Ninguém) e Yvette K. Centeno.

Disponível: Eufeme: eufeme.magazine@gmail.com, Livraria Poetria (Porto), Livraria Flâneur (Porto), Livraria Snob (Lisboa), Livraria Alquimia (Lisboa)

Agora quase tudo se lê, ou vê, ou ouve a partir de um imenso coeficiente de adversidade, um crepúsculo da vida que não tem sequer a força para erigir um pequeno esplendor do fim. Tudo parece capturado pelo fim do mundo, pelo menos de um certo mundo de que gostávamos; como nós capturamos há muito as palavras certas para expelirmos os nossos sopros vitais simbólicos.

Mas disto e daquilo que lemos, com os filtros disponíveis, retiramos um feixe de luz que, embora não saiba para onde apontar (tudo parece estar no ângulo morto da visão), ilumina uma parcela do negrume. Dito assim, com ar sério, ou experimentando um qualquer registo paródico (atrevimento que, num consenso estranhamente amplo, reduzimos ao mínimo, e quando a Vacina vier talvez já não saibamos atrever-nos), sondemos o mundo à procura de ideias raras, continuemos, pois, a ler, porque é nos livros que habita uma grande parte da verdade, do bem e do belo.

 

Nesta Eufeme, de grande qualidade poética, temos, entre outros, Eduardo Quina a escrever «cepticamente erigimos a promessa / do tempo sem regresso /estabelecendo as equações doentias da compaixão»; Isabel Cristina Pires, «Ah, a realidade, roubaram-ma / quase toda / nem sequer se ouve / a luz solar; e o que sobre / é da cor dos amputados, a quem abrasa / a perna que não existe.», ou «estou pronta / para dizer que o mundo é bom», ou «Os poemas deviam-se poder comer / e ser de fácil digestão; e eles próprios / deveriam mastigar-nos / e regurgitar depois as nossas cabecinhas / em mais inteligentes do que antes.»; Jorge M. Telhas, «se eu fosse território / fugia e deixava / os homens sós»; Rosa Oliveira, sobre a revolução industrial, «uma coisa que começa com gente a cuspir sangue / e crianças esmagadas por vagões / não pode dar bons conselhos»; Vesna Lecher-Svarc «A brutalidade / recebe-me para jantar / por favor salvem-me»; Yvette Centeno, com vários poemas encaixados na pintura de Pedro Chorão e a tradução do poeta catalão Joan Perucho.

Livros de 2020 – Uma Lista

Natalia Ginzburg e os seus gatos

Natalia Ginzburg e os seus gatos

 

Comecemos com uma declaração do que esta lista não é: não é uma lista exaustiva de todos os livros que li em 2020 e também não é uma lista com aspirações a nomear os melhores livros que li em 2020. Embora mérito literário e preferência coincidam claramente na maior parte dos casos, não em todos. Passei várias horas de 2020 a ler coisas de mérito literário discutível, que, no entanto, me ajudaram a criar a minha própria bolha autista e a traçar a partir de dentro nexos de sentido. Aqui ficam alguns apontamentos sobre isso.

 

Brunetti. Já não me lembro bem o porquê do meu interesse inicial no comissário Brunetti, comissário de polícia em Veneza. Donna Leon é americana, viveu muitos anos em Veneza, tem uma obsessão por ópera, os seus livros são um sucesso de vendas na Alemanha e ela recusa-se a tê-los publicados em Itália, onde não quer ser uma celebridade. A partir de Abril, quando as regras do confinamento em Inglaterra se tornaram mais austeras, devo ter lido compulsivamente qualquer coisa como 15 dos cerca de 30 romances que compõem a série. Há uma máxima que os classicistas gostam de citar que diz que o género policial é de todos os géneros o mais obviamente herdeiro da tragédia grega, porque o seu objectivo é uma reflexão cívica sobre problemas que nos afetam enquanto corpo cívico. Ora, Donna Leon começou a publicar os seus romances sobre o comissário Brunetti na década de 90, numa altura em que o mundo era mais ou menos adoravelmente chato. Os primeiros romances parecem-me mais marcadamente interessados numa certa tradição do género. As suas preocupações temáticas têm a ver com o modo como a psicologia de certos crimes afecta diferentes classes sociais. À medida que os volumes vão avançando, há temas a que Donna Leon volta cada vez mais insistentemente, atribuindo preocupações que são assumidamente suas a diferentes personagens. Uma das mais insistentes de todas é a degradação ambiental que a actividade humana vai impondo aos diferentes ecossistemas em redor de Veneza, o que reflecte a sua preocupação com o contexto de catástrofe ambiental em que estamos a viver. Ler estes romances em curta sucessão expõe o lado formulaico e ao mesmo tempo profundamente idiossincrático do género policial. Há uma profunda empatia e inteligência emocional em Brunetti, algumas das melhores coisas acercas dos romances são as suas cuidadosas observações de outras personagens, o seu vício com a literatura clássica e a sua relação com Patta, o seu chefe siciliano profundamente incompetente, que ele manipula com cuidada cortesia e às vezes perversidade, e de longe, a relação de Brunetti com a sua mulher, Paola Falier, descendente da nobreza veneziana, de um mundo socialmente muito afastado do de Brunetti, mas de uma inteligência e de um pragmatismo que desarmam Brunetti e o leitor.

 

Dos livros que li destacaria três. O primeiro, Death at La Fenice, em que o ponto de partida é a morte de um maestro alemão em La Fenice. É, de toda a série, talvez o romance onde todas as convenções do género são mais óbvias. No entanto, parece-me que se tornou inesperadamente actual, é um romance sobre a má memória do fascismo em Itália, sobre homens com poder que pensam que podem escapar com impunidade a quase tudo e sobre os modos como vingança, expiação e justiça podem convergir, mas não se confundem. É também uma espécie de carta de amor ao mundo da ópera em Veneza. Uniform Justice é o décimo segundo romance na série, é sobre um aluno de um colégio militar que é encontrado enforcado no seu dormitório. É uma narrativa sobre uma perda cruel, sobre as responsabilidades das instituições para com os indivíduos, sobre o lado opressivo das pequenas sociedades que construímos e em que vivemos, microclimas de macroestruturas decadentes, é talvez de todos os romances o mais amargo, o que de resto não é muito comum na série, sobre a impunidade de uma classe privilegiada. O último romance que recomendaria é o vigésimo primeiro. Beastly Things é sobre a crueldade dos homens com os animais e como esta é fatalmente nociva para ambas as espécies. Por outro lado, nunca pensei que a morte de um veterinário que se comporta quase toda a vida de um modo absolutamente anti-heroico e medíocre, mas que por um momento tem um assomo de consciência que dá em revolta, me pudesse comover tanto.

 

Daniel Mendelsohn tem uma respeitada carreira como professor de clássicas, tradutor da mais completa edição de Kaváfis em inglês, crítico de literatura na New Yorker (este ensaio sobre os romances de Mary Renault é uma pequena obra-prima). Em 2013 publicou um livro chamado The Lost: The Search for Six out of Six Million. É um livro sobre a busca, com muito poucas pistas, pelos seus seis familiares que pereceram no Holocausto, dos quais a família que sobrevivera sabia muito pouco, à excepção de um avô destroçado pela culpa que se recusava a falar sobre isso. Não sendo exactamente uma novidade, parece-me que é um livro que importa por dois motivos, por um lado a sua leitura devia ser profilática no sentido em que revisita a intolerável desumanidade de um totalitarismo, a sua falta de gentileza para com a vida humana, uma forma de maldade revoltante. Em contraponto, The Lost demonstra o quão precioso é mesmo o mais pequeno momento da mais anónima vida.

 

The Pike: Gabriele d’Annunzio. Poet, Seducer and Preacher of War de Lucy Hughes-Hallet é também um livro de 2013, uma biografia do escritor italiano Gabriele d’Annunzio. A nossa tendência, a minha pelo menos, é a de nos interessarmos mais pelos poetas do lado do bem, aqueles que ao longo do tempo se mantiveram do lado das resistências e da desobediência civil por razões morais. Esta biografia de d’Annunzio é um estudo exaustivo do percurso de um poeta que teve um papel nefastamente activo na invenção, através da sua obra literária, da ideologia do fascismo. Como disse um dos seus tradutores ingleses, d’Annunzio não era um fascista, mas o fascismo era d’Annunziano.

 

A NYRB publicou em 2019 uma nova tradução inglesa do mais conhecido romance da grega Margarita Liberaki, Three Summers. Three Summers (que não é o título original em grego) foi originalmente publicado em 1946, com Gabriele d’Annunzio morto há mais de uma década e é um romance exactamente nos antípodas do mundo deste autor. Aliás, escrito durante a Segunda Guerra Mundial talvez haja uma condenação implícita desta no facto de se encontrar neste livro apenas uma muito oblíqua alusão a este acontecimento. Three Summers conta a história de três irmãs à medida que elas passam à idade adulta, ao longo de três verões num subúrbio de Atenas. É uma grande alegria este livro. Traz com ele um regresso a um mundo em estado de puro verão. Um mundo imerso em beleza, ternura, personagens singulares e que termina com um gesto absurdamente inesperado, libertador e revolucionário, que desarruma o mundo no melhor dos sentidos. Vale muito a pena ler e reler este romance.

 

Natalia Ginzburg é uma destas escritoras que escreve sobre famílias e sobre amizades como ninguém. Cerca de uma década separa Todos os Nossos Ontens de Léxico Familiar. Todos os Nossos Ontens traça o percurso de um grupo de amigos, vizinhos, durante a Segunda Guerra, é um livro escrito com uma doçura amarga, com um humor diante da crueldade que nos lembra que os outros são uma forma de alegria, que os amores e as amizades verdadeiros têm um lado perene que escapa à mediocridade e à rotina, que se mistura com a discordância, com tensões, com modos muito diferentes de ver o mundo e que é uma forma de harmonia que se vai tentando cultivar em face de um mundo que não faz grande sentido. Os amores perdidos de Natalia Ginzburg, Pavese, Leone Ginzburg, talvez estejam em Cenzo Rena e em Hipólito, mas regressam como eles mesmos em Léxico Familiar, que é sem dúvida um dos grandes romances autobiográficos do século XX. Há um pai déspota em Léxico Familiar, tal como há um em Todos os nossos ontens, e há um momento em Léxico Familiar em que se escreve sobre irmãos e em que se diz que aquele grupo de irmãos vive em cidades diferentes e países diferentes, não se escrevem muito e não falam uns com os outros frequentemente, mas quando se juntam basta que um profira uma dessas expressões do léxico familiar para que se reconheçam imediatamente. Talvez As pequenas virtudes seja um livro de crónicas no mesmo espectro destes dois livros, fala-se de sapatos, amigos perdidos, conjugalidade, sobre ensinar aos filhos a pequena virtude do desprezo pelo dinheiro, há sobretudo uma clarificação de intenções éticas, da função da literatura, em que se diz que, porque vivemos no mundo em que vivemos não podemos mentir aos nossos filhos, a função mais importante da literatura é chegar à verdade.

 

O que me leva ao último livro que li em 2020, Os Anos de Annie Ernaux, que é também ele uma espécie de livro de memórias, uma biografia impessoal de alguém que cresce em França no pós-guerra e se estende até aos nossos dias. O muito pessoal mistura-se com a política, com a história, a biografia do corpo com a biografia do corpo cívico.

 

Queria terminar com uma nota muito breve sobre dois livros de poemas lidos em 2020, Atlas da galega Alba Cid, que venceu em Espanha o prémio Miguel Hernández para Jovem Poesia, um belíssimo livro de estreia que é um atlas de lugares, memórias e migrações, de que publicámos na Enfermaria alguns excertos, e The Years, uma plaquete do poeta britânico Jamie McKendrick, em que se revisitam certos lugares e personagens (incluindo um encontro connosco mesmos) ao longo dos anos. A cada poema corresponde um desenho do autor e é uma breve e maravilhosa viagem, que se estende de Espanha a Liverpool, pela mão daquele que é um dos mais europeus dos poetas ingleses. Também aqui se publicaram alguns poemas.

Utopia invertida

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O título é pouco exato, sujeita-se ao significado de contexto que depois da Revolução Industrial parece ter contaminado a realidade com um optimismo furioso (mesmo com interregnos, bolsas de tempo e de realidade que curte-circuitaram o desejo frenético de felicidade, Guerras mundiais, por exemplo). Assim, durante séculos, nas sociedades quentes (Lévi-Strauss), o futuro ganhava sempre ao passado e ao presente, ansiava-se por ele, era bem mais Pai Natal do que os outros dois tempos. Isto foi, simultaneamente, uma emancipação em relação às antigas teologias e teogonias (Cristianismo, Grécia e Roma antigas) e uma alienação à ideia de progresso. O progressismo insinuou-se em quase todos os cantos do pensar e do sentir humanos, os céticos do futuro eram agora seres possuídos por uma deformação intelectual e moral. Fosse na política (materialismo dialético), na economia, nos costumes ou na arte, havia a tremenda convicção de que os erros do passado e do presente seriam conjurados no futuro. Sem que nenhum contra-ataque em grande escala, como em Édipo Rei, fosse sequer imaginável, nessa imaginação dominante feita da soma e de mais do que soma das parcelas individuais.

Muitos autores, com tanto mais ambivalência quanto maior era o talento e empenhamento intelectuais, quiseram pensar a ideia de outro lugar, da Grécia à atualidade. Alguns que conheço:

Platão;
Aristóteles;
Thomas More;
Rabelais;
Campanella;
Francis Bacon;
Daniel Defoe;
Jonathan Swift;
Voltaire;
Sade;
Jules Verne;
Mark Twain;
Eugène Zamiatine;
Frizt Lang;
George Orwell;
Hermann Hesse;
Aldous Huxley;
Italo Calvino;
Michel Houellebecq;

Sem a mediação da arte e do pensamento científico, os esboços maiores de utopias recentes centram-se no Terceiro Reich alemão e no marxismo-leninismo soviético. A pessoalização paranoica de uma vontade de futuro assente em projetos de vida pessoais (Lenine, Estaline e Hitler), em visões do mundo alucinadas, redundou nas maiores distopias. Se a utopia busca sempre uma perfeição, parece por isso potenciar, reverso que sempre esteve presente no verso, grandes imperfeições, como, mutatis mutandis, o voo de Ícaro.

Isto para dizer que a era COVID-19 (talvez fique conhecida assim) introduziu a controvérsia: perdemos o encanto pelo futuro, com ou sem vacinas, embora, talvez porque mantemos resquícios do velho optimismo progressista baseado na evolução tecnológica, continuemos a manifestar uma certa esperança de que nos trará coisas boas. Mas estas “coisas boas” são baseadas na antiga normalidade, na era pré-COVID-19. Regressamos ao modelo utópico das antigas mitologias da Idade de Ouro, que o Cristianismo recuperou e desenvolveu a partir do mito da Queda, embora a desgraça de Adão e Eva fosse a própria razão de ser do novo religioso, garantindo que, com mais ou menos percalços, alcançaremos a Realidade, depois da festa final do apocalipse. O que surpreende é a rapidez com que passamos de aspirar aos milagres seculares do futuro ao desejo consistente de que o passado próximo regresse. Quando vou à baixa lisboeta desejo o retorno das enchentes, estrangeiros e nativos. Não me passa pelo pensamento qualquer vislumbre de um futuro mágico.

É a nova utopia invertida. Que pode não passar de um epifenómeno, mas por enquanto parece mais presente e disseminada do que as utopias futuristas. Terá isso um grande impacto na forma como habitamos a Terra? Seremos mais frugais e gentis, mais racionais e comedidos? Haverá uma prevalência do altruísmo sobre o egoísmo, da tolerância sobre o fanatismo? Não sabemos, mas se isso não acontecer, então a nova utopia invertida será tão desinteressante como as utopias futuristas. Porque, em boa verdade, não é através do sonho que o “mundo pula e avança” (mesmo que sejam sonhos bonzinhos, porque há outros), mas de uma lucidez extra, extravagante, conservadora porque conhece as leis empíricas que determinam o mundo, e vanguardista porque desenha com rigor novas formas de estar no mundo, num altruísmo que deixe de ser especista e racista.

Três poemas de Os anos (The Years) de Jamie McKendrick

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Três poemas de Jamie McKendrick

de The Years/ Os anos (Arc Publications, 2020)

 Tradução de Tatiana Faia

 

Corte dos Leões

 

Quem saberia distinguir com árduo e suave tão próximos,
líquido de sólido, mármore de água? Qual flui?

Ibn Zamrak

 

Depois de cinquenta anos revisitar Alhambra e testemunhar
a mesma água a jorrar da mandíbula do leão:
lembro-me de usar uma camisa prateada de manga curta
adornada de dragões, e pela primeira vez, 

na pista do aeroporto, ouvir a noite viva
com as minúsculas bigornas das cigarras. Desta vez, a placa de metal
aparafusada ao meu fémur vibra ao seu chamamento, o meu coração
ao murmúrio do mármore, o tamborilar da água. 

 

 

Tardiamoto

 

Por qualquer equívoco cósmico o telefone desligado
disparou um guincho escarlate. – Dei um salto.
Antes das desculpas expirarem pedi e recebi
o número errado que a voz marcara, 

e assim durante um ano inteiro sem uma única conta
fui dono desses dígitos mágicos para dispensar
-- só para chamadas recebidas não feitas
uma ténue linha de salvação apenas para o antigo apartamento 

que na via Torquato Tasso partilhei com a algazarra
de Cerbero a ladrar no pátio – esquece lá a ratazana –
e uma fissura que o terramoto deixou na abóboda do tecto. 

Trinta anos contados, nas mais tardias horas da noite,
tacteio em busca do auscultador de baquelite negra
para ouvir a música de Vénus recuar.

 

A chamada

 

Ainda os vejo a todos, como se apenas
se tivessem juntado em vermelho e cinzento para a chamada da manhã
e cinquenta e cinco longos anos não tivessem passado. 

Walwyn que fala pouco e passa o tempo livre
a enrolar arame à volta de penas berrantes para enganchar
peixe imaginário. Barnes de Tripoli atormentado 

pela asma, que tem uma voz seráfica para cantar.
Rana, o atleta do Nepal, agora encorpado mas
de alguma forma ainda o mesmo, exportador de cigarros 

e pneus para a China. Timmi, o gentil ioruba,
o rapaz mais alto de longe, que morreu de SIDA
há sete anos, um fotógrafo famoso. 

Griffin, difícil de olhar para ele de tão
insuportavelmente belo que era, que uma vez me parou nas escadas
e decidiu “Não gostas de mim tu, pois não?” 

não tive coragem de lhe dizer que não era isso.
Ainda lhes vejo os nomes gravados no livro de ponto:
Lashkari, Maw, Sajadhi, Sewell, Singh –  

o capitão de hóquei que foi poupado ao barbeiro.
Todos começámos em alegria independentemente da
sombria prisão em que nos confinaram.

 

Jamie McKendrick, poeta inglês oriundo de Liverpool, vive em Oxford. É autor de sete livros de poesia, entre os quais The Sirocco Room, Marble Fly (vencedor do Forward Prize), Crocodiles & Oblisks e Out There. De italiano para inglês, Jamie McKendrick traduziu, entre outros, Valerio Magrelli (The Embrace: Selected Poems), Antonella Anedda (Archipelago) e uma tradução completa do Romance de Ferrara de Giorgio Bassani. McKendrick é ainda o editor do The Faber Book of 20-Century Italian Poems.

Cumprir Eduardo Lourenço

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I

Sucederam-se as orações fúnebres para atenuar a tristeza que a notícia da morte de Eduardo Lourenço nos trouxe. Ao mesmo tempo, teceram-se os maiores elogios à sua postura e ao seu modo de pensar, provocando uma certa exaltação. Destacou-se que nunca deixou de pensar bem, de ser afável e, à sua maneira, modesto. Que ensaiou permanentemente desvelar as camadas de sentido para lá fanfarronice epidérmica, do messianismo arcaico, muitas vezes invertido (“nunca chegaremos a lado nenhum”) ou do esquecimento que enfia os malogros num saco escuro com medo de instabilizar as nossas frágeis e coletivas maneiras de mitificarmos, mitos superiores e inferiores, nobres e vis, gerais e singulares (da ideia do “quinto império” até ao individualíssimo “pelos menos sou verdadeiro”, o que, veja-se, conduz ao paradigma bíblico pré-ficcional). “Determinações de quase autodefesa” perante o abismo do “zero à esquerda”. Mas talvez a “figura capital da raça humana seja Narciso”.

Muito se disse sobre o seu lugar de psicanalista nacional (Labirinto da Saudade), nós que somos tão avessos a apalpar entranhas; de intérprete supremo da literatura nacional, iluminando, entre outros, Fernando Pessoa (Pessoa Revisitado) com as linhas de sentido mais inteligentes que por enquanto se podem imaginar; de corajoso e lúcido heterodoxo (Heterodoxia I). Muito se disse, mas falta dizer muito mais, mesmo não se sabendo bem o quê (o tempo reescreve as obras maiores).

Mas tenho a firme crença de que falta posicioná-lo como a pedra angular a partir da qual, num processo de emulação crítica, devemos pensar. Reconheço o radicalismo da ideia, mas, reparem, se outros o fizeram, com grande proveito coletivo e individual, a partir de Descartes, Kant, Dostoievski, Ortega y Gasset, David Hume, Shakespeare, Dante, Platão, Aristóteles…, por que razão continuamos a saltar de ponto de partida em ponto de partida, achando quase sempre que seremos sobretudo nós a traçar a linha de chegada? Tudo isto sem demasiado talento ou vigor.

Eduardo Lourenço pode dar-nos a solidez de uma visão do mundo na e a partir da qual podemos pensar, e é disso que precisamos para rasurar definitivamente o “A pensar morreu um burro”. Não num qualquer projeto de dogmatização (que assombraria sem remédio o seu legado), mas para o projeto crítico que nunca tivemos e que nos levaria finalmente até ao esplendor das origens gregas e romanas, no fundo até à origem do projeto de uma cultura europeia, a sermos “bons europeus”.

II

Conheço muito bem a vulgaridade da autorreferencialidade. Por isso, na história que vou contar dou-me na minha universalidade, naquilo que está para lá de mim, da minha facticidade e contingência. Era uma vez um pós-adolescente cheio de preconceitos, sendo o maior de todos contra a consistência, por vezes inexpugnabilidade, da opacidade: embriagado por meia dúzia de raciocínios lógicos e por uma escolarização baseada no empinanço, assimilação e regurgitação das “verdades” dos manuais, achava, o eu universal achava que nada podia resistir aos ataques da razão. Era hegeliano sem o saber.

Caiu-me então nas mãos O Labirinto da Saudade, quando os antagonismos da Revolução já tinham serenado e tudo apontava para o mealheiro da Europa, da CEE. E, por uma razão suficientemente obscura para me permitir estar ao lado dos intelectuais que leram Nietzsche na adolescência sem perceberem patavina, pus-me, finalmente, a pensar. Não, bem entendido, com o jogo de linguagem de hoje (continuando, porém, no incipiente), a pensar que afinal tudo podia ser outra coisa. Ter-me-á vindo isso da incredulidade superior de Eduardo Lourenço, com a qual apanha os reais ziguezagues do povo, especializado em dar sentido ao sim e ao seu contrário? Do vínculo que mantinha com a complexidade do real, apesar das célebres máximas com que parece capturá-lo? Da ironia que sentimos correr paralela à descrição mais séria? Da instabilidade que provoca nas grelhas interpretativas e nas próprias categorias que utiliza?

Mantenho as dúvidas, gosto, aliás, delas. Conferem uma certa segurança ao meu campo anti-dogmático. E mantenho o deslumbre sem condições sempre que releio O Labirinto da Saudade, livro para a vida. Quem poderia ter dito 2 ou 3 anos depois do 25 de Abril: «o povo português passou da boa consciência de um sistema semitotalitário, ou mesmo totalitário, para a boa consciência revolucionária, sem mesmo se interrogar sobre tão complexa e súbita conversão das Forças Armadas fiéis ao antigo regime em força democrática e vanguardista.»

Espero que, sem cairmos numa paixão transbordante e mecânica, peguemos nas suas Obras Completas (em fase de edição pela Fundação Calouste Gulbenkian) e façamos delas um mapa conceptual para navegarmos de forma mais lúcida e ousada. Tenhamos, finalmente, o nosso Livro.