Peter Sloterdijk, Europa, um continente sem qualidades

Peter Sloterdijk, lição inaugural no collège de france, 4 de abril de 2024

Peter Sloterdijk, o filósofo que melhor agita as águas, cada vez menos claras, do pensamento atual (em filosofia, o «atual» tem pelo menos um século), proferiu a lição inaugural do Collège de France neste último 4 de abril, o jornal francês Le Monde publicou um excerto que retomo, em modo de comentário, mais abaixo. É sobre a Europa, continente bem e mal-amado (ambivalência que faz parte da sua própria condição de possibilidade), cada vez menos capaz de corresponder às expectativas que ele próprio criou.

Sloterdijk é um autor bastante traduzido em Portugal (quase sempre na Relógio D’Água), aconselho, por exemplo, a Crítica da Razão Cínica (entre muito outros, Jürgen Habermas saudou-a efusivamente), Palácio de Cristal, Morte Aparente no Pensamento e Tens de Mudar de Vida. É verdade que, por enquanto, ainda nenhuma editora se atreveu a perder dinheiro traduzindo a sua opus magnum, Sphären (Esferas, três volumes, 2004 e 2009), mas o que há é suficiente para termos a clara noção da sua genialidade (na análise, no comentário e na poeisis conceptual). Mais clarividente e profundo, mais dentro, e fora, da história da filosofia do que Byung-Chul Han (a outra rockstar da filosofia alemã), pouco alienado ao anticapitalismo pós-extremista, como lhe chama, mais prolífico do que a maioria dos académicos e, já agora, incrivelmente livre (resistiu ao canto dos mandarins, alguns bons diga-se, da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt), apesar da carreira canónica na Hochschule für Gestaltung (Universidade das Artes e do Design de Karlsruhe, na qual chegou a ser reitor). Só ele se aproxima, porque sabe e não tem medo de se queimar, de uma gaia filosofia, que, longe do rigor mortis da filosofia analítica, assume a importância do conto filosófico (um eros discursivo que reconhece a necessidade de discursos longos e multiformes para explicar um presente complexo, ambíguo e pós racional).

«Nietzschiano de esquerda», como gosta de se apresentar quando quer inaugurar uma polémica, preferia que a dicotomia ética se baseasse no par «pesado e leve» em vez de o «bem e mal». Este último foi até hoje o motor incansável do pensar e do sentir humano, um transcendental, à sua maneira, com incríveis poderes performativos. Mas seria bem mais fértil distinguir o que torna a vida humana leve do que a torna pesada, as paixões felizes das paixões tristes. Construa-se, pois, uma nova ética a partir do que eleva e do que rebaixa, do que exulta e do que angustia e petrifica. Mas, claro, talvez o ser humano, que regressou aceleradamente às pulsões destrutivas (o fim da história só pode ser projetado num pós-humano, ou no fim do humano), não esteja ainda preparado para sair do conforto maniqueísta; como esclarece Sloterdijk, retomando Friedrich Nietzsche, aquilo que escolhemos (refere-se à filosofia, mas podemos usá-lo igualmente numa ética prática) «depende do homem que somos». (Temperamentos Filosóficos). E Sloterdijk é um homem permanentemente inspirado, sem os habituais preconceitos (bondosos, dizem) do intelectual engagé.

II

Na lição inaugural do prestigioso Collège de France, Peter Sloterdijk (namorando há muito com a França) falou sobre a Europa, esta em que vivemos, cheios de esperança e receio, gratos e ingratos por existirmos num palácio de cristal que já não consegue (alguma vez conseguiu?) ser a estufa perfeita que nos aquece mesmo quando um frio distópico atravessa alguns dos vidros partidos (ou ausentes, desde sempre).

Há uma certa amargura pela sensação de declínio europeu (somos o «velho mundo» desde Cristóvão Colombo), o «resto do mundo» mudou muito, já não é o «menos», mas o «mais». Não soubemos, não sabemos fazer a transição do colonialismo para o ensimesmamento continental, um continente fragmentado que ainda não conseguiu compor o seu corpo dançante. Assediados pelo distante e pelo próximo, temos, num paroxismo dissensual, uma Rússia que recuperou os instintos imperais que pareciam irrecuperáveis depois do malogro soviético. Mas temos também imigrantes, presentes e potenciais, a bater constantemente, esfomeados, à porta. E nós cheios de medo, numa angústia étnica sem precedentes. Somos, pois, um corpo, já não monstruoso, mas talvez frankensteinniano, vinte e sete órgãos sem uma cabeça que verdadeiramente os coordene. Como renovar, por outro lado, este continente sem colónias (e com poucos amigos), com uma história de domínio, político e espiritual, tão pesada? O passado em vez de trampolim forma um lastro de chumbo que nos impede de avançar (neste tempo seria antes «galgar»). Mas bem, somos os especialistas da decadência, sabemos, como ninguém, sublimá-la, fazemos, como Baudelaire ou Fernando Pessoa, poemas sobre o cansaço, a beleza metafísica da renúncia e do desvanecimento. Mas também a tememos tanto que estamos prontos a saltar para qualquer abismo se nos prometerem que nos afastamos dela.

Desta forma, diz Sloterdijk, quem ousar repensar a Europa «deve saber que haverá que formar conceitos para uma novidade política e cultural. […] conceitos para um continente sem qualidades» (próximo da ideia de ausência de qualidades do Ulrich de Robert Musil, não por falta de inteligência, pelo contrário, mas por um viés analítico que o conduzia à passividade, ao relativismo moral e à indiferença). Com 500 milhões de habitantes, refúgio para imigrantes porvir, clama por uma nova definição, para si e para os seus povos. A União Europeia é uma improvisação política, um grande corpo político sem «as convicções e postura imperiais». E se os seus habitantes assumem e, na sua maioria, validam este novo europeísmo, isso não os conduz às mesas de votos das eleições europeias. Talvez falte o sentimento de uma pátria vivida, ou talvez isso justifique alguma cólera contra a realidade opaca, quase extraterrestre, da burocracia das instituições europeias. Mas, no essencial, muitas incarnam uma ingratidão fácil e desmiolada: «O Europeu de hoje é frequentemente o consumidor final de um conforto do qual desconhece as condições de existência». Por isso, «na sua existência perfurada pelas falhas de memória» há uma frase de Stephen Deladus (no Ulisses de James Joyce) que se tornou realidade: «A história é um pesadelo do qual procuro sair.» Melhor, quem sabe, do que o «I would prefer not to» bartlebyano.

Talvez seja a altura de regressar à A Ideia de Europa de George Steiner, que nos reconforta com uma genealogia da civilização europeia sem nenhum lugar para o ressentimento. Mas assim perdemos o espetáculo de autodestruição que vai percorrendo, sempre percorreu, a Europa e o dever de a filosofia constituir, como pensava Nietzsche, a má consciência do seu tempo.

O motivo pelo qual não consigo ver "20 dias em Mariupol"

Neste mundo existe a arqueologia enquanto ciência e a guerra enquanto coisa supostamente justificável e depois existe tudo o resto que circula no meio. Eu estou no meio, confortavelmente na minha bolha de classe média burguesa, de quem de vez em quando acha que o mundo vai acabar porque determinado tipo de caneta comprada há muito tempo ficou sem tinta e agora não se sabe onde ir comprar modelo igual. Aqui há uns dias, por outro lado, um amigo fez-me ir ver o documentário 20 dias em Mariupol. A minha dificuldade em assistir ao filme começou na primeira cena em que aparece um ser vivo morto. Esse ser outrora vivo era um felpudo gato preto, por sinal bastante parecido com o meu, um buda opulento e hipersocial, gato de meia-idade algures no Oxfordshire. Há uma parte de mim que sente uma tristeza absurda ao contemplar este gato ucraniano morto, cuja vida foi injustamente interrompida. Não merecia morrer, não há razão nenhuma de estado neste planeta que valha a vida de um simples gato. É absolutamente monstruosa a imagem de um gato atingido por uma bomba. Todo o absurdo do mundo é para mim esta imagem deste pobre gato morto. O mundo tem muitas arqueologias e está cheio de coisas completamente injustificáveis porque são obscenas e a obscenidade não é necessariamente uma questão de pornografia. Quando uso a palavra obsceno, na verdade, frequentemente ocorre-me o uso perigoso que os gregos antigos tinham para ela: obsceno era aquilo que acontecia fora de cena na tragédia grega, por ser demasiado violento para ser representado em palco, mas talvez seja ingénuo e perigoso pensar que devemos desviar os olhos do mal ou pensar que não é igualmente obsceno saber que ele existe e fingir que não o estamos a ver. É assim que ele vai sobrevivendo. Aqui há umas semanas reli Os Grão-Capitães de Jorge de Sena. Em 1971, pouco menos de uma década depois de ter escrito estes contos, que ele achava que nunca iam ser publicados por causa da ditadura em Portugal, Sena escreveu-lhe um prefácio (o livro acabaria por ser publicado em 1976). Copio aqui um excerto.

Não há valores transcendentes que mereçam mais respeito do que qualquer vida humana; e se por acaso esses valores alguma vez existiram, estão hoje a tal ponto impregnados de falsidade baixamente humana (ou melhor, a tal pontos eles degradaram a dignidade humana), que são ainda piores do que inexistentes. Porque não é deles que a dignidade humana é feita, mas de muitos singelos e modestos valores imanentes: respeito e tolerância, honestidade e simpatia, horror do mesquinho e do medíocre, e outras destas coisas mais, como a consciência de que o mal só nasce e só existe de haver uma ideia de bem que, sendo imposta, martiriza e mutila o esplendor de existir-se. . . O mal não se perpetua senão no pretender-se que não existe, ou que, excessivo para a nossa delicadeza, há que deixá-lo num discreto limbo. É no silêncio e no calculado esquecimento dos delicados que o mal se apura e afina – tanto assim é que é tradicional o amor das tiranias pelo silêncio… 

Por estes dias ando a traduzir um ensaio sobre o amor escrito por uma classicista na década de 80. Nesse texto, particularmente hedonista porque delirante em relação a textos do século V a.C. sobre a função social do amor, lê-se a dada altura que o modo como reagimos ao início de uma paixão, o modo como reagimos ao seu exacto princípio, como estamos ou não dispostos a ser mudados por esse momento, diz muito da qualidade, do decoro e da sabedoria das coisas que estão dentro de nós, se somos ou não capazes de aceitar viver segundo coisas que não controlamos, sem medo de um fim. Os contos de Jorge de Sena, escritos durante uma ditadura e sobre ela, estão cheios de corpos oprimidos e reprimidos, de gente que vive mutilada nas coisas que existem de mais privado. O mundo de Os Grão-Capitães divide-se entre oprimidos e opressores, e ficamos a saber que até uma infecção de ouvidos num regime totalitário é uma coisa potencialmente letal. Estes contos dizem mais ou menos abertamente que não há nada que viver sobre um regime totalitário não corrompa. As pessoas representadas neles são vítimas de todo o tipo de apagamento. É contra esse apagamento que agora releio esses textos. Prolongam o meu mau humor e o meu azedume, a minha indignação, ao pensar que ao contrário das populações que viveram na Europa na década de 30 nossa nem sequer é a desculpa de poder dizer que não sabemos quais os fetiches desta onda populista de pendor reaccionário, se não as consequências de lhe dar força.

Parei de ver o documentário 20 dias em Mariupol ao terceiro morto, um rapaz que estava a jogar futebol junto a uma escola com uns amigos. Não na cena onde se mostra os seus ténis Nike, exactamente o mesmo modelo que uso para correr quase todos os dias, ensanguentados, mas no ponto em que se vê o seu corpo tapado com um lençol branco e o pai, com uma idade já muito avançada, chora sobre ele repetindo incessantemente “meu filho, meu filho, meu filho.” Tenho-me sentado com gente que tem discursos a fazer sobre a guerra, que tenta justificar a sua obscenidade, que a debate academicamente, que tenta justificar a Rússia, condenar a Ucrânia, condenar a Rússia, justificar a Ucrânia, como se qualquer palavra que pudesse ser dita ou uma situação parecer fazer sentido pudesse justificar este nojo e este terror absolutos de ver um pai chorar sobre o corpo de um filho que não regressará nunca mais. Fui ver este filme porque há muitos meses que tenho medo de que o meu amigo, que vai com frequência a Kiev, por lá morra. Na verdade, tenho pesadelos com isso. O meu amigo não é um soldado nem um espião. É um estudioso de literatura russa e grega. É um tipo impaciente, a quem pareceu que seria compactuar com uma coisa que o horroriza não fazer nada perante o terror de ver o país de onde saiu a cultura que ele mais ama na vida ser de novo usada para justificar uma forma extrema de indignidade humana, de barbárie. Nas primeiras semanas que ele passou numa estação de comboio na Polónia o trabalho dele foi ajudar os refugiados ucranianos que ali iam chegando a tentar encontrar um sítio para onde ir na Europa ou a chegar onde já tivessem quem os acolhesse. Velhas com gatos e cães e netos, mulheres com filhos, mães horrorizadas de deixarem os filhos e os maridos para trás, raparigas jovens e sozinhas, e, até, num dado momento, o que o meu amigo nunca conseguiu entender se era alguém transsexual, um homem disfarçado de mulher a tentar fugir do alistamento obrigatório, ou apenas uma mulher extremamente masculina, a quem ele no entanto, diligentemente ajudou a carregar as malas. Entre viagens o meu amigo falou-me de como os discursos das pessoas que ele foi ajudando a escapar da guerra se foi alterando, como de repente, por exemplo, as mulheres com quem ele contactou nos primeiros meses conversavam com ele normalmente, não tinham qualquer receio de falar com ele ou entre elas e de como à medida que as semanas foram passado as pessoas que chegavam saltavam de terror ao ouvir uma porta bater ou, as mulheres, simplesmente tinham medo de ficar sozinhas com um homem desconhecido, falante fluente de russo, na mesma sala, de como essa consciência, ao meu amigo, lhe causa uma tristeza indizível e que tem nome, o reconhecimento de que a violação também serve como arma de guerra. Pergunta-me o meu amigo, que tipo de homem alguma vez faria isso a uma mulher e chamaria a isso o trabalho de um soldado? Falo-lhe de um poema de Álvaro de Campos sobre justamente isso, ele começa a falar do poeta que estudou na tese de doutoramento, Brodsky. Não temos emenda. Será justificável? Há algum tratado que possamos citar, algum pedaço de terra de que alguém se possa afirmar como justo dono que nos retire um pouco do nojo e do horror que sinto em relação a pertencer a uma espécie capaz de ser tão predatória e tão estúpida, quando o meu terror intercepta o do meu amigo, que quando está em Kiev diz à mãe que está na Polónia? O que é que me poderia possivelmente tirar a tristeza de viver num mundo onde a alegria da arqueologia e professores de grego antigo que escrevem tratados sobre o amor coexistem com gatos ucranianos mortos por obuses russos e pais que choram os filhos sem talvez nunca terem lido As Histórias de Heródoto, onde a dada altura é possível ler que a grande indignidade da guerra, o ponto em que sabemos que ela vai contra toda a natureza, é que em tempos de paz os filhos enterram os pais e nas guerras dá-se o horror inexplicável de os pais enterrarem os filhos.

A série mais vista no Reino Unido por estes dias é a muito digna e edificante narrativa de Tom Hanks Masters of the Air, que, não caindo numa glorificação acéfala dos heróis, glamoriza, quase por convenção do género, muito do que é o horror da destruição que representa, caindo na falácia de que a sobrevivência dos soldados no centro do enredo é alguma forma de força expressiva de um sentido de carácter e personalidade que talvez nunca emergisse sem esse horror. Isto em parte é consequência de ideia de que alguma espécie de mérito defende os heróis de morrer, entra nesse grande mito do nosso tempo, o da meritocracia e por aí do génio – duas coisas que sem dúvida não existem sem as comunidades e os seus contextos. Para que os heróis sobrevivam, no enredo de películas como a de Tom Hanks, é necessário que existam personagens que são secundárias, acessórias à sua caracterização. É aqui que a ficção não funciona de todo como a realidade e seria interessante questionar um pouco a história daquilo que é o conceito de personagem secundária, das suas representações mais e menos complexas nas ficções que usamos para entender o mundo em que vivemos. Ninguém, idealmente, é acessório no enredo da sua própria vida, é um pouco obsceno pensar na categoria de personagem dispensável para efeitos de caracterização de terceiros. Por outro lado, que o mérito é uma categoria ilusória em relação à sobrevivência é algo que fica completamente explícito num livro que se refere ao mesmo período histórico desta série, Se Isto é um Homem de Primo Levi. Não há fim para o absurdo do que Primo Levi tem a narrar e a total ausência de relação entre mérito e sobrevivência fica completamente explícita num dos primeiros episódios do livro, quando Levi conta que sobrevive a ser enviado para uma câmara de gás porque o oficial nazi encarregado de fazer a triagem entre os prisioneiros mais fortes e mais fracos sacrifica por um erro cometido num número um prisioneiro mais saudável do que ele e por isso mais capaz de trabalhar. A minha crítica aqui não é à série de Tom Hanks em si, que de resto tenho visto com interesse semelhante ao dos meus semicompatriotas ingleses, é ao facto de que, no seu lado de producto de entretenimento e consumo ela glamorizar o sofrimento humano, passar a mensagem de que algumas pessoas muito excepcionais são o modelo a ser seguido, que o mal não as destrói, não as corrompe, quase não toca a sua beleza e que isso basta para que tudo corra bem, para que ganhemos, quando numa guerra ninguém ganha nada.

O motivo pelo qual eu não consigo ver 20 dias em Mariupol não é por me querer manter desinformada, é porque há coisas que para mim têm de continuar a ser recebidas com a consciência do seu extremo horror e isso é porque preciso de me continuar a lembrar exactamente do que é o mal para o conseguir nomear, porque o pouco que me reste fazer talvez seja dizer que não quero que o sofrimento humano se torne para mim apenas televisão. E isso é para não ter a ilusão de que qualquer coisa neste planeta, qualquer ideologia de merda sobre fronteiras e bandeiras e posse de territórios e desrespeito por aquilo que Sena nomeia no seu prefácio como singelos e modestos valores imanentes, possa servir para dizer que alguém merece continuar vivo enquanto outros não.

Oxford, 16 de Março de 2024

O inferno (não) são os outros

René Descartes foi um revolucionário, retirou a Deus (isto é, ao ecossistema religioso que dominada os costumes, a política e a ciência) o critério da verdade e colocou-a no ser humano (não foi assim tão linear, e Deus, mas um Deus de razão mais do que de paixão, continuou a desempenhar um papel importante na inteligibilidade do mundo). Com ele, o ponto de partida de toda a verdade possível passou a ser, como sabemos, o cogito. O ego cogito, centro da subjetividade transcendental, transformou-se, nas palavras de Edmund Husserl, no «terreno último e apoditicamente certo de juízos, no qual toda e qualquer filosofia radical deve ser fundamentada».[1] E o juízo apodítico fundador remetia para a identidade do sujeito, o célebre cogito ergo sum, se penso existo enquanto este ser pensante, que pode, é verdade, assemelhar-se a outros seres pensantes, mas a primeira evidência é a deste eu pensante, identidade autogerada e autocertificada.

Não será Immanuel Kant a revogar radicalmente a centralidade do ego, embora o configure em três faculdades (prática — moral —, estética e pura — entendimento), que estão aquém e além do sujeito histórico e, num certo sentido, novidade relativamente a Descartes, da própria humanidade (somente uma espécie racional entre outras possíveis). Temos de esperar por Georg Wilhelm Friedrich Hegel (parcialmente contemporâneo de Kant) para que a verdade (agora mais dependente da racionalidade história do que da do indivíduo) e a identidade se definam a partir de novas condições de possibilidade.

Interessa-me aqui falar sobretudo da identidade, é a partir dela que veremos se o inferno são, ou não, os outros. E com Hegel abre-se, de facto, a possibilidade de o inferno estar noutrem. É bastante conhecida a dialética do «senhor e do escravo» (ou «servo»), ela resume todo um pensamento que explicitamente, e talvez pela primeira vez, coloca outrem na construção da subjetividade. A consciência deixa de ser a consciência de si, como no cogito cartesiano, ela só é autoevidente pelo reconhecimento de outrem, só ele me permite reconhecer-me. Como senhor ou como escravo, embora este processo de subjetivação seja um pouco mais complexo do que isto, porque uma certa liberdade, dentro do fatalismo histórico, mantém aberta a possibilidade de recusar ou modificar a forma como me reconhecem.

Seja como for, esta inter-relação eu-outrem como centro do processo de subjetivação foi uma das ideias mais férteis da modernidade. A sociologia, a psicologia, a psicanálise, a filosofia, a antropologia… não seriam, em grande parte, as mesmas sem ela. Na filosofia temos, por exemplo, Michel Foucault (pouco hegeliano, diga-se), a pensar o poder como relações de poder, a ação que uns têm sobre as ações dos outros. Mais do que os modelos jurídicos ou institucionais do poder, sempre dominados pela ideia de Estado, Foucault mostra (sobretudo em ensaios curtos ou entrevistas das décadas de 1970 e 1980, muito menos em Vigiar e Punir ou no curso do Collège de France sobre biopolítica) como o poder emerge, numa ontologia da aparição e desaparição, das relações eu-outrem. E se é verdade que há, e deve haver, instituições, elas são mais o resultado das micro-relações de poder do que a sua causa. Noutros termos, as instituições adequam-se às relações de poder que estabelecemos diariamente uns com os outros. É por isso que a democracia, diz ele, não pode emergir em qualquer lado, nem a democracia nem o fascismo.[2] Nessas relações, para que o múltiplo prevaleça sobre o uno, haverá sempre liberdade e resistência (sem isto serão relações de domínio), sendo, pois, mais agonísticas do que antagónicas.

No seguimento da dialética hegeliana (sem vos poder assegurar que as influências são diretas), Michel Tournier, em Vendredi ou les Limbes du Pacifique[3], mostra-nos como sem alteridade não se pode afirmar a identidade (Crusoe não era antes de aparecer Sexta-Feira). Mas talvez tenha sido Jean-Paul Sartre um dos melhores continuadores de Hegel. Para este filósofo francês, quando somos olhados por outrem, ficamos, aparentemente, sem defesas relativamente a «uma liberdade que não é a [nossa] liberdade. É neste sentido que podemos considerar-nos como “escravos”, na medida em que aparecemos a outrem»[4]. Isto leva Sartre a assegurar que a existência do outro coloca, de facto, um limite à minha liberdade. Dirá em Huis Clos (1943/44): «O inferno são os outros». Mas isso não anula a liberdade, podemos escolher como viver o «inferno», mesmo se «o pecado originário é o meu surgimento num mundo onde há o outro»[5].

Uns dias atrás, numa crónica de Michel Eltchaninoff para o Le Magazine Littéraire, encontrei um magnífico prolongamento da discussão sobre se o inferno são, ou não, os outros. Numa carta da década de 1930, Maurice Merleau-Ponty, autor da Fenomenologia da Percepção e amigo de Sartre, dá uma lição de engate (termo da época, cá e lá) a este último. Escreve o seguinte, no seguimento de um avanço erótico mal sucedido de Sartre em direção a uma tal de «C» : «Não és nenhum Apolo, tu próprio o dizes, mas és cativante, enérgico e engraçado (mesmo quando imitas o pato Donald). Podias conquistá-los a todos. Já agora, sabes que a Castora [Simone de Beauvoir] te preferiu a mim — parece que me achou demasiado simpático. Mas a tua filosofia de sedução está errada. Estás obcecado com o olhar e a posse do outro, o que sabes ser impossível. Colocas-te num confronto agonístico: gostas dela, cabe-te a ti conquistá-la. Ou o contrário. Acredita, ela compreende-o perfeitamente. Ou cede, mas ficará sempre ressentida com a tua vitória, ou... foge.»

O que fazer então, para que ela não fuja? Resumo: anula-se o sujeito (seria Sartre capaz de tal?) e desenha-se um mundo no qual outrem, neste caso a «C», queira viver, não apenas queira, mas sinta que não pode viver noutro sítio que não naquele, se desejar ser feliz. Um mundo de coisas encarnadas (a «chair» de Merleau-Ponty), embora sem qualquer privilégio para as pessoas. Parece fácil. Mas requer imaginação e, sobretudo, a mitigação do eu, modéstia em vez de bazófia. O que seria um grande desvio ao cogito ergo sum, que conduz sempre ao imperativo do eu (mais ou menos inchado, no caso de Sartre estaria no limiar da explosão), e, principalmente, a inversão direta de «O inferno são os outros». É, aliás, assim que Merleau-Ponty termina a carta: «O inferno não são os outros».

Uma carta como prolegómenos de uma nova teoria da dialética senhor/escravo.

[1] Meditações Cartesianas e Conferências de Paris, trad. Pedro Alves, Lisboa: Edições 70, p. 29.
[2] Ver «L’intellectuel et les pouvoirs», in Dits et Écrits II, 1976-1988, Paris: Gallimard/Quarto, p. 1570, 2001 [1984].
[3] Sexta-Feira ou os Limbos do Pacífico, trad. Fernanda Botelho, Lisboa: Relógio D’Água, 1992.
[4] O Ser e o Nada, trad. Victor Gonçalves, Lisboa: Edições 70, 2022, p. 346.
[5] Idem, p. 500.

“Trabalho de Casa” de Nuno Júdice

In Memoriam Nuno Júdice (1949-2024)

O primeiro poema de Nuno Júdice que me lembro de ter lido na vida chama-se “Trabalho de Casa” e estava incluído na antologia Século de Ouro: antologia crítica de poesia portuguesa do século XX, organizada por Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra e publicada em 2002, por uma editora que já não existe, a Cotovia. Eu tinha dezasseis anos e estava no liceu, e esse livro foi-me oferecido por uma amiga que recordo com um eterno capacete de mota debaixo de braço, de jeans sempre rasgados num joelho. “Trabalho de Casa” é um poema que pertence ao livro A Fonte da Vida (1997), foi escolhido por Margarida Braga Neves para integrar a antologia e vem acompanhado de um comentário desta estudiosa. O poema começa com a interrogação de uma imagem da memória, a do degelo de rios, mas onde, talvez um pouco inesperadamente mas sem dúvida propositadamente, nunca se pronuncia a palavra primavera até chegarmos ao penúltimo verso. Vale a pena transcrever o poema:

O que faço na memória de um degelo de rios, quando
as águas caem sobre as águas, sob a espuma redundante
de ideias brancas? Aqui me afundo até ao próprio
fundo de mim próprio, aqui onde os gestos humanos
da despedida e do amor não têm outro sentido
além do que nasce das próprias águas: efémeros,
como o tempo, e como o tempo presos ao que, cada um de nós,
ignora do outro. Acendo cigarros nos cigarros,
respirando o fumo húmido das origens, vigiando
a transparência que se desfaz no intervalo das folhas,
quando o vento as empurra para a estrada, pergunto
de onde vem a minha saudade de ti, e até onde
vai o meu desejo de te ouvir, de novo, à minha frente,
enquanto as horas passam como se não tivessem de passar,
e os teus lábios bebem todo o tempo da minha vida. Como
se o desejo não se esgotasse, também ele, como
estas águas que acabam em cada instante em que se renovam,
trazendo as chuvas eternas do norte para dentro de poços
sem fundo, até ao fundo dos lagos mais subterrâneos,
puxando com a sua negra densidade os meus
impulsos de treva: cama obscura para onde desço
quando adormeço. Mas tu, com os teus braços de raiz aérea,
puxas-me para esse cimo de montanha onde o silêncio
se transforma em sílaba - a sílaba inicial
do mundo, a interrogação do gesto nascente de todas as
origens, o soluço de um suicídio de murmúrios,
percorrida pela única percepção inútil: a da vida
que se esvai no instante do amor. E encostamo-nos à pedra
abstracta do horizonte, a que nos deixou sem voz quando
as grutas do litoral se abriram; para que a pedra nos beba,
gota a gota, todo o sangue. Então, é nas suas veias
que correm as nossas pulsações. E afastamo-nos, devagar,
para que a terra viva através de nós
uma existência puramente interior, despida
do fulgor animal das manhãs. Sentamo-nos
no mais longínquo dos quartos, de janelas fechadas, e
abraçamo-nos com o rumor de primaveras clandestinas,
com o inverno nos olhos.

Não sei bem se há vinte anos, quando li este poema pela primeira vez, me terá parecido tão evidente a linha de tensão que se vai desenhando à medida que o poema transcorre, como de resto explica Margarida Braga Neves no comentário que acompanha o texto em Século de Ouro, de um tu, para um eu, para um nós, para desaguar, como não podem desaguar os rios, numa espécie de paradoxo temporal onde se insinua uma tensão entre o eu que fala e o tu a quem ele se dirige: circularmente, num rumor (numa memória?) de primaveras clandestinas que é esbatido dissonantemente (no sentido em que o inverno é sucedido e não precedido pela primavera, que é a estação marcada no degelo mencionado no início do poema), pelo inverno estampado nos olhos do par que se abraça no final. Este rumor clandestino de primaveras faz qualquer coisa à presença do inverno nos olhos, coloca o significado do gesto de dois amantes que se abraçam, “no mais longínquo dos quartos,” (no lugar mais protegido do rumor do mundo) entre duas estações e não numa só em definitivo, a da memória e a presente – uma tensão que terá qualquer coisa a ver com a ambiguidade do amor (mas sobretudo com a da duração da vida), tornado ambíguo se por mais nada justamente pela condição inexorável do inverno enquanto símbolo da morte. Estou em crer que num poema cuja paisagem semântica é a do afundamento e da profundidade há, ao mesmo tempo, nesta contradição de amantes que simbolizam a primavera com o inverno nos olhos, qualquer coisa de muito vital, de muito importante não tanto para a progressão do poema, mas enquanto pequena representação de uma experiência de vida, cifrada na presença do rio, metáfora de um percurso de vida que corre, a do amor enquanto forma de resistência e fonte de significado. De resto, nesse livro de Nuno Júdice, A Fonte da Vida, é em parte uma fonte de palavras, linhas de sentido vistas e revisitadas, bastantes vezes em face da morte.

Digamos, para começar, que há duas notas discordantes que parecem ameaçar a possibilidade de harmonia neste poema e que são vitais para a narrativa que nele se desenrola. Essa narrativa é sobre espera, encontro, o significado da presença de amantes numa paisagem e diante um do outro. Além disso, obliquamente, o poema é sobre um escrutínio do que significaria a ausência desse encontro na trajectória de uma vida, o que tem uma correspondência com o movimento de afundamento do narrador. Se tivéssemos de perguntar que espécie de conhecimento encerra este poema poderíamos talvez dizer: ele sugere ao leitor que correspondência e harmonia não se equivalem. Como, então?  

Uma das notas discordantes que eu julgo haver neste poema é aquela que existe nesta contradição de um abraço que carrega consigo o rumor da primavera, que, rumor que seja, resiste em face do inverno, que pode ser aqui entendido, convencionalmente, como uma estação final. A outra nota discordante é a que sustenta a antecipação do encontro e escuta-se na voz do “eu” que fala. Chamo-a discordante porque ela parece resistir e iludir a harmonia convencional dos tropos poéticos que ela própria evoca (o amor, o fim do inverno, a chegada da primavera). Por exemplo, não há na sequência da observação deste degelo uma réstia sequer do tipo de antecipação luminosa que é descrita por Longo em Dáfnis e Cloe, esse romance da antiguidade que é a celebração máxima de um primeiro amor em estado de primavera absoluto em que lemos acerca da espera pela chegada dessa estação:

But Chloe and Daphnis, remembering the pleasures they had left behind them, their kisses and embraces and meals together, passed sleepless nights and miserable days, and looked forward to the spring as to a resurrection from death. 

Daphnis and Chloe, Tradução de Paul Turner, Penguin Books, 1968, pp.70-71.

Dáfnis e Cloe são, no romance de Longo, muito jovens, dois pastores adolescentes a quem tudo acontece pela primeira vez. Isto faz-me pensar que a estação do tempo presente do poema talvez não seja necessariamente a primavera (o degelo pode ocorrer ainda no inverno), mas a sua memória e uma memória revista, pelo menos até ao momento em que o “tu” encontra o “eu”, com ambivalência. Pergunto-me que versos do poema de Nuno Júdice terão segurado a minha imaginação adolescente de quem não ia morrer nunca, e, portanto, não podia bem entender este timbre de inverno no final de um poema que começa na evocação de um degelo. É difícil de reconstituir isso ao certo, mas talvez tenham sido aqueles que me parecem ser ainda hoje as dobradiças da breve (não confundir com pequena) história que aqui se desenrola, os momentos onde se fixam os seus pontos de viragem. São aqueles versos que mais obviamente introduzem instabilidades na paisagem do poema: “pergunto/ de onde vem a minha saudade de ti;” “acendo cigarros nos cigarros,” “até ao fundo dos lagos mais subterrâneos/ puxando com a sua negra densidade os meus/ impulsos de treva.” Estes últimos versos, com qualquer coisa de dionisíaco, estão ligados ao movimento de afundamento que o “eu” descreve na primeira parte do poema e que é interrompido pelos “braços de raiz aérea,” do “tu” que o puxa “para esse cimo de montanha,” que, nota Margarida Braga Neves no seu comentário, é o “lugar de energia e criação”. Mas é o movimento do afundamento que me importa aqui, que começa nos primeiros versos, se adensa com as chuvas eternas do norte, que caem dentro de poços sem fundo, ligados a lagos subterrâneos, finalmente metamorfoseados na cama obscura para o onde o “eu” desce para adormecer. É desse ponto mais fundo de todos, mais subterrâneo, que o “tu” resgata o “eu”. Este afundamento até ao ponto de maior profundidade parece-me já inevitável naquele auto-retrato do narrador, acendendo cigarros nos cigarros. O gelo que imobilizara os rios mantivera, afinal, a estase da voz central do poema. A partir do momento em que o degelo começa, o seu afundamento é inevitável. Esta não é de todo uma primavera como a que é esperada pelos amantes adolescentes de Longo. Trará consigo uma destruição que parece irreversível como a passagem do tempo, até que braços de raízes aéreas parecem cortar esse movimento.

Fragmentos de um discurso amoroso de Roland Barthes não inclui uma entrada para primavera, mas inclui uma entrada para o verbo “s’abîmer,” “ser submergido,” “afundar-se” ou, como surge em tradução inglesa (de Richard Howard), “to be engulfed.” “S’âbimer” é o fragmento onde Roland Barthes descreve o movimento pendular e violento de um aspecto muito particular de um estado de paixão. O momento de hipnose em que o amante se sente submergido parece-me remeter (embora as referências de Barthes sejam Werther e Baudelaire) para um estado de oscilação entre os impulsos de Eros e Thanatos que foram discutidos por Freud em Para Além do Princípio do Prazer: num momento de sofrimento ou felicidade o amante é submergido por uma disforia desesperada, que pende para a aniquilação. A este estado sucede-se um profundo sentimento de deslocação, a impressão de não pertencer a lugar nenhum, nem sequer à morte.     

É, no entanto, a quarta secção desse fragmento que me importa aqui, porque é aquela em que se pensa sobre o elo entre a paixão e a morte. 

4. Amoureux de la mort? C’est trop dire d’une moitié; half in love with easeful death (Keats): la mort libérée du mourir. J’ai alors ce fantasme: une hémorragie douce qui ne coulerait d’aucun point de mon corps, une consomption presque immédiate, calculée pour que j’aie le temps de désouffrir sans avoir encore disparu. Je m’installe fugitivement dans une pensée fausse de la mort (fausse comme une clef faussée): je pense la mort à côté: je la pense selon une logique impensée, je dérive hors du couple fatal qui lie la mort et la vie en les opposant.

E é este último raciocínio que me importa particularmente: “eu flutuo para fora da parelha fatal que liga a vida à morte ao contrapô-las.” Esta afirmação parece-me particularmente relevante para ler os versos finais de “Trabalho de Casa.” Talvez o aspecto mais inesperado deste poema seja o modo como, não havendo aqui um caso de paixão, pace Keats, pela morte (a trajectória do narrador nega essa possibilidade), há, em vez disso, uma observação das relações de continuidade e (con)sequência entre vida e morte, num movimento de reconhecimento profundamente enraizado nos ciclos do mundo natural, numa tentativa de respirar em uníssono, num movimento que inclui até a melancolia da morte, com a passagem do tempo e com as transformações de paisagens interiores e exteriores. Daí lermos: E afastamo-nos, devagar, para que a terra viva através de nós/ uma existência puramente interior...

Plenitude é uma palavra difícil de escolher para falar sobre poemas sobre essa sagrada trindade da poesia lírica: a vida, o amor e a morte. Roland Barthes sabe disso, a sua solução é pensar que ao opor vida à morte há a possibilidade de uma deriva, um lento flutuar para fora do afundamento que quebra o ciclo. Eu penso que a mesma deriva existe neste poema de Nuno Júdice, mas penso que os termos em que ela é pensada são diferentes daqueles que propõe Barthes.

Talvez a quebra desse ciclo exista sob a forma do impulso vital pelo qual o narrador é puxado pelo “tu” para o cimo, mas o que é alterado por esse gesto permite incluir, mais tarde, a morte na ecologia dos gestos que afirmam uma vida. Esse impulso vital não me parece ser, então, exactamente da mesma ordem daquele fragmento de um poema de Baudelaire citado por Barthes na sua discussão de “s’abîmer”: “Un soir fait de rose et de bleu mystique,/Nous échangerons un éclair unique,/ Comme un long sanglot, tout chargé d'adieux.” (“Les Amants Morts,” Fleurs du Mal). 

Cheguemos então a uma das poucas coisas que verdadeiramente importa perguntar a um poema. A presença dos amantes, do amor, muda a terra, um pouco como lemos num verso do “Trabalho de Casa,” os amantes afastam-se para que “a terra viva,” ou, como sugere Baudelaire, poeta da decadência fértil, existe apenas como uma efémera fulguração, cuja expressão final é um longo soluço? Como amar, e sustentar, o significado do que é, por natureza, desesperado e efémero? E porquê chamar a isso “trabalho de casa”?  

Em 1913, o ano em que estreou em Paris A Sagração da Primavera de Stravinsky, Guillaume Appolinaire publicou em Alcools, um poema sobre um amor infeliz que tem alguns pontos de contacto com “Trabalho de Casa:” é um poema sobre dois amantes cuja ligação é vista em relação com o movimento inexorável do tempo e de um rio. Le Pont Mirabeau parece ser à superfície um poema mais convencional do que aquele que abre a colecção e o precede, Zone, um dos grandes poemas experimentais do modernismo. Escrito sem pontuação, alicerçado num estribilho que se repete por quatro vezes e que expressa a monotonia da estase do narrador, Vienne la nuit sonne l’heure/ Les jours s’en vont je demeure, o movimento do poema (ou a ausência dele) é em certo sentido o oposto do movimento quase perpétuo, e que só pára no abraço dos últimos versos, que atravessa “Trabalho de Casa.” O narrador de Le Pont Mirabeau mantém-se imóvel naquela que era, à data, uma das mais novas pontes de Paris, enquanto por baixo o Sena corre e ele se lembra de um tempo em que a alegria se sucedia sempre à dor e os braços dos amantes, naquela que é uma das imagens mais belas que conheço num poema sobre um amor infeliz, eram como pontes (Le pont de nos bras passe). À medida que o poema e o tempo avançam, o amor esvai-se como a água que corre, o que me lembra da imagem de Barthes, une hémorragie douce qui ne coulerait d’aucun point de mon corps. Mas não há aqui nada de doce, exceptuando talvez na memória distante de uma alegria que se tinha seguido sempre à dor, mencionada na primeira estrofe. Lê-se, a dada altura, numa rima que sugere a monotonia da imobilidade do narrador e ao mesmo tempo a violência que ele experimenta, “Comme la vie est lente/ Et comme l’Espérance est violente.” Os dias e as semanas passam, mas nem a vida nem o amor regressam, no entanto o “eu” mantém-se na paisagem até ao fim do poema da forma que é veiculada por este verbo difícil de traduzir, “demeure,” que tanto quer dizer “eu permaneço” como “eu habito.” A oposição entre a figura humana nesta paisagem e o correr do tempo e o fluir do rio é, como a esperança, violenta. O narrador reconhece a necessidade de movimento, mas não se move. Le Pont Mirabeau é um lugar de akrasia. Esta imobilidade pára o tempo do narrador e é uma prefiguração da imobilidade da morte, também no sentido em que exclui a possibilidade de outros movimentos, da formação de novos significados. Este amor que morre mantém-se, pela imobilidade do narrador, fixo nesta condição fantasmagórica, nem parte do mundo dos mortos nem dos vivos. 

Este estilhaçamento da possibilidade da formação de novos sentidos ou significados tem, acidentalmente, outro elo, não exactamente poético, com a ponte Mirabeau. Em 1970, Paul Celan não vivia muito longe desta ponte, no número 6 da Avenida Émile Zola, e é desta ponte que ele se suicida numa semana chuvosa do final de Abril de 1970.  Há uma presença prolífica de rios na poesia de Celan, mas o poema sobre um rio que me importa aqui é um onde a possibilidade de sentidos é profundamente mutilada. Paul Celan escreveu em 1963 um poema cuja paisagem partilha, pelo menos parcialmente, uma ressonância de significados que são evocados pela descrição, a meio de “Trabalho de Casa,” dos poços sem fundo onde caem as chuvas do norte. No brevíssimo poema In den flüssen, Nos Rios, Celan fala dos rios que estão a norte do futuro:

In den Flüssen nördlich der Zukunft
werf ich das Netz aus, das du
zögernd beschwerst
mit von Steinen geschriebenen
Schatten.

Comentadores de Celan, como Lefebvre e Joris, notam que o norte em Celan é associado ao gelo e à neve e, assim, a paisagens de desolação e morte. Se, como sugere Joris, esta imagem está relacionada com o abuso de certas mitologias nórdicas feitas pelos Nazis, ela remete para um universo de nacionalismo, propaganda e campos de extermínio. É possível que haja nesta imagem dos rios a norte do futuro um eco de uma ideia equivocada, mas bastante disseminada, que normalmente temos sobre o modo como os rios fluem, de norte para sul (os rios, na verdade, correm em todas as direcções).

O que é que acontece se for o rio a morrer? 

No fim do verão de 2021 um amigo meu quis mostrar à sua companheira o rio que corria perto de uma das aldeias onde ele costumava passar os verões da sua infância, uma pequena povoação perto do Monte Pélion, onde na mitologia homérica o centauro Quíron educara Aquiles, entre outras coisas na arte da medicina e da música, uma história que é contada por Píndaro, numa das suas Odes (a terceira ode nemeia). No calor ainda inclemente do princípio de Setembro demos voltas e voltas na floresta que rodeia a montanha sem conseguir escutar sequer o mais remoto rumor do curso desse rio. Escutávamos apenas de longe em longe os distintos guizos das cabras, cada um com o seu som diferente, além de nós e das cigarras a única coisa viva no sol violento da tarde. Até que caminhando em direcção à aldeia, Mélies, com a sua ponte férrea desenhada noutro século pelo pai de De Chiricho, tropeçámos no curso do rio, a sua irregular bacia branca de pedra exposta e completamente seca, com as marcas de erosão onde a água havia corrido, sujo de vegetação seca. Eu achei que a minha amiga, que é a poeta grega Tonia Tzirita Zacharatou, fosse escrever um poema sobre a morte do rio, mas o poema que a minha amiga escreveu não é sobre isso, ou não é exactamente sobre isso. É um poema que fala sobre a relação entre desaparecimento e memória, e sobre o papel da memória e da imaginação em face de um tipo de destruição inexorável. Como “Trabalho de Casa” e “Le Pont Mirabeau” é um poema que se interroga sobre o que fazer com uma memória, mas neste caso não uma memória própria, mas uma que nos é dada por alguém que amamos. 

Na penúltima estrofe lemos: “Querias/ mostrar-me/ uma coisa importante/ porque não é suficiente para ti/ descrever-me as coisas./ Querias que a visse contigo/ e ao amá-la, que te amasse/ mas é impossível/ lembrar/ onde o viste pela última vez.” No entanto, o reconhecimento desta impossibilidade, arrasta consigo o significado desta tentativa irrealizável de dar a alguém a imagem de um rio que desapareceu: “A promessa de uma parte de milagre/ entre séculos de folhas mortas de sicômoros/ era a tua maneira de me dar uma história.../ e, no entanto, acabo a guardar, com um poema/ uma memória que não me pertence.”

O que é, ao certo, mudado quando um poema produz uma deslocação que parece impossível, digamos, preservar um rumor de primavera em face de um inverno inevitável ou dar-nos a memória de um rio que nunca chegaremos a ver? Não sei se é ao certo uma metamorfose, aquilo que no nosso entendimento é mudado quase até à ordem da revelação, aquilo que pede de nós o cuidado da preservação (de um rio, do afastamento de um afogamento para lá do mais interior dos quartos), ou um trespasse, aquele modo muito particular de significação de um poema verdadeiro que nos atravessa completamente para nos deixar num lugar onde não estávamos e aonde talvez nunca chegássemos se não nos tivéssemos encontrado com ele. O mesmo sucede com “Trabalho de Casa.” A conclusão não lógica deste ensaio, em face destes poemas, talvez seja dizer que o que nos afasta da morte não é o tempo que ainda temos para viver, essa ilusão por vezes equivocada de que existe para nós um curso regular de rio, que de resto não podemos nunca saber até onde se prolongará, mas antes a alegria, o reconhecimento dos outros, a imaginação que determina a tessitura de um poema.  

os protestos

para a Clara Crepaldi

às vezes sonho que estamos
perdidas em protestos violentos
numa cidade qualquer
que não sei nomear ao certo
e que atacamos os monumentos
as fontes e as estátuas dos mortos
caídos em batalha
que desfiguramos os rostos
dos generais, dos escritores, dos compositores
calçamos sapatilhas e usamos bonés na cabeça
e do pescoço pendem-nos máscaras de gás
corremos à frente de contingentes da polícia
por ruas barricadas cujo traçado não sabemos ler 

meio cegas e cansadas e a sangrar
queremos continuar a esmurrar os muros
com a cadência de um concerto de ira
escondemo-nos nas catedrais
e queremos rejeitar o mundo
que construíram para nós
queremos construir outro mundo  

há depois um breve momento de silêncio
e no escuro da imensa nave central
tu tosses sangue com a cabeça
escondida no meu peito
e nunca te abracei sem deixar de reparar
o quanto mais frágil do que eu és tu
mais baixa e mais magra e de ombros estreitos
e ao mesmo tempo melhor a ficar calada
e muito melhor na paciência e mais vivaz
como se tudo o que nunca me contas
alimentasse a força com que voltas
a tudo o que precisas de terminar
das minhas amigas a melhor e a mais clássica
de todas no perfil e nos braços tatuados
de figuras negras e vermelhas tiradas
de antigos vasos gregos 

o grande órgão ao centro da igreja começa a tocar
no escuro e gente coberta de pó e sangue
como nós senta-se nas cadeiras austeras
velas acendem-se aqui e ali
e nós como duas raparigas
ao fim de um longo dia aprisionadas
nos bancos da escola
adormecemos de cansaço com as costas
contra pedras húmidas e frias
num edifício de uma rua
que devia dar para o monte parnasso
ou para a devastação de rituais irracionais
de onde se pudesse extrair outro começo
estudando cuidadosamente na penumbra
os rostos dos homens que entram e saem
tentando decidir quais de entre eles
não mereceriam algumas pauladas
cegamente desferidas 

ainda que possa mesmo ser
que uma de nós venha a ser mãe de rapazes
ordeiros e que todos os dias se vistam
de fatos cinzentos para servirem os sonhos
lucrativos de um patrão qualquer
que lhes dê conforto suficiente
para alimentar a ilusão de que não são eles
parte dos explorados
e que explorar outros é necessário e justificável 

um palerma que se penteie de risco ao lado
que para nossa maior raiva
alimente a multidão dos que queiram numa eleição qualquer
pôr a cruz no partido de algum psicopata incompetente até
a ser demagogo no seu ódio contra a humanidade
murmurando inanidades incoerentes
cheias de veneno e promessas de destruição 

numa falta de empatia legitimada
por uma muito antiga lógica de vingança
repetida até à náusea por gente disposta a acreditar
que da ignominia talvez venha
liberdade e igualdade 
seremos talvez mães de filhos da mãe
dizes tu e rimo-nos com um desespero
fundo e com gosto  

aqui dentro
reparo nas tuas mãos esfoladas
à nossa volta
as ruas estão a pegar fogo
temos cada vez mais sede
e há cada vez menos água 

Paris, 8 de Dezembro de 2018

Oxford, 14 de Dezembro de 2018