INFERNO(S)

“Einziger, ewiger, allgegenwärtiger,

unsichtbarer und unvorstellbarer Gott”

- Schoenberg

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Mutatis mutandis, eis outro homem,

não esperava encontra-lo por aqui, até

há muitas razões para simpatizar com ele:

certo humor desconcertante,

a bagagem psicanalítica e toda a cinefilia,

mais as ganas de fundir high e low

culture, num momento em que, a bem dizer,

essas diferenças já pouco significam,

e muito graças a ele;

                                     aqui está,

não refugiado na floresta,

mas gravado e difundido

na internet:

                     todo um outro universo,

o mundo mudou, e claro que sabemos mais

do que se sabia outrora; mesmo assim,

«o que acontece primeiro como tragédia

repete-se depois como farsa», disse alguém,

e ele pegou na frase e fez dela título

para um dos seus muitos, muitos, muitos

livros.

            Farsa tristonha:

na hora de se comprometer politicamente

cedeu ao humor; proferiu o conselho intolerável:

fez birra de enfant terrible,

disse que votaria num monstro.

                                                           Risos.

Aqueles que os deuses querem

perder…

                 E poderemos invocar, outra vez,

Ignorância? Ele conhecia o seu presente

e, dolorosamente, o passado.

Mas cedeu à piada, ao jogo

do desconcerto; a melhor arma

fez-se veneno, tentação

na roleta vertiginosa, volúpia

da cegueira.

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Vítor Teves - “Inferno” (um poema de Pedro Eiras), 2012-2020. [Mutatis mutandis, eis outro homem].

[Caem, à vez, como o metrónomo]

Caem, à vez, como o metrónomo

da chuva a entupir os bueiros.

Outros, nem isso. Por um erro de cálculo,

lapsos da física, a mão que tremia.

Resultado: fracturas, escoriações,

um gatafunho nos pulsos, fechando,

o alarme da vergonha a meio do sono:

«nem à morte soubeste chegar a tempo».

É noite, a vida pesa, só um lençol preto sufoca

os adiados suicídios.

Os corpos resignam-se aos dias

para serem enterrados ainda vivos.

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Nicolas Poussin - “Inverno”, 1660-1664.

SATURDAY NIGHT

“mais as ganas de fundir High e low

culture, num momento em que, a bem dizer,

essas diferenças já pouco significam”

- Pedro Eiras (“Inferno”)

“Quero encontrar uma voz paupérrima”

Herberto Helder (“Servidões”)

“Do you believe in life after love?”

- Cher

LUSITANO(S)

“If you wanna be my lover,

you gotta get with my friends”

                    - Spiece Girls


                                                         a Tiago de Sá, meu Watteau

                              I

À porta a pergunta era sempre a mesma

Quem vai entrar primeiro? Entrar por

último era ganhar o troféu de ser por

dois segundos o raio ofuscante da noite

aquele que acabaria por chamar ao falso

hímen todos os olhares da barroca sala.

E o queixo fazendo um arco de cinco

centímetros dizia a todos I’m here bitches!

Jorge entrava sempre em primeiro lugar

quanto menos leões olhassem para ele

melhor conseguia assim rapidamente

chegar ao bar e pedir tranquilamente o

copo com duas pedras de Whisky. Tinha

o hábito de fugir de relações fúteis como

o diabo fugia da cruz dizia ele antes de

entrar. Mas era o primeiro ao fim de três

bebidas a mudar a pele de cordeiro por

uma novíssima de verdadeiro lobo. E a  

furtiva caça ao homem peludo começava.

 II

Já viste quem está ali de polo azul? Não!

E mudando a cabeça para o lado oposto

Rui fingia ter de repente um assunto muito

importante a me contar. E eu entrava no

jogo afirmava firmemente com a cabeça

como se de repente tivesse entrado num

casting para um filme ou novela brasileira.

De olhos muito arregalados eu era o mais

fiel dos amigos a representar em plena disco

o papel de um sóbrio homem que ouvia a

conversa do seu amigo. E quando o polo

azul (sempre o mesmo polo azul) passava eu

podia voltar a ser a livre cabeça de Whisky.

Safei-me. Maldita a hora que lhe dei um

aperto no rabo agora não me larga pensa

que estou Interessado nele. Com aquela

fronha até faziam juntos um belo casalinho

a Heidi e o Marco no prado do horror.

III

Tanta cara nova hoje já reparaste? O outro

bar está fechado e os artistas não tinham

para onde ir. Dizem que não gostam de vir

aqui porque é tudo uma promiscuidade. Isto?

Mas no outro bar fazem exatamente o mesmo

qual é a diferença? A diferença é a música e

claro aqui podes cantar e ser gordo. Lá tens

de ter cintura de 38 e saber se choras pela

Mariana Abramovic ou se pelo velho Ulay.

Quem são? Nunca ouvi falar desses Dj’s.

Deixa lá filho nem eles sabem quem são.

IV

Só tu para me salvares amigo! Quando

voltares a vomitar na casa de banho já

sabes ficas lá sozinho como da outra vez.

V

Miguel bebe muito é a esponja do grupo.

Pedro só bebe de palhinha o seu Bacardi.

Hugo só sabe perguntar pelo ex-namorado.

Ricardo bebe apenas sumo e pouco dança.

Teresa é a única lésbica passa a noite toda

a dançar enroscada no Tomás o único do

grupo que detesta dançar acompanhado.

Tomás bebe apenas gin e passa a noite

toda a empurrar a Teresa. José é o mais

maluco adora ir pra cima da coluna. São
em plena noite o descaramento e o desejo.

VI

Até às duas da madrugada todos os da

velha-guarda são os pilares da sala são

uma espécie de monarcas dos bons modos.

Às três da madrugada começam a surgir

as mangas cavas os sovacos e alguns nus
torsos fortes e morenos. Às três e meia já 
todos dançam livremente na pequena 
pista. E às quatro são todos amigos. É a

altura em que Jorge apresenta todos os

novos rapazes da sala. Como é sábado

há gente de todo o lado: Mirandela

Gondomar Paredes Leça São Romão.

À saída Jorge já quer casar com o Paulo.


                               VI           

Dança Ricardo deixa lá de imitar um farol!

E enquanto Ricardo respondia “Não tem

ninguém de jeito” ia pensando consigo

mesmo: Fazia. Já fiz. Fazia. Fazia muito.

Já fiz. Já fiz. Fazia. Fazia. Fazia. Fazia. 

Não Fazia. Talvez fazia. Ah sim se fazia!

VII

E à sétima bebida o poema foi desenhado

no limpo chão bordeaux da casa de banho.

Ao lado dele estava o crítico rezando de

garganta funda no mais "promissor" poeta.

VIII

Como ficou aquela história do outro dia

Jorge sempre há casamento? Olha nem

me fales não deu em nada depois de aqui

chupar e bem disse que tinha de ir rápido

porque ainda tinha de dar a missa das dez.

A LARVA

Este é o gesto que recolhe a maça

Este é o gesto de cria o novo olho

Este é o gesto que induz a atenção

Este é o gesto que insere na velha e

 podre maça o novo verso da Lady Gaga:

Don't be a Drag Just be a Queen!

         A COLEÇÃO DE CROMOS

“Life is a mystery
Everyone must stand alone”

             - Madonna

A Rita a Joana a Josefina

O Hugo o Rui o Pedro

A Vera a Ivone o Ricardo

                    dizem que não lhes

                    respondes às mensagens.

                    Que desapareceste sem dar

                    notícia. Que se passa?

            Eu quando andava no coro da

           Igreja Matriz era sempre o mais

           desafinado. Quando de lá saí já

           era o melhor cantor. Vim mais

           tarde a encontrar essa passagem

           em S. Mateus não me perguntes

                    quais os versículos.

         Sentem muito a tua falta quando

             estão em fila no Altar-mor!

                      

                    OLHA K’GAY

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Breve Diário de uma Pandemia

Visitei o meu tio morto no Brasil, fazia mais de 20 anos que não o via,

Tive febre, estive duas semanas fechado em casa ao regressar,

Enfiaram-me um cotonete até ao cérebro e disseram que negativo,

Tive medo, não por mim, mas por quem me está longe e me é,

Os meus dias foram entre o hospital e casa e poucas visitas

Ao supermercado quando o frigorífico tinha fome e eu sede,

Tive medo, de não regressar só a casa, medo que mais uma máscara

Não fosse suficiente, cansei-me de ler o medo dos outros,

As estatísticas exclusivas e as demasiado inclusivas,

Estive mais duas semanas em casa, ao ponto de parecer uma prisão,

Desta vez não tive febre, nem mais um cotonete no nariz,

Fiz trinta e cinco anos e poucos dias depois morreu a minha avó,

Com quase noventa e cinco, mas foi apenas uma pneumonia normal,

Depois regressei ao hospital, o que matava continuava a matar,

Bebi, bebi mais do que nunca, sem medo, porque na verdade

Da vida não se leva nada, porque a vida não é nada, isso vê-se quando

Puxamos as pálpebras a um corpo ainda quente,

Tive medo, mais medo do que normalmente tenho,

A incerteza, que julguei tão minha, agora universal,

E tanto palhaço, tanto especialista do palpite, nunca vi,

Sabe-se muito pouco de quase nadas, mesmo assim, nunca vi tantas certezas

Nos lábios dos idiotas do costume, tive medo e tenho medo,

Não sei quando voltarei a dar um abraço sem medo à minha mãe,

Ao meu pai que apesar de duro, sei que é frágil como qualquer vida,

Fui falange, mas o meu medo maior foi dos grandes vírus,

Esses loiros idiotas que com o seu poder ignorante mandam no mundo.

Turku

04.06.2020

[Caem co’a calma os suicidas]

Caem co’a calma os suicidas

dos telhados.

Leves, lúcidos,

ponderadas as razões

do severo

declive,

caem, tímidos,

pedindo desculpa

pelo

corredor de vento

nas janelas.

Pacientes, recapitulam

os argumentos

da morte:

as letras miúdas no seguro de vida,

uma palavra traída,

esta dor sem conserto

num corpo descontinuado.

Morte em câmara lenta,

suspensa em fio de teia:

eles pensam

este fastio de respirar,

o currículo do sangue,

a vida em déjà vu;

ou, como diz o outro:

«jejuo porque nunca encontrei nada

que gostasse de comer»,

assim ou parecido.

Calcularam

o aprumo do prédio, a velocidade

da aceleração. São

inteligentes,

lúcidos,

e calcaram com as melhores teses

o verdete da esperança.

Quase lhes desejava mais fé,

idiotia, mudez,

ignorância.


Dante arranca um galho de árvore que chora de dor na floresta das Hárpias (onde são punidos os suicidas). Ilustração de Gustave Doré.jpg

Gustave Doré - A floresta das Hárpias - Suicidas, Canto XII.